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Paisagens femininas nos orientes de Wenceslau de Moraes

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VIII

Modos, géneros e discursos da Literatura de Viagens

de Língua Portuguesa

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N

o conjunto das comunicações do Congresso Internacional Do Brasil a Macau

— Narrativas de Viagens e Espaços de Diáspora, a secção “Modos, géneros

e discursos da Literatura de Viagens da Língua Portuguesa” reuniu cerca de uma dezena de contributos sobre os variados escritos acerca da Viagem, segundo, como a proposta indicava, os modos (narrativo, descritivo e expositivo) com os respectivos géneros (conto, carta, relação, diário e outros) e a atenção centrada nos seus diferentes discursos. Foram recebidos doze resu mos. Depois, houve, com muita pena nossa, algumas desistências por motivos justificados, tendo sido realmente expostas em público e debatidas oito comu nica ções. No entanto, para publicação, chegaram-nos sete textos.

A secção foi organizada em três sessões, de acordo com o tema geral do Congresso e com a nossa sugestão das correspondentes rubricas sub-temáticas.

Uma primeira englobou os contributos que tratavam do registo, análise e comentário de textos de autores portugueses que trataram da “viagem” como tema em geral ou motivo mais particular de narrativas, como descrição ou reflexão diarística ou autobiográfica. Por um lado, assinala-se o trabalho de interpretação da Mensagem de Pessoa (de S. Avianni, só apresentado no último dia) e o do conto “exemplar” de tão rica significação de Sophia de Mello Breyner Andresen (de G. N. Barata). Por outro, registam-se as deslocações de escritores portugueses do passado ou contemporâneos para fora da Europa, sobretudo Oriente e África, com as análises de relatos como o de Fernão Mendes Pinto (M. A. Gomes), mas também as visões mais modernas das obras de Miguel Torga (I. Mateus) e dos diários de Natália Correia (M. Magalhães).

Na segunda sessão, os estudiosos centraram o seu interesse na ilustração das “viagens” e seus reflexos nos escritos de entidades colectivas como missio nários

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A. P. Laborinho / J. D. Pinto Correia

jesuítas nas deslocações para fora dos limites do Império (A. Rodrigues), dos embaixadores japoneses na sua visita à Cúria Romana (I. Vasile), na “Carreira da Índia” através do Diário de D. António José de Noronha (P. Martins) ou nas perso -na gens femini-nas orientais exemplificadas e referidas -nas obras de Wenceslau de Moraes (M. P. Pinto).

O último subconjunto de comunicações teve em consideração o Novo Mundo, principalmente o Brasil, com maneiras tão variadas de abordagem como as da “Mala para o Brasil”, através de correspondência eciana na imprensa carioca (I. Trabucho), da importância de Os Sertões de Euclides da Cunha para a compre -ensão da identidade brasileira (R. de A. Souto) e ainda do significado do êxito da telenovela Gabriela, entendida como “esporos” do Novo Mundo no Portugal Contemporâneo (R. Pinto). Também nesta sessão, foi apresentada uma exposição sobre as viagens de Mendonça e Costa, através das suas grandes deslocações a partir dos Estados Unidos até ao Oriente, no princípio do século XX (A. C. de Matos e E. F. Ribeiro).

As sessões decorreram sempre com a duração estabelecida, assegurando-se também vivos debates com troca de opiniões muito diversas, esclarecedoras e enriquecedoras quer para a curiosidade do auditório quer para fundamento das conferências.

Também devemos reconhecer que a afluência e o dinamismo do público foram bastante gratificantes para a plena aceitação e para o êxito dos subtemas desta secção.

Na diversidade de propostas, verificámos sobretudo que este corpus de mensagens respeitantes à “viagem”, umas mais ficcionais e mesmo poéticas, outras mais práticas e referenciais, que nos remetem para estratégias e artifícios discursivos e para vivências e testemunhos muitíssimo diferentes, constitui objec -to inesgotável para a análise e interpretação de natureza histórica, literária, cultural, com novas perspectivas redimensionadas no âmbito de uma visão mais alargada ou, simplesmente, global.

A. P. Laborinho / J. D. Pinto Correia

Departamento de Literaturas Românicas Faculdade de Letras da Universidade Lisboa

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ISBN 978-972-8886-24-0 • FROM BRAZIL TO MACAO • CEAUL / ULICES 2013

Dos Estados Unidos da América ao Oriente: as viagens

de Mendonça e Costa no início do século XX

1 ANACARDOSO DEMATOS, ELÓI DEFIGUEIREDORIBEIRO

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1Esta comunicação insere-se no projecto Viagens, Turismo e Lazer em perspectiva histórica dos

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2Sobre as relações entre os transportes e o turismo vejam-se os vários artigos incluídos em

Laurent Tssot (dir), Construction d’une industrie touristique aux 19e et 20e siècles: perspec

-tives internationales/Development of a tourist industry in the 19th and 20th centuries: International perspectives, Neuchâtel, Ed. Alphil, 2003; Catherine Bertho Lavenir, La roue et le sytlo: comment nous sommes devenus touristes. Paris: Éditions Odile Jacob, 1999.

3Sobre os vários tipos de tarifas que eram utilizadas pelas Companhias de Caminho-de-ferro

portuguesas veja-se Elói de Figueiredo Ribeiro “A Gazeta dos Caminhos de Ferro e a Promoção do Turismo em Portugal (1888-1940)”, tese de mestrado, Évora, 2006.

4Ana Cardoso de Matos e Maria Paula Diogo, “Bringing it all back home: Portuguese engineers

and their travels of learning (1850-1900)”, HOST — Journal of History of Science and Technology, Vol.1, Summer 2007.

5Sobre o desenvolvimento do turismo veja-se Marc Boyer, Histoire du tourisme de masse, Paris,

PUF, 1999 e Marc Boyer, Histoire de l’invention du tourisme XVIe XIXe siècles: origine et

développement du tourisme dans le Sud-Ouest de la France. La Tour d’Aigues: L’Aube, 2000.

A

partir da segunda metade do século XIX assistese a uma maior genera lização das viagens que em grande parte está associada ao desenvolvi -mento dos transportes, particularmente do caminho-de-ferro, que ao mesmo tempo que torna acessível a viagem a um maior número de pessoas favorece a deslocação até espaços cada vez mais distantes2. As próprias empre

-sas de transportes desenvolvem toda uma estratégia de incentivo ao turismo que passa pela publicação de Guias de viagem e pela introdução de tarifas especiais para determinados destinos e épocas do ano3.

As razões associadas às viagens realizadas neste período são múltiplas e os viajantes têm características diversificadas. Os viajantes tanto podem ser cien -tis tas, técnicos, industriais ou intelectuais, que através da deslocação a outros países procuram actualizar os seus conhecimentos profissionais4, contactar espe

-cia listas das várias áreas técnico/cientificas e adquirir os equipamentos e máquinas neces sárias para modernizar as suas empresas, como pessoas sem qualquer formação específica, mas que possuem os meios económicos para se usufruírem de tempos de lazer e o interesse em conhecer novas regiões e povos. Este último aspecto está directamente associado ao desenvolvimento que o turismo conheceu sobretudo a partir do final do século XIX. De facto, o acesso à viagem de lazer, que no início do séc. XVIII era exclusivo da aristocracia, vai abranger no século XIX estratos populacionais cada vez mais largos5.

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Ana Cardoso de Matos / Elói de Figueiredo Ribeiro

Os trabalhadores com alguns recursos financeiros que passaram a beneficiar de um tempo de férias podem passar a beneficiar das viagens turísticas, ainda que na maior arte das vezes feitas no país e a preços acessíveis. As viagens de turismo internacionais e mesmo intercontinentais continuam até tarde no século XX reservadas para a elite que possui os recursos financeiros e o tempo livre neces -sá rios para as realizar. Em muitos casos os profissionais que têm que se deslocar em trabalho ou em representação de um país ou de uma empresa para participar nos congressos e outras reuniões internacionais aproveitam muitas vezes a sua viagem de trabalho para fazerem um pouco de turismo.

Portugal não ficou alheio ao interesse crescente pelas viagens e pelo turismo e vários foram os portugueses que as procuraram promover, nomeadamente pela edição de revistas em que estes temas estavam presentes, pela publicação de relatos e guias de viagem e pela criação de instituições promotoras da activi -dade turística como foi o caso da Socie-dade Propaganda de Portugal, fundada em 19066.

Entre os portugueses que tiveram uma acção importante na promoção do turismo em Portugal destacase Leonildo de Mendonça e Costa, que foi prova -vel mente o português que na sua época mais viajou no país e no estrangeiro e os relatos das viagens que publicou tinham como objectivo não só descrever o que vira e apreciara, mas também incentivar os seus conterrâneos a realizar viagens semelhantes.

De entre as várias viagens realizadas por Mendonça e Costa seleccionamos duas viagens, que realizou no início do século XX e que o levaram a dois pontos não só distantes e opostos em termos espaciais como diferentes em termos de hábitos, costumes e tradições — os Estados Unidos da América e o Oriente.

São essas duas viagens que nos propomos analisar neste texto. Consi de rando o tema do Colóquio em que apresentamos a comunicação que deu origem ao texto — Do Brasil a Macau: Narrativas de Viagens e Espaços de Diáspora — e tendo

6Sobre o assunto a Sociedade Propaganda de Portugal veja-se Ana Cardoso de Matos e M. Luísa

Santos, “Os Guias de Turismo e a emergência do turismo contemporâneo em Portu gal (dos finais do século XIX às primeiras décadas do século XX)”. Geo Crítica / Scripta Nova. Revista

electrónica de geografía y ciencias sociales. Barcelona, Universidad de Barcelona, 15 de junio

de 2004, vol. VIII, núm. 167. http://www.ub.es/geocrit/sn/sn-167.htm [consultado em 10 de Março de 2009] e Paulo Pina, O Turismo no século XX, Lisboa, Lucidus, 1988, p.13-14. Sobre a publicação de relatos e guias de viagem veja-se também Elói de Figueiredo Ribeiro “A Gazeta dos Caminhos de Ferro e a Promoção do Turismo em Portugal (1888-1940)”, ob. Cit., e Maria Luísa Santos, Ana Cardoso de Matos e Maria Ana Bernardo, “Tourism, Guidebooks and the Emergence of Contemporary Tourism in Portugal” in The Uses of History in Tourism Development (Auvo Kostiainen and Taina Syrjämaa ed.), Filand, Finnish University Network for Tourism Studies (FUNTS), 2008, p. 94-104.

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7Colaborou também nos jornais Diário de Notícias, Jornal do Comércio e das Colónias e no

Comércio do Porto onde era responsável pelas respectivas secções sobre os caminhos-de-ferro.

8Sobre o assunto veja-se Elói de Figueiredo Ribeiro “A Gazeta dos Caminhos de Ferro e a

Promoção do Turismo em Portugal (1888-1940)”, ob. Cit.

9Gazeta dos Caminhos de Ferro (GCF) nº 1087 de1/4/1933, p. 216.

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Dos EUA ao Oriente: as viagens de Mendonça e Costa no início do século XX

em conta que a organização da publicação se situa no âmbito da literatura recorreremos sistematicamente à transcrição de passagens dos relatos das viagens que este viajante publicou na Gazeta dos Caminhos de Ferro. Nestes relatos Mendonça e Costa descreveu os meios de transporte em que viajou nestes dois países e os espaços e gentes com que contactou durante as suas viagens. Leonildo de Mendonça e Costa: um viajante “compulsivo”

Escritor, jornalista, inspector-chefe da Repartição do Tráfego da Companhia Real dos Caminhos de Ferro, Mendonça e Costa foi o fundador e director da

Empreza de Annuncios nos Caminhos de Ferro e colaborador da Gaceta de los Camiños de Hierro de Madrid, onde escreveu vários artigos em defesa dos interes

-ses e sobre os caminhos-de-ferro portugue-ses7. Em 1888 fundou a Gazeta dos

Caminhos de Ferro e, em parceria com José Duarte do Amaral fundou o Guia Oficial dos Caminhos de Ferro, cuja publi

-cação se iniciou em 1882. Foi também autor do Manual do Viajante em Por tugal, elabo -rado nos moldes dos Guides ou do Baedeker, publicação que teve várias edi ções e foi continuada por Carlos de Ornelas.

Mendonça e Costa é normalmente apon -tado como precursor do turismo em Portugal pelo incentivo que deu a esta activi dade atra -vés dos relatos das suas viagens pelo mun do, da criação da tarifa P.4 Viagens circula res em

Portugal, (tarifa ferroviária que tornava mais

económicas as viagens turís ticas)8do papel

que teve na criação da Sociedade Propa ganda de Portugal, tendo sido redactor do seu pro -grama e eleito seu secretário perpétuo, cargo que só abandonou após a implantação da República.

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10GCF nº 373 de1/7/1903, p. 349. 11GCF, nº 378 de 16/9/1903, p.318.

O seu gosto pelas viagens e o seu interesse em promover o turismo em Portugal fizeram com que fosse o principal promotor da fundação da Sociedade Propaganda de Portugal criada em 1906.

Foi ainda sócio de várias sociedades culturais e científicas como a Asso ciação dos Escritores e Artistas de Madrid, de que foi sócio honorário, e a Sociedade de Geografia de Lisboa. Desempenhou ainda o cargo de Vice-cônsul da Argentina em Lisboa.

Para Mendonça e Costa viajar era como doença, um vício que ele era compa ra com o “vício” do filatelista que começa por guardar os selos da corres pon -dência que lhe enviam, depois troca selos com os amigos e depois já quer selos do mundo inteiro. Como dizia em 1903, “Viajar com certa assiduidade por muitos

países da Europa, produz o effeito que, á maneira do vicio, ataca todos os colleccionadores das raridades.”10No caso dos viajantes esse vício iniciava-se

com o desejo de viajar até Madrid, depois Paris, depois Londres sem nunca ficar saciado e assemelhandose uma “doença”, cujo tratamento seria da respon -sabilidade dos “médicos” especialistas como Cook, Lobin e outros agentes de viagem, e os “hospitais” os comboios expresso e os paquetes.

A Viagem ao Oriente

A viagem ao oriente iniciase em Junho de 1903. Era uma viagem mera men -te de turismo motivada pelo in-teresse em conhecer a região do orien-te e as pessoas que a habitavam.

Nesta viagem Mendonça e Costa atravessa toda a Europa e Ásia e chega até Tóquio (ver quadro anexo 1). No total faz um percurso de 36.291 quilóme tros ao longo dos quais utiliza como meios de transporte o comboio e o barco. O comboio sempre que existiam linhas férreas e o barco nas ligações entre a China e o Japão e nas travessias do lago Baikal.

São diversos os aspectos descritos ao longo das suas viagens: as cidades, os meios de transporte, os hotéis, os habitantes, a paisagem, a história, os costumes, o património edificado e a cultura, entre outros.

Como grande parte da viagem é realizada em comboio, a descrição dos mesmos é constante. O comboio que o transporta de Moscovo para Irkoutsk é descrito como “(…) é um bello trem, composto de três carruagens-leitos com

lavatorio em cada dois compartimentos, um salão restaurante e cozinha, e um vagon que se divide em compartimento para bagagens, outro para o motor electrico que produz a corrente para todo o comboio.”11

Ana Cardoso de Matos / Elói de Figueiredo Ribeiro

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“O outro o que a nossa gravura representa é o «Baikal», um colossal back ou ferri-boat construido para transportar todo o comboio, não havendo assim necessidade de trasbordo, (…)”12.

As estações do caminho de ferro e o seu movimento constante são igual -mente objecto da análise de Mendonça e Costa que consideta que “De Karbin

para baixo mais se assentua entre a população que vem ás estações assistir á passagem dos trens, o trajo chines e o espirito commercial d’aquella gente; mulheres de variados costumes, especialmente mongolicos, homens e rapazes vendendo todas as bugiarias, gritando sempre pasmando para os passageiros do comboio e fugindo quando nas mãos d’elles veem a machina photographica em que elles suppõem haver feitiço.”13

Ao longo da viagem passa por cidades de vários países que apresentam uma grande diversidade. Assim, enquanto Yokohama (Japão) “ (…) é meio europeia,

meio japoneza. A’ beira do rio, o bairro europeu, antiga concessão estrangeira, não diverge consideravelmente, no seu aspecto geral, de qualquer cidade do continente europeu.”14

Em Tcheliabinsk, na Sibéria, “A cidade é como todas as da Siberia, formada

por largas ruas, sem calcetamento, com edificios em geral de madeira, e alguns de pedra e cal. As fachadas, muito enfeitadas de rendilhados de madeira, produ -zem bom effeito.”15. Em Fuzan, na Coreia, a perspectiva é completamente dife

-rente, “Onde está a cidade? Perguntavam todos, olhando para aquelles montes

escalvados e aridos, na base dos quaesum grupo de cabanas pardacentas se avistavam. A cidade era isso mesmo!”16

Como pretende que o seu relato possa servir como guia de futuros viajantes, Mendonça e Costa faz descrições dos hotéis, dando indicações de grande utilidade para os futuros utilizadores “Hoteis são muito confortaveis, mas o viajante que

se cubra bem, de noite, com o mosquiteiro, porque de contrario terá a cara, no dia seguinte, com a configuração d’um cacho d’uvas.

Ouvi lá dizer que Nagoya tem tresentos mil habitantes e trinta milhões de mosquitos. Por experiencia propria calculo que ha de ter muito mais; cem mosqui tos por habitante é pouco.”17, aqui e ali uma nota de humor para cativar

o leitor.

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12GCF, nº 380 de16/10/1903, p. 349. 13GCF, nº 383 — 01/12/1903, p.395. 14GCF, nº 392 de16/4/1904, p. 134. 15GCF, nº 379 de 1/10/1903, p.334. 16GCF, nº 401 de 1/9/1904, p.278. 17GCF, nº 397 de 1/7/1904, p.213.

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Para reforçar aquilo que afirma, Men don ça e Costa utiliza gravuras ou mes -mo fotografias que ele próprio tira, para enriquecer as suas crónicas e estimular o desejo de viajar aos seus leitores. É o que acontece, por exemplo, com castelo de Nagoya — “Nagoya é um ponto obrigado de paragem, não só para visitar o

notavel castello, com a sua torre de oito andares que aqui vae em gravura”19.

Relativamente aos habitantes dos territórios por onde vai passando, Mendon ça e Costa deixanos relatos de grande interesse, a que não falta alguma adjecti -va ção bem humorada e de feição lusa “Os homens vestem todos de cassa branca,

calção, especie de camiza e manto, tudo muito largo e muito en gommado, agitando-se ao vento. Na cabeça um chapeu afunilado na copa, feito todo de tarlatana preta, fortemente engommada tambem, com largas abas à Mazzantini. Muito curioso o typo d’estes patuscos, mais ainda pela maneira importante porque andam, meneando os hombros com ademanes de principe de drama de feira.”20

Embora manifeste a sua admiração por alguns aspectos culturais que en contra no Oriente, muitos dos costumes com que se depara provocamlhe espan -to, repulsa e uma atitude crítica, como é o caso dos exemplos que se seguem: Porque pretende que a sua descrição seja simultaneamente um incentivo à viagem e um guia para essa mesma viagem, Mendonça e Costa indica, por exem -plo, monumentos importantes que mereceriam ser visitados “Nos arredores de

Pequim ha, sobretudo, que ver os tumulos dos Mings, notavel santuario a um dia de distancia, a cavallo, que é peregrinação obrigada de todos que, pela primeira vez, vão á capital do celeste imperio.”18

Ana Cardoso de Matos / Elói de Figueiredo Ribeiro

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18CF, nº 388 de 16/02/1904, p.70.

19GCF, nº397 de 1/7/1904, p.213. 20GCF, nº 401 de 1/09/1904, p.278.

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”Pela vida, sim; porque é do que o chinez menos caso faz. Haja quem a compre que não falta quem a venda barata. Succede até que, se um condemnado á morte entender-se com o carcereiro, este sem difficuldade, encontra quem se preste a soffrer o garrote no logar do prisioneiro, a troco de uns magros 50 taeis ou um kilo e meio de prata, ou uns 50$000 réis.”21, “Nos rios, nas piscinas, os dois sexos

promiscuamente despem-se e lavam-se, sem que ninguem repare.

(…) E’ que o podor, o sentimento de dever esconder ás vistas a maior parte do corpo não é ali conhecido.”22

É talvez o facto de encontrar uma cultura e um modo de vida tão diverso daquilo a que estava habituado, que o leva a defender que os viajantes antes de iniciarem uma viagem deviam estudar um pouco a história, a cultura e os costu -mes dos sítios que pretendiam visitar, “Não se póde, ou, pelo menos, não se deve

passar os humbraes da China sem se ter préviamente feito um estudo (…) do que é aquelle paiz, dos seus usos, da sua etnographia, da maneira de viver dos chinezes.

Porque a diferença para os nossos costumes é tão radical, que a nossa ideia não póde refazer-se, com a rapidez precisa, das surpresas que, a todo o momento se lhe deparam ante aquelle povo absolutamente diferente do nosso.

E é talvez a difficuldade de nos entendermos a nós proprios naquelle extraordinário paiz que explica porque é que os europeos que para lá vão, não podendo amoldar aos seus costumes uma população de 400 milhões de habitan -tes, de tão differentes caracteres, mesmo entre si se amoldam elles aos chinezes (…) vivendo á chineza e achando delicioso o que os viajantes, de passagem, acham insuportavel.”23

“Para muitos, ver Macau, Cantão, Hong-Kong e Shanghae é ver a China completa, sem se lembrarem de que o imperio filho do sol é tão grande, as suas cidades principaes tão afastadas, que cada uma de per si constitue um paiz diffe -rente.”24, ao referirse aos japoneses e à introdução de novos meios de transpor

-te nes-te país, como é o caso dos grandes comboios que por lá circulam, não pode deixar de dizer “(…) na continuação do viver do Japão vamos apreciando a

preocu pação d’este povo em tornar tudo pequeno, leve, dobravel, de maneira a poder ser mettido em caixinhas, que ao vêr as grandes locomotivas que rebocam os grandes comboios que percorrem todo o paiz, bem imaginamos

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21GCF, nº 388 de 16/2/1904, p.70. 22GCF, nº 391 de 1/04/1904, p.120. 23GCF, nº 384 de 16/2/1903, pp. 410-411. 24GCF, nº 389 de 1/3/1904, p.85.

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quanto pesar o japonez sentirá em não poder dobral-as, empacotal-as de fórma a guardal-as em qualquer pequenino escrinio de tampa axaroada.”25. Nestas

palavras, Mendonça e Costa revela-nos a forma como percepcionou algumas características deste povo, embora afirmasse que “Ao deixar o Japão havia no

meu espírito uma impressão um pouco parecida com a que me inspirára á entrada: O que é o Japão?”, visto que passara ali um mês e segundo as suas

palavras, o seu espírito não ficara esclarecido para responder a essa questão.

“Longe de mim ter conhecido o Japão pelos romances de Pierre Loti, especial -mente o ultimo tão conhecido por tanta gente culta.”26, com estas palavras o

autor refere-se à importância de conhecer os locais de forma presencial, em detrimento do conhecimento adquirido através da leitura de romances escritos, por vezes, por autores que nunca estiveram nesses mesmos locais, dando origem a falsas ideias sobre diversos aspectos das sociedades retratadas.

No fim destas suas Notas de Viagem, mais precisamente trinta e quatro, uma por publicação, o autor, sobre a viagem ao Oriente, refere a sua duração, nú -mero de cidades visitadas e a extensão percorrida em quilómetros (ver anexo I). A viagem à América

A viagem à América foi realizada em 1905 e teve como motivo o Congresso dos Caminhos de Ferro, no qual Mendonça e Costa ia participar como represen -tante da Companhia Real dos Caminhos de Ferro. No entanto, Mendonça e Costa prolongou a sua viagem para visitar outros locais que não estavam previs tos nas visitas de estudo dos congressistas e para conhecer outros pontos do continente americano. Assim, a viagem não se restringe aos EUA, prolon gando-se ao Alasca, ao México e ao Canadá.

As memórias sobre esta viagem começam a ser publicadas na Gazeta dos

Caminhos de Ferro de Maio de 1905.

Tendo que atravessar o oceano Atlântico grande parte da viagem é realizada num navio que parte de Gibraltar e vai directo a Nova Iorque. Porque a viagem de barco é para ele uma novidade, que embora tenha aspectos interessantes se torna extremamente cansativa em percursos muito prolongados. Assim, consi de ra importante informar os seus leitores sobre a vida a bordo de um transatlântico — “Para muitos leitores que nunca fizeram uma viagem marítima, não será falho

de interesse que, (…) lhes digamos um pouco o que é a vida a bordo.

Tem encantos, não há dúvida, este viver d’alguns dias, mas, (…) o aborreci -mento é uma doença inevitável” (…)

Ana Cardoso de Matos / Elói de Figueiredo Ribeiro

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25GCF, nº 390 de 16/3/1904, p.102. 26GCF, nº 391 de 1/4/1904, p. 120.

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“os dias sucedem-se parecidos, as distracções em breve fadigam, pela sua

repetição, pela insistência com que as buscamos.

O que se faz a bordo? Lê-se; mas a continua leitura fatiga: o romance deixa de interessar; o jornal a breve trecho está lido desde o título até ao último anúncio. E esse jornal …é do mês anterior.

Joga-se, mas os parceiros são sempre os mesmos, (…)27

Como a primeira parte da viagem de Mendonça e Costa se encontrava englobada numa viagem organizada para os participantes do Congresso, as descrições que faz “dos primeiros dias desta viagem, que promete ser enorme e

enormemente interessante, abrangendo toda a América do Norte, isto é, os seus três principais países — Estados Unidos, México e Canada — tem forçosa mente que acompanhar a das excursões organizadas por motivo do Congresso dos Caminhos de Ferro (…)”28.

Em Nova Iorque os participantes no Congresso dos Caminhos de Ferro foram recebidos por uma comissão de recepção que organizou as excursões de forma que os técnicos que participavam nesta reunião pudessem visitar os locais que mais lhes interessariam. Assim, porque se tratava de um grupo em que os enge -nhei ros eram maioritários “para lhes mostrar coisas interessantes, nada mais

próprio que as fábricas de energia eléctrica, as novas estações em construção para os caminhos de ferro e os trabalhos do túnel que ligará a estação de Jersey com a cidade, as obras do alargamento da estação central da rua 42ª, e o primoroso serviço de automóveis eléctricos”

“Quanto aos automóveis este é um serviço que se torna notável na América. Em cada cidade uma companhia de automóveis organiza diariamente 4 ou mais passeios, em grandes carros em forma de plateia para 40 pessoas, por um dólar (uns 500 réis nossos) cada uma.

No carro vai um guia que, por meio de uma buzina fala aos passageiros explicando e descrevendo todos os pontos por onde o carro passa ou que dele se avistam(…)”29

Depois de Nova Iorque, os congressistas deslocaram-se a Pittsburgo cidade que conhecia um grande desenvolvimento económico e que, por isso mesmo se encontrava grandemente poluída — “Pittsburgo é, como dissemos, a cidade

do ferro, do fumo, do negrume, o que lhe imprime um carácter infernal muito suges tivo. Ville du fer lhe chamamos, por gracejo, e mais tarde vimos que alguém, antes de nós, fizera igual calemburgo.

Dos EUA ao Oriente: as viagens de Mendonça e Costa no início do século XX

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27GCF, nº418, p.149. 28GCF, nº419, p.167. 29GCF, nº419, p.167.

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Tão grande é a povoação, tão distanciadas as grandes fundições e altos fornos em que se trabalha o ferro e o aço para todas as aplicações, que foi necessário levar ali os congressistas em comboios especiais, dentro dos quais se passou uma boa parte do dia, circulando na cidade e proximidades”30.

O fumo das fábricas era de tal forma intenso em Pittsburgo que não foi possí -vel fazerem fotografias, o que segundo Mendonça e Costa foi uma vanta gem, a novidade da possibilidade de se registar as imagens do que se via fez com que os excursionistas estivessem constantemente a tirar fotografias. Assim, a existên cia de fumo, “valeu que — só ali — nos livrássemos duma infernal praga que infesta

toda a América — as máquinas fotográficas. Durante o mês que durou o con gres -so, com as suas sessões, estudos, excursões e festas, não foram menos de cem as vezes que os senhores fotógrafos nos fizeram estar em posição, para nos tirarem em grupos; isto é, a 6 minutos cada vez foram 10 horas de viagem consa gradas a estes artistas que logo nos davam o seu bilhete para, se quisésse mos, podermos obter uma prova do seu trabalho, no dia seguinte mediante um ou dois dólares”31

Na cidade de Saint Luiz “o que mais tínhamos que examinar é o monu mento

que mais brilha hoje na cidade é a sua Union Station, uma das mais belas do mundo”32. E em “Chicago, o termo norte da linha principal é uma cidade enorme,

das maiores e mais activas dos Estados Unidos.

Quase todas as grandes invenções, os novos maquinismos, esses milhões de diferentes artigos que o país exporta e nós vemos por toda a parte, são fabrica -dos em Chicago. È inumerável a quantidade das suas fábricas como estonteadora a faina que se nota no trabalho”33.

Ao longo desta viagem Mendonça e Costa tem a clara percepção da impor -tân cia que a publicidade tem para promover as viagens. E, talvez porque nesta altura havia um interesse particular em incentivar as viagens ao Alaska, “Nume

-ro sos guias, folhetos, p-rospectos, mapas, -rotei-ros, são distribuídos a montes por toda a parte, referindo maravilhas do Alaska. As companhias de vapores fazem não só continuas carreiras par ali, durante todo o ano afrontando os gelos, como estabelecem, no verão sucessivas viagens de recreio, em vapores especiais, em que as passagens, apesar de caras, uns 200$000 réis por pessoa, são disputadas por forma tal que os vapores se acham todos tomados com dois meses de antecedência”34

Ana Cardoso de Matos / Elói de Figueiredo Ribeiro

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30GCF, nº423, p.230. 31GCF, nº423, p.230. 32GCF, nº423, p.230. 33GCF, nº424, p.245. 34GCF, nº439, p.107.

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Tal como fizera no Oriente Mendonça e Costa analisa e descreve os costu mes dos povos da América. Assim considera que “Antes de prosseguirmos na descrição

das viagens bom é ir dando algumas notas da observação da vida americana que poderão interessar não só o leitor que tenha que vir a este país, como recrear o que não pense sair de Portugal”35. Se considerar que alguns dos costu mes dos

americanos são bem diferentes daqueles que são usais no seu país, “Para contra

-por a estes costumes especiais que contrariam o visitante outros há excelentes nos Estados unidos, que tornam agradável a viagem neste país.

Primeiro que tudo, uma ampla liberdade, uma ausência de exigências, de rigores, de regulamentos imutáveis a torturar o estrangeiro”36.

O mesmo verificou na cidade do Quebeque, “uma cidade católica, e cosmo

polita” em que as ruas estavam cheias de “elegantes damas, circulando apres -sadamente, sós, o corpo todo vestido de branco, os dentes todos vestidos de amarelo”37.

No final da viagem Mendonça de Costa fez um balanço da mesma cons -tatando que visitara um total de 72 cidades das quais 48 nos EUA, 11 no Alasca, 7 no México e 7 no Canadá (ver anexo II). Sintetizando podia dizer que o “balanço

final e moral: alguns quilos de menos no peso do nosso corpo, à chega da, e um sem número de deliciosas impressões de tão larga viagem, e também — o que não se desfaz nem mesmo com o tempo — um agradável sentimento de gratidão a toda a América que tão amavelmente nos recebeu e nos facilitou uma das maiores viagens que aqui tem sido descritas”38

Considerações finais

Embora o início do século XX seja marcado pelo interesse crescente pela viagem e pelo conhecimento de novas regiões Mendonça e Costa foi um caso excepcional pelo número e variedade de viagens que realizou.

Como referia um seu contemporâneo

"...Verdadeiro apaixonado pelo turismo, dedicou uma parte da sua vida a viajar. Percorreu todos os países da Europa (...); o norte da África, a China, o Japão, tendo sido o primeiro portuguez que atravessou a Ásia no Transiberiano e no Mandchuriano; visitou a Terra Santa a Assyria; a América do Norte e o México, (...) Tomou parte em quasi todos os Congressos da imprensa bem como

Dos EUA ao Oriente: as viagens de Mendonça e Costa no início do século XX

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35GCF, nº422, p.212. 36GCF, nº422, p.212. 37GCF, nº425, p.261. 38GCF, nº443, p.255.

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Anexo I Viagem ao Oriente Anexo II Viagem à América GCF, nº 448 de 16/8/1906, p.448 GCF, nº 406 de 16/11/1904, p.357

nas reuniões do Congresso Internacional dos Caminhos de Ferro. Esteve na Austrália (…) as suas Notas de Viagem, feitas sempre com escrupulosa exactidão, descrevendo os lugares que visitou e os costumes dos povos por uma forma simples e despretensiosa mas que revela um fino espírito de observação, não lhe faltando um comentário apropriado e um dito espirituoso a sublinhar cada acidente (...)”39

Os relatos de viagem que nos deixou são um elemento precioso para, por um lado, se perceber como no início do século XX se viajava nos diferentes países e, por outro, se conhecer as características dos comboios ou das estações.

Os relatos são também uma importante fonte de informação sobre as regiões que Mendonça e Costa visitou e, sobretudo, um “olhar” de um europeu sobre outros continentes e outras culturas, de que neste texto apenas fizemos a primeira abordagem de uma investigação que temos em curso.

Ana Cardoso de Matos / Elói de Figueiredo Ribeiro

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Conto “A Viagem” de Sophia de Mello Breyner:

a orfandade do desejo na diáspora dos lugares

GILDANUNESBARATA

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Resumo do Conto:

Um homem e uma mulher fazem uma viagem de carro. Percorrem uma estrada e ao chegarem a uma encruzilhada escolhem um caminho, no entanto a meio do caminho notam que se enganaram e tentam regressar à encruzilhada mas já não a encontram. Continuam a viagem.

Chegam a uma parte da estrada em que têm que optar por uma colina com árvores ou uma planície e optam por subir a colina para poderem avistar todos os caminhos a fim de encontrarem o caminho certo que os conduzirá ao destino. Ao chegarem à colina, avistam um cavador e perguntam-lhe pela encruzilhada. O homem diz para esperarem um pouco. Enquanto esperam bebem água numa fonte. Quando regressam da fonte, o cavador já não está lá. Decidem voltar para o carro e ir na direcção que o cavador lhes tinha indicado, mas o carro já não estava lá. Resolvem voltar à fonte que também desaparece.

Seguem a estrada e passado algum tempo encontram uma casa. Batem à porta e ninguém abre. Arrombam a porta e encontram a casa vazia com uma lamparina de azeite acesa, roupa estendida no arame e pão e vinho numa mesa. Decidem voltar à estrada, mas a estrada já não existe. Tentam reencontrar a casa mas não a avistam.

A mulher está cansada. O homem insiste no sentido de continuarem. O per -cur so é atravessado por um regato, uma bilha, um tarro, um lenhador, um rio…

Tentam de novo encontrar a estrada. Retomam a caminhada, ouvindo vozes que rapidamente se distanciam.

Chegam ao fim da floresta, já noite. Apercebem-se que estão perto de um abis mo. Tentam seguir um carreiro rente ao abismo. O homem escorrega. A mulher tenta alcançar o homem, percebe que acabará por cair assim que as raízes que agarrava romperem da terra. E só avistando escuridão pensa que para lá do abismo estará alguém…

*

Poderíamos indagar da necessidade de partir. Poderíamos indagar da neces -si dade de viajar. Mas de que se trata quando se fala de viagem?

A viagem uterina, interrompida por um parto, por gritos agudos, des medidos, desgarradamente solitários e nus? O momento do parto, o momento que deforma,

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desfigura a viagem tranquila no útero?

Na paz de uma noite antiga, há qualquer coisa que irrompe, uma fenda, uma ferida. Termina uma viagem. Começa uma outra. Como se se tivesse ultra passado toda a companhia da solidão e se se ambicionasse a companhia do mundo sombreada por meteoritos e oceanos.

O momento do nascimento, o erguer da voz arrancada aos confins do uni -ver so. Trocar alguém por outro alguém, obrigar alguém a responder, a configurar o silêncio.

Percebe-se então que uma viagem termina, que outra segue.

A viagem é uma feição muito importante da escrita de Sophia de Mello Breyner.

Na sua obra, a viagem é uma provocação que contém uma dimensão de beleza que transporta mais do que a sua própria beleza. É o acentuar de uma necessidade de interpelar um espaço de desiderato ou uma lacuna que denuncia insuficiências e incumprimentos vivenciais. Para a autora, em salutar diálogo com as palavras de Ortega y Gasset: “A vida é, na sua mais primária essência, interrogação, ou, o que é igual, incerteza, impossibilidade de contentar-se com as coisas, com o que está aí agora e obrigatoriedade forçosa de antecipar o que serão”.1A viagem é um eixo do vórtice transformador do enigma em degraus de

vida. Na sua essência, a viagem é a convergência originária dos arcanos meta -físicos que se fazem vida. É uma forma de desvio transcendente à revelação mais alta de visões imanentes. Por vias diferentes, a viagem violenta o que quer definir, agarrar, capturar.

O que é que se cumpre numa viagem?

Cumpre-se um combate. O assassinato de uma liberdade por um crime livre. O viajante é sempre um ente tenso e menos errante do que se pensa. Ele sabe muito bem que o não viajar o fará mais errante do que a partida. Um abutre ao ficar pode agarrar a podridão, mas nunca o dom de viajar. O ficar alisa as almas a uma ditadura pequena. A ditadura da viagem é sempre maior. O via jan -te enfrenta a entrega plena à vida, ainda que conduzida por quietismo ou por inacção espaciais. A viagem implica risco, a preparação para ser num caminho que para lá de conhecido é olhado com um gesto de solenidade.

Todas as viagens são solenes, inaugurais.

Simbolicamente, a autora recorre à “encruzilhada” profundamente enrai -zada em tradições de literatura sobre viagens. Diz: “E, dentro do carro que os levava, a mulher disse ao homem: — É o meio da vida. Através dos vidros, as coisas fugiam para trás. As casas, as pontes, as serras, as aldeias, as árvores e os

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rios fugiam e pareciam devorados sucessivamente. Era como se a própria estrada os engolisse. Surgiu uma encruzilhada. Aí viraram à direita. E seguiram”.2

A “encruzilhada” é um ponto neutro, um ponto à semelhança do “ponto cin -zento” de que fala Klee, um ponto que pode ordenar ou desordenar tudo para sempre. Ponto não dimensional, destemido. Norte. Sul. Este. Oeste. As pos si -bilidades a seguir diante de inúmeras alternativas. Qual o caminho? A angústia instala-se. A escolha é imprescindível para a continuação de uma viagem que responda à insuficiência de respostas e faltas de um mundo parturiente, nos recessos criativos deste.

A mulher do conto “A viagem”, diz a certo momento: “ — É o meio da vida”. O passado foi descontinuidade. O futuro colherá a descontinuidade. O conto desenrola-se na translação do tempo/espaço que determina um movimento de circularidade, um aprisionamento dos mesmos. A mulher quer tudo agarrar, possuir. Por fim, até o precipício julga controlar (“ — Do outro lado do abismo está com certeza alguém. E começou a chamar”3).

É a luta contra a morte das suas ilusões através de mais uma ilusão redentora de todas as outras: o chamar alguém. Exorcizar todos os momentos ilusórios fintando a morte — a sua última ilusão. Como num sonho que reabre a realidade, remetendo-a para a verdade do sonho.

A mulher do conto “A viagem” diz-nos que é preciso iludirmo-nos. Ignorar a morte através da ilusão da mesma — qualquer coisa do lado de lá. Alguém que contribua para o fechamento da verdade e a abertura à ilusão. Uma pressa que decorre do desespero que em nós produz o esperar, a estabilidade fátua das coisas, o influxo delas poderem dar-nos apenas o que não está à nossa dispo sição guindando-se no advento do nada, lançando rebentos do agora doméstico, intra-humano, dominador. Um escorço finito a abrir as estrelas que são sempre.

Num tom de brevidade e despojamento, a autora não coloca nenhum impe -dimento à viagem do casal que logo depois não convoque mais ilusão no olhar seguinte, a não saciedade que inaugura a falha ontológica da transgressão seguinte em dádiva iluminativa de pó.

Depuração, limpidez, precisão são algumas das palavras-chaves para esta escrita desvelada sempre na redenção e para a viagem descrita quase sem des -crição, sem cortejo. Não é preciso explicar o porquê da viagem. Viaja-se porque se viaja. A procura não tem que ser explicada com nenhum tipo de artifício. Ela estala, escreve, pinta utilizando a carência no carvão, pincel, tinta-da-china ou Conto “A Viagem” de Sophia de Mello Breyner: a orfandade do desejo na diáspora dos lugares

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2Sophia de Mello Breyner Andresen, “A Viagem”, Contos Exemplares, s/l, Figueirinhas, 1985,

p. 105.

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no inflectido do corpo fugidio. A inquietação não pressupõe que a viagem seja inquieta, mede somente a suicidária abertura que inter seccionando ânsia com posse multiplica o sonho numa demanda perseverante do esca tológico. Pelo contrário, o casal manifesta uma vontade que o faz prosse guir (“A mulher porém entornou a cabeça para trás e respirou profun damente o cheiro das árvores e da terra. Estendeu a mão no ar e na ponta dos seus dedos poisou uma borboleta. — Ah — disse ela —, mesmo perdida vejo como tudo é perfu mado e belo. Mesmo sem saber se jamais chegarei, apetece-me rir e cantar em honra da beleza das coisas. Mesmo neste caminho que eu não sei onde leva, as árvores são verdes e frescas como se as alimentasse uma certeza profunda. Mesmo aqui a luz poisa leve nos nossos rostos como se nos reco nhecesse. Estou cheia de medo e estou alegre”4, diz a mulher). Uma balança interior fá-la prosseguir no caminho que a

solidão interna das coisas externas adensa. A deser ção de si corresponde ao éter mister último do eco do que em si persegue.

É altura do encontro com as dádivas da terra, o estado primordial: “Encon -traram uma sebe carregada de amoras. — São maravilhosas! — Disse a mulher. O homem colheu um punhado de amoras e estendeu-as na palma da mão à mulher. Ela provou e tornou a dizer: — São maravilhosas! Rindo, começaram os dois a colher amoras e, tendo reunido uma grande quantidade, sentaram-se no chão a comer. A luz oblíqua da tarde passava entre os troncos escuros e acendia o verde das ervas”5). Porém, de tudo o que tiveram só um vislumbre balouçante perdura.

Não fosse uma viagem o ressoar. Ressoam nos búzios os mares viajados. Ressoam nos mares os ventos em mastros longos e não duráveis. Ressoa, mas não existe. De álcool e oxigénio sente-se algures algo de invulgar importância em queda e cisão.

Os obstáculos de uma vida? Os obstáculos de uma viagem?

A vida é incriada, mas tudo o que invoca é imaginoso. Há flores carnívoras, de espessuras licorosas e de cinza na vida da incomensurável totalidade das coisas. A viagem, também ela, é criada no incriado da vida: “o rio”, “o cavador”, “a fonte”, “as amoras”, “a bilha”, “o tarro”, “o lenhador”, “as vozes” são exis -ten tes apenas no recorte ilusionista da viagem?

Todos os lugares benignos ultrapassados pelo fito da voragem em alcançar o “lugar maravilhoso”, o misterioso lugar que promete a completude da feli cidade (“E ela imaginou com sede a água clara e fria em roda dos seus ombros, e imagi -nou a relva onde se deitariam os dois, lado a lado, à sombra das folha gens e dos frutos. Ali parariam. Ali haveria tempo para poisar os olhos nas coisas. Ali haveria

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4Ibidem, p. 120. 5Ibidem, p. 119.

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tempo para tocar as coisas. Ali poderiam respirar devagar o perfume das roseiras. Ali tudo seria demora e presença. Ali haveria silêncio para escutar o murmúrio claro do rio. Silêncio para dizer as graves e puras palavras pesadas de paz e de alegria. Ali nada faltaria: o desejo seria estar ali”6).

Todos os obstáculos, transversais à beleza da viagem, são sublimados através de um promitente “lugar maravilhoso”?

Beleza — palavra fundamental neste conto. Beleza ou perdição cansada à espera de esperança? A beleza sem nada a temer enquanto houver esperança. A esperança alimentada pela perdição da beleza, a beleza ligada à aura. Uma perdura recordada (a beleza), a outra (a esperança) recua/avança para o “lugar maravilhoso” a conquistar. Terá a “mulher” conquistado o “lugar maravilhoso”? Terá conquistado a realização da sua vida?

A punição da mulher por uma eventual não conquista não é o precipício, como se possa imaginar pelo desenrolar do conto. Em nosso entendimento, a puni ção de uma vida não vivida em plenitude não é a morte. Amedrontam-nos com a morte as culturas ocidentais, mas a morte ignora-nos uma vida inteira e é a única coisa que não retira nada à vida para seu proveito. É a mais das indefesas — mártires calamidades, não sendo calamidade nenhuma, se acharmos mistério igual no que a vida é e no que nela há.

A “mulher”, diante do abismo — precipício, consegue agarrar a sua vida toda, o seu trajecto. O “cavador”, o “rio”, a “fonte”, a “encruzilhada”, todos os rastos, estão ali à espera, finalmente à espera. A “mulher” pode reaver o instan te, se não avançar para a criação de uma nova ilusão. A “mulher”, porém, não aceita a desilusão — o fechamento final, e remete para uma ânsia nova — alguém que a socorra (nova ilusão).

O abismo para que a autora aponta é, para os muitos estudiosos deste conto, o terror da morte, o terror do vazio. Pergunta-se: Porque aterrorizará mais o confronto com o desconhecido da morte do que a própria vida, se incognos cíveis foram os momentos probatórios da mesma?

A “mulher”, no momento da queda, não cai sozinha. Amparada por todas as suas ilusões, ela redime as ilusões do “cavador”, do “rio”, da “fonte”, de tudo o que encontrou. Talvez o cavador precise daquele momento, a fonte transborde, o rio siga. Não é um engano ou erro a possível morte. A possível morte é o momento não ilusório que pode convocar a verdade do ilusório.

A “mulher” poderá conhecer a realidade do homem que cavava (seria mesmo um cavador ou cavava, por acaso)? O rio? O rio era um rio ou um mar amedron -tado de vastidão? A fonte? A fonte podia estar seca há muito tempo e jorrar… Conto “A Viagem” de Sophia de Mello Breyner: a orfandade do desejo na diáspora dos lugares

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O ilusório não se constitui pelo desaparecimento das coisas ou entes da percepção mais superficial do casal. A nosso ver, o ilusório reside no casal ter dessas coisas a percepção subjectivista das mesmas, ter vivido tão pouco tempo a escuta que elas reclamavam (lugares “onde só estavam escritos os gestos da vida”7). A “mulher” não perguntou ao cavador o essencial da sua vida

(pedir ajuda é só uma parte essencial da vida daquele que pede…). A mulher não incutiu no rio muito mais do que a sua manipulação através da água que poderia matar a sua sede e do prazer de nadar. A “fonte”, as “maçãs vermelhas”? É suficiente deixarmos as coisas darem-nos a beleza, sem nos dedicarmos a elas? Pergunta-se…

Esse é o comportamento do turista e não do viajante. O viajante permuta essências, fica mais pobre, desgasta-se, não só se enriquece. O turista, de tão enriquecido, vai pobre até ao destino de regresso.

Sophia de Mello Breyner dá-nos ainda o terror desta viagem sem exagerar nesse terror (“Ambos ficaram mudos. Depois a mulher deixou-se cair no chão, e, estendida entre as pedras, chorou com a cara encostada à terra”8). Dá-nos o

medo sem exagerar esse medo (“Agora tenho sempre cada vez mais medo. Tudo desaparece. — Estamos juntos. — disse o homem”9). O pasmo rente à dúvida.

A brevidade a que tudo atribui não retira importância à perda, mas não acentua demasiadamente a falta. Há um equilíbrio, uma inexplicável justa medida para um trajecto de religação, uma religação sem resposta.

Na verdade, a “mulher” sente uma falta ontológica que naufraga em perdas que se sucedem. Pode ser um capricho sentir falta muito tempo, por isso, ela sente falta algum tempo e deixa para trás o objecto perdido. O tempo da vai -dade. A vaidade dos homens perante o desapego do curso da vida. Também a vanidade enquanto o vão/efémero acontecimento de tudo. Procurar cons tan -temen te um “lugar maravilhoso”, não será uma vaidade da consciência?

Um lugar pesado e denso, de difícil respiração, é a recompensa para quem procura lugares de claridade. É preciso respirar dificilmente para arranhar a verdade. Depois de muito ver e ouvir, há que embalar a escuridão com mais escuridão… O dom do precipício, a sorte de confrontar o abismo, nem que seja uma única vez…

A viagem ensina a viagem. A vida ensina a vida. A nossa atenção/dedicação ao mundo é o culto que as coisas pedem. Uma consciência atenta é a que decifra algo mais do que a cifra de uma coisa. Existir é um exercício que reflui sobre

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7Ibidem, p. 112. 8Ibidem, p. 113. 9Ibidem.

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a vida. O que vive, existe no refluxo do que liberta. Impressões brevíssi mas, o corpo vaza-se em suspensão.

Em relação ao casal do conto “A Viagem”, nunca estes assumiram o estado edénico antes da chegada ao éden? Porquê? Porque é que nunca houve a assumpção de que já lá estavam? Porque é que as delícias vindouras são sempre mais gratificantes do que as presentes e mais operantes no momento futuro? Não estavam já todas as coisas suficientemente acesas (“Todas as coisas pareciam acesas”10)?

Misteriosamente, a viagem do casal e a viagem da vida descem com as delí -cias que oferecem. Emanam da natureza sinais que pousam na cara, nos ombros do casal sem abraço. A “mulher” estende para o homem as mãos abertas, com as palmas viradas para cima.

A “mulher” não repete os mesmos gestos, não repete as mesmas palavras e o que diz inteiramente o vento arranca inteiramente à sua boca.

Ao longo de uma vida, ninguém decora as palavras como sendo moduladas por um canto. Acendem-se palavras que ocupam espaços visíveis com a sua forma, densidade e peso. Palavras que são só o nome das coisas. Palavras que não reúnem o disperso ou o brilho do que nomeavam…

Será que a “mulher” nomeou devidamente as coisas? Será que nomeou devidamente o nome da sua vida? E o precipício, não será a nomeação do precipí -cio o nome da vida? A “mulher” não teve apenas um sucessivo número de perdas. Ela teve o ensinamento dessas perdas. Porque é que a autora não enfatiza o ganho do desaparecimento? Quantas coisas, nas nossas vidas, não são redimidas pelo desvanecimento dessas mesmas coisas?

A “mulher” está condenada a inventar novas soluções para uma estação que é paragem. Ela não parece procurar a sua liberdade nem a do parceiro ou da natu reza. Ela parece procurar o “lugar maravilhoso” que pode não ser o lugar da sua felicidade. A sua facticidade corre atrás dos factos ou os factos não são a facticidade da sua vida? Não percebemos. Não percebemos se este casal é feliz ou não é feliz. Também não se sabe se o que procuram, procuram com força. Fal ta força a esses não rostos. São porosos demais. Cabe lá tudo. Podem ser o que quisermos. São atirados para uma viagem que não sabemos se quiseram mesmo fazer.

Por fim, a “mulher” não suporta o fim da ilusão, o momento da transpa -rência e quer envolver um outro (uma alteridade) no processo ilusório, no jogo perigoso de não aceitar o fim do princípio da manifestação.

O homem, ao contrário, aceita ou não aceitando, a autora não nos dá conta de nada.

Conto “A Viagem” de Sophia de Mello Breyner: a orfandade do desejo na diáspora dos lugares

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A exaltação, a exultação, o clamor, a alegria de ver ir e vir o êxtase, o contí -nuo avançar ordenam o tumulto do mundo para o dia da celebração: um lugar esburacado.

Talvez o dia da celebração não seja o “lugar maravilhoso”. Talvez um lugar maravilhoso tenha os buracos dos lugares mais frágeis. Afinal, o “lugar maravi -lhoso” não é dado em nenhum momento da narrativa ou será dado ao longo da mesma sucessivamente? E se não é oferecido, será porque a ordem natural do cosmos tem um fundamento para a sua não vinda?

A “mulher” não esconde a inquietude na modulação do acaso ou na ima -nência/transcendência das coisas. Todas as situações existenciais conferir--lhe-ão um sentido novo purificador? Não sabemos.

A mulher não muda de rota, não afunda a ilusão do “lugar maravilhoso” na aquisição de uma sabedoria. Não estará frente a frente com o “lugar maravi -lhoso” e inúmeras vezes reiterando a sua procura cega? Preside à sua cegueira levar o parceiro consigo e cegá-lo ainda mais. Vendas. Cegueira perpétua a deste casal, já que no momento da morte não acordam.

Não julgamos ter sido tempo perdido o que uns pensam ser tempo perdido. Determinados gestos como colher amoras ou fazer um ramo, que sentido acres -centam a uma vida?

Apanhar flores com as raízes para levá-las, deslocá-las, é um momento epifânico? E porque é que essas flores não cederão à deslocação? O deslocar constantemente o encanto da surpresa da natureza pelas nossas voluntariosas demandas de certezas, será o mais valioso? A mulher não sabe se o “lugar maravi -lhoso” terá as delícias que ouviu a outros. Diz a autora/narradora: “Era um lugar onde nunca tinham ido. Nem conheciam ninguém que lá tivesse estado. Só o conheciam do mapa e de nome. Dizia-se que era um lugar maravilhoso”.11

Além. Além. A dimensão ampla das coisas sempre no além. Tudo um meio para um fim mais precioso que o meio? — O além.

De forma inexplicável, as coisas dialogantes só podem dialogar num lugar distante? Porquê? Porque é que no momento presente são incomunicáveis?

“Ali”? Porque não, aqui, agora?

“Ali” — um lugar condenado a ser livre. Um lugar sem desculpas para a não perfeição. Um lugar condenado a ser luminoso, lançado ao abandono da falsi -dade de estados de consciência. Um lugar sem justificações, quase desonesto.

Gilda Nunes Barata

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Miguel Torga: a África colonial e a sua percepção

do outro

ISABELMARIAFIDALGOMATEUS

University of Birmingham

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1. Introdução

Desde o início da Literatura de Viagens europeia, cujo marco periodológico se situa no século XV e surge ligada à época das Descobertas de quinhentos, que a questão do Outro é extremamente relevante. O encontro e o olhar imediato do povo descobridor em relação ao indígena tende em geral a estabelecer-se de forma comparativamente superior e através duma visão eurocêntrica. Foi esta perspectiva de superioridade do Mesmo em relação ao Outro que imperou na Europa durante a conquista e o estabelecimento do poder colonial até ao século XX inclusive, como o atestam entre outros, por exemplo, Mary Louise Pratt em

Imperial Eyes: Travel Writing and Transculturation, Tzvetan Todorov em La Con -quête de l’Amérique: La Question de l’Autre ou Edward Said através da obra Culture & Imperialism. No caso tardio da África portuguesa só cessou com a

descolonização, que ocorreu entre 10 de Setembro de 1974 e 11 de Novembro de 1975, após a queda da Ditadura em Portugal com o 25 de Abril de 1974 e o consequente terminus da Guerra Colonial.1

É precisamente na qualidade de opositor ao regime de Salazar e de não apoiante da Guerra Colonial entre Portugal e a África, que se iniciara a 4 de Feve -reiro de 1961 em Angola, sob a iniciativa do MPLA, e se alargara em 1963 à Guiné e em 1964 a Moçambique, que Miguel Torga se desloca a África. O Eu parte com o intuito de se encontrar através da sua viagem actual e de se rever, no sentido colectivo, nas consequências de uma muito anterior — a viagem dos Des co bri -mentos portugueses. É, portanto, simultaneamente uma viagem indi vidual e colectiva como o documenta o poema sugestivamente intitulado “Viagem”, pois é com ele que Torga inicia o Diário XII e anuncia a sua desloca ção física, via aérea, a África. Preconiza igualmente para esta viagem “um adeus eterno” e quase se sente como um dos navegadores de quinhentos.

Assim, com esta visita de Torga a África, que decorreu entre 17 de Maio e 12 de Junho de 1973, pretendemos mostrar a viragem da sua percepção do Outro africano e contrapô-la à da presença portuguesa vigente em África, que coincide, afinal, com a de cinco séculos da nossa história com pé nesta terra. É através da

1Marques, A. H. Oliveira, Histoire du Portugal et de son Empire Colonial. Paris: Éditions

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2Moreiro, José Maria, Miguel Torga e África. Lisboa: Universitária Editora, 1996, p. 19. Esta obra

de edição bilingue é inteiramente dedicada à viagem de Miguel Torga por África, como o próprio título deixa adivinhar, e neste dedica-lhe uma parte onde designa Torga de “Cronista de Excepção”.

3Torga, Miguel, Diário XII. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1999, p. 1253.

4As várias tentativas de colonização do interior africano com população originária da Metrópole

(sobretudo os degredados) revelam-se infrutíferas ao longos dos séculos. E mesmo durante o maior afluxo da história da colonização da África lusófona pelos portugueses, que ocorreu entre 1960 e 1970, os emigrantes, na sua maioria provenientes das camadas rurais empobre -cidas, refugiam-se nas cidades e aí procuram fugir ao trabalho árduo do campo, sua anterior ocupação. A este respeito e para uma detalhada evolução desde o século XVI até ao século XX da colonização africana em geral e, em particular, do povoamento rural de Angola, que se processou de forma idêntica nas outras colónias, veja-se a obra de Gerald J. Bender Angola

Under the Portuguese: The Myth and the Reality (London, Nairobi, Lusaka, Ibadan: Heinemann,

1978), Part II. White Settlement, pp. 55-129.

sua atitude de rebeldia de homem livre, que por vezes se auto-flagela pelo peso da circunstância de ser ele próprio português e, como tal, colonizador, do seu comportamento de um visionário e de um “cronista de excepção”2que o Mesmo

se confronta com a alteridade do Outro.

2. A alteridade africana nas obras A Criação do Mundo — O Sexto Dia e Diário XII de Miguel Torga: no humano (branco e negro); no telú rico (a paisagem e a caça); na arquitectura; na língua e nas crenças.

2.1. Alteridade em relação ao humano

A alteridade do Outro em Miguel Torga no que respeita a África refere-se como é evidente ao humano, de um lado o branco e do outro o preto, através da sua arquitectura, da sua língua e das suas crenças, mas passa principalmente pelo telúrico, que compreende a paisagem e a caça. Por essa razão, Torga resume à natureza a única possibilidade de conhecimento da terra africana:

Nova Lisboa, 30 de Maio de 1973 — O pé escreve as unidades; o auto mó

-vel adita as parcelas; o avião mostra a soma. Das três maneiras me tenho servido para levar desta terra uma imagem condigna. Da terra, repito. A dos homens não requereu tanto esforço. Igual por toda a parte, ao primeiro relance fica entendida. (…) Teimo, pois, na prospecção da natureza, o único mistério que resta em Angola.3

Contudo, como constatamos pela mesma nota do Diário, esta empresa de deci -fração revela-se-lhe ingrata, porque esta imensa terra continua por desbravar, intacta sem a única marca de presença humana.4

Isabel Maria Fidalgo Mateus

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5Torga, Miguel, Diário XII, pp. 1248-9. Gerald J. Bender no capítulo II “The Dynamics of

Miscegenation” do seu livro acima citado compara e contrasta os efeitos da colonização portuguesa no Brasil e em África e entre outras razões apontadas, como a de um maior número de colonos brancos de diferentes nacionalidades, o seu pensamento vai ao encontro dos argumentos apresentados por Miguel Torga.

6Mateus, Isabel Maria Fidalgo, A Viagem de Miguel Torga. Coimbra: Gráfica de Coimbra, 2007.

A Autora refere-se a este método, que o escritor Miguel Torga utiliza sempre que viaja, assim o definindo: “O método de prospecção consiste em o Mesmo (o eu) perscrutar a realidade do Outro para o conhecer e, consequentemente se encontrar a si próprio, formando a sua identi -dade”(p. 28). Note-se que na citação referente ao Diário XII, datado a 30 de Maio de 1973, de Nova Lisboa, Miguel Torga utiliza inclusive o nome “prospecção”, que remete evidentemente para o método em causa.

Começando pelo aspecto humano é bem notória a desilusão do escritor-viajante perante o que observa no território africano e está patente naquilo que escreve no seu Diário XII quando, por exemplo, visita Cela e que reforça igual -mente em A Criação do Mundo — O Sexto Dia. Também em ambas as obras recorre à analogia entre a colonização do Brasil, que conhece como emigrante, e o que constata em África. Entre muitas outras possíveis, vejamos então a nota de Cela datada de 21 de Maio:

Não há dúvida: o português foi incapaz de repetir nestas paragens africa -nas o milagre brasileiro. Lá enraizou-se; aqui, não. Certamente porque lá o senhor e o escravo eram ambos emigrados e colonizadores. Estrangeiros os dois, tinham a mesma necessidade de sobrevivência e de entendimento.5

Do que a citação deixa adivinhar, subentende-se que o Mesmo e o Outro não se encontram em sintonia. De facto, quando em território africano, o Eu reco nhece no Outro diferentes graus de alteridade inerentes às situações de contraste exploradas pelo escritorviajante munido do seu método prospectivo de apreen -são da realidade africana.6Estas foram originadas pela forma diver gente de apro

-ximação dos descobridores e viajantes portugueses e europeus da época das Descobertas e dos séculos sucessivos perante as terras achadas e colonizadas e os seus nativos: a pretensa superioridade europeia racial e cultural.

Consideremos em primeira instância o encontro de Torga com um Outro com o qual não lhe é possível identificarse. Tratase do indígena que não foi acultu -rado ou assimilado, pois não fala a língua portuguesa, nem entende o branco nas suas diferentes manifestações culturais:

While the number of Africans enrolled in school increased over tenfold during the final quarter century of colonialism, the poor quality and rigidity of the educational system precluded all but 5 per cent of the Africans enrolled from completing the four years of primary school. Thus, the one instrument which Portugal possessed for effectively assimilating

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7Bender, Gerald J., Angola Under the Portuguese: The Myth and the Reality. London, Nairobi,

Lusaka, Ibadan: Heinemann, 1978, p. 220. Bender refere que o processo de assimilação em Áfri ca se operava em três etapas: “the destruction of traditional societies, followed by the inculcation of Portuguese culture and finally the integration of “detribalized” and “Portuguesized” Africans into Portuguese society” (p. 219). Este Autor opina que, ao contrário do Brasil, em África nem o primeiro estádio se chega a implementar.

8Krysinsky, Wladimir, “Discours de Voyage et Sens de l’Altérité”, in A Viagem na Literatura.

Cursos da Arrábida. Mem Martins: Europa-América, 1997, pp. 235-263.

9Torga, Miguel, A Criação do Mundo — O Sexto Dia. Coimbra: Gráfica de Coimbra, 1994,

pp. 172-3.

10 Torga, Miguel, A Criação do Mundo — O Sexto Dia, p. 173. 11Torga, Miguel, A Criação do Mundo — O Sexto Dia, p. 169.

Africans in Angola was accorded such a low priority and was so poorly utilized that only a minute proportion of Africans were ever meaningfully exposed to Portuguese culture, let alone desirous of assimilating it.7

Havendo neste caso alteridade radical ou absoluta, o Eu não consegue ultrapassar a barreira de duas culturas diferentes.8O Outro também não se dá a conhecer.

Na citação que se segue estão expostos estes dois pólos irreconciliáveis: O alívio com que deixava lugares aonde a curiosidade me levava e o instinto de conservação não conseguia distinguir o rancor da cordiali dade! Homens, mulheres e crianças olhavam-me no mesmo silêncio enigmático e pesado, ou sorriam-me ainda mais inquietadoramente.9

Nunca até então o desconhecido da viagem, corporizado na alteridade do Outro, se lhe revelara tão confrangedor e a inibição do Eu perante o indígena não é senão a reacção consciente de alguém que sabe de antemão que do (seu) mínimo gesto mal interpretado pode resultar o acto irreversível da morte:

E experimentava pela primeira vez a sensação penosa de ter medo diante de semelhantes a quem nunca fizera mal e gostaria até de apertar a mão fraternalmente. Mas o ar que se respirava de norte a sul estava conta -minado.10

Ao lado deste nativo, que habita preferencialmente as zonas rurais, o Eu des -cortina outro tipo mais citadino: o indígena aculturado, onde se notam de forma declarada duas tensões rácicas — a branca e a negra. Neste caso o Mesmo integrou o Outro. Torga sente empatia por ele e critica o etnocentrismo da colonização branca que vê o Outro como inferior a si, com expressão na forma como o trata:

No máximo, uma certa afectividade temperamental concedia ao negro a precária dignidade de criatura inferior, primária, infantil, incapaz de progresso, sempre necessitada de paciência e castigo.11

Isabel Maria Fidalgo Mateus

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12Bender, Gerald J., Angola Under the Portuguese: The Myth and the Reality, p. 103. Bender

diz que “Before the legislative reforms of 1961 (durante o indigenato), assimilados were those Africans and mestiços whom the Portuguese (legally) considered to have successfully assimilated Portuguese culture and language. However, both the private and public sectors paid Africans, including assimilados, lower wages than those paid to whites. The justification was that the salaries merely reflected the differential productivity of the two races”.

13Bender, Gerald J., Angola Under the Portuguese: The Myth and the Reality, p. 103. 14Macqueen, Norrie, The Decolonization of Portuguese Africa: Metropolitan Revolution and

the Dissolution of Empire. London and New York: Longman, 1997. Para um estudo detalhado

da acção dos nacionalistas e da sua afirmação contra o poder colonial português nas colónias ou Províncias Ultramarinas veja-se o segundo capítulo desta obra intitulado “Nationalist Consolidation and the Wars of Liberation”, pp. 17-63, e ainda o sucinto mas elucidativo artigo acerca dos diferentes grupos nacionalistas em África e da sua natureza de Patrick Chabal “The end of empire in “Lusophone Africa: Portugal and the anticolonial wars, 1960-1974”, in Portuguese, Brazilian And African Studies (Earle, T. F. and Griffin, Nigel (Edited by), Warminster: Aris & Phillips Ltd, 1995, pp. 219-333).

Afinal o que o Governo português queria fazer parecer apenas uma diferença cultural entre europeus e indígenas baseava-se no princípio descriminativo da raça. Segundo o extracto da obra Angola under the Portuguese que se segue, esta inferioridade atinge inclusivamente os assimilados12a que apenas uma

minoria africana consegue ascender:

In the cities there was little basis for racial harmony: Portuguese peasants displaced Africans from the lesser skilled positions they traditionally held; there were large disparities in wages paid to whites and blacks (including assimilados); and the material and (presumed) cultural differences between Europeans and Africans were too great for meaningful social intercourse to occur.13

Ainda que Torga não aplauda na sua totalidade a conduta de alguns dos represen tantes da voz dos indígenas oprimidos — os nacionalistas —, percebe a perspectiva do nativo.14 Homens cultos, educados muitos deles com matriz europeia na

Metrópole ou até no estrangeiro, sendo alguns mestiços e assimi lados, insurgem-se através do movimento anti-colonial de 1950 contra o poder dos portugueinsurgem-ses em África. Há neste caso uma identificação com o Outro na sua alteridade. Também a opinião de Torga no território nacional diverge da do Governo portu -guês, quanto ao entendimento e valorização dos valores culturais do povo que tão bem elucida no livro Portugal e, sobretudo, não partilha dos ideais políticos de opressão, de falta de liberdade e de censura do Regime do Estado Novo, que expõe em toda a sua obra. Rendido às atrocidades da colo nização portuguesa, o Eu toma o partido do oprimido, embora o modo como os seus mandatários se rebelam não caiba na humanidade de Torga. Este em A Criação do Mundo —

O Quinto Dia não acalenta ódio contra o seu inimigo; no Aljube presta cuidados Miguel Torga: a África colonial e a sua percepção do Outro

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Fig 1 — Odoric de Pordenone, Descriptio orientalium partium, (c.1330) Translations des martyrs de Thâna (fonte: Mandragore, base des manuscrits enluminés de la BnF).
Fig 1 — Odoric de Pordenone, Descriptio orientalium partium, (c.1330) Translations des martyrs de Thâna (fonte: Mandragore, base des manuscrits enluminés de la BnF).

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