O EUFEMISMO COMO RECURSO DO ENGODO
Walter Paulo Sabella
Procurador de Justiça, com Licenciatura Plena em Língua e Literatura
O mundo multifário das palavras é um terreno de areia movediça, em que muitos se afundam, à semelhança de uma âncora lançada ao mar, enquanto outros transitam como se levitassem. No Evangelho de Mateus há exemplos de ambas as situações (14: 22-36): Jesus foi da terra ao barco, já distante da margem, malgrado o vento forte agitasse as ondas, mas Pedro, tentando avançar ao seu encontro, por insuficiência de fé (segundo o Mestre), começou a imergir.
É nesse universo pantanoso e traiçoeiro, especialmente para os incautos, que tem lugar as chamadas figuras de linguagem, técnicas ou recursos destinados à produção de efeitos especialmente desejados por quem fala ou escreve.
São, em suma, estratégias linguísticas, fruto de elaborações que deslocam os vocábulos ou sentenças de seus trilhos originariamente denotativos para as rotas
abertas da conotação, ou seja, dos significados múltiplos ou subjacentes, com o escopo de dar às idéias cargas acrescidas de incisão, comoção ou originalidade.
Dentre as mais conhecidas, que, por isso mesmo dispensam enquadramento conceitual, a metáfora, a metonímia, a hipérbole, a antítese.
Não obstante sua ampla variedade, nenhuma das figuras de linguagem tem sido, ao longo dos últimos tempos, tão abusivamente utilizada quanto o ‘eufemismo’ (do grego eufhemismós=auspicioso), que consiste no emprego de uma palavra ou locução de peso negativo menor para suavizar ou minimizar a carga de desvalor semântico de outra.
E a abundante repetição da prática eufêmica tem sido protagonizada, notadamente, por alguns homens da vida pública ou do mundo dos negócios, quando encurralados em cenas da política, do palcos judiciários ou em flagrantes das coberturas midiáticas. Por singular coincidência, o que flui da boca de muitos, como signo linguístico substitutivo, é a palavra ‘erro’, ocupando o espaço da que deveria ser, com rigor léxico, verbalizada, ou seja, ‘crime’. Com efeito, pilhados em flagrância de delito ou incriminados por acervos probatórios incontrastáveis, alguns políticos, gestores públicos -homens de Estado, enfim-, postam-se diante das câmeras de televisão ou dos magistrados nos tribunais e, candidamente, fazem fluir de suas bocas sentenças como
esta: -“Sim, cometemos um erro, mas pedimos desculpas ao nosso povo!”.
Erro é erro. Crime é crime. O primeiro conceito pode estar contido no segundo; este, todavia, não pode amesquinhar-se aos limites polissêmicos do outro. Semelhante reducionismo talvez encontre amparo nos limites largos da autodefesa, nas veredas sombrias pelas quais corre a má fé, na criatividade argumentativa das defesas técnicas, nunca, porém, no confronto aberto com os preceitos éticos impositivos aos homens de Estado, aos que se investiram do sagrado múnus de gerir os bens de todos, a coisa pública.
Quando o erro encontra subsunção a preceito descritivo de norma penal, opera-se inevitável agravamento do juízo valorativo da conduta, com tal força, que se torna inaceitável condescender com a singeleza léxica desse sinônimo de engano ou desacerto. Erro é erro, repita-se, e crime é crime. A reprovabilidade de uma conduta prevista em tipologia repressiva constitui muralha intransponível para que remanesça na falsa acomodação de palavra tão compassiva e tão distante da miséria moral própria de certas práticas, como as relacionadas à apropriação ilícita do tesouro público.
É certo que Fouché, na França revolucionária, referindo-se à ordem de Bonaparte para a execução do Duque d’Enghien, com sua proverbial e cínica acidez, lançou a crítica mordaz: -“Foi mais que um crime; foi um erro”. Todavia, esse inversivo processo de avaliação ética
não merece fazer escola, porquanto herético quando posto em confronto com os superiores princípios que devem nortear a trajetória humana e a interação em sociedade. Nem se pode passar ao largo das singulares idiossincrasias de quem externou a avaliação. Aliás, a História não o perdoou. Anos depois, Chateaubriand, vendo Fouché e Talleyrand de braços dados, caminhando juntos, cravou fundo, com sua estilística aguda: -“Le vice appuyé sur le bras du crime, M. de Talleyrand marchant soutenu par M. Fouché”. A despeito da admiração que Balzac nutria por Fouché; apesar dos dois alentados volumes que Madelin escreveu sobre sua vida e que lhe renderam título acadêmico na Sorbonne , indubitável é que o julgamento histórico não o favorece. Basta ler, sobre sua vida de homem de Estado, o que escreveu Stefan Zweig.
Se a História se repete -e a respeito não se controverte- assim como não houve compassividade para Fouché e incontáveis outros homens comprometidos com funções de Estado, que ninguém duvide, não haverá também para os adeptos do eufemismo em moda, que embuçam indecorosas práticas criminosas sob as vestes léxicas do erro. Erro é erro. Crime é crime. E o povo não os desculpará. Seus apelos, reivindicando que as massas anônimas os escusem, soarão , lembrando João Batista, como vozes que clamam no deserto.