• Nenhum resultado encontrado

A descrição geográfica do Calaminhão

O descobrimento dos sentidos na Peregrinação

2. O discurso informativo-antropológico da Peregrinação

2.1. A descrição geográfica do Calaminhão

Na Peregrinação Mendes Pinto utiliza, além das “autoridades”, distintos procedimentos para dar verossimilhança ao seu relato: umas vezes ele afirma ter vivido ou visto com seus próprios olhos, outras vezes ele diz que lhe contaram por pessoas dignas de confiança, que soube/ leu em fontes históricas citadas diretamente no relato ou retiradas de outros textos da época, transcritos direta - mente sem citar a fonte.

Na viagem ao reino do Calaminhão o primeiro motivo de admiração para o narrador é a paisagem. O contato inicial se dá pelos sentidos, especificamente, a impressão visual que toma conta do escritor, do novo mundo que se abria a seus olhos. A capacidade que tem o autor de ver é uma das características da sua escrita, é o que se convencionou chamar de o “visualismo” de Mendes Pinto. E é atra vés da visão que o escritor viajante se deixa encantar pela diversidade das cidades, da flora, da fauna e do comércio oriental. Porém, ao descrevê-la, não

Maria Alice Arruda Ferreira Gomes

714

prioriza o revestimento vegetal, chamando a atenção para a riqueza do ambiente em um caráter puramente informativo:

Daquy continuamos nosso caminho mais treze dias, vendo ao longo do rio assi de hua parte como da outra muytos lugares muyto nobres, que segundo o apparato das mostras de fora, deuião de ser os mais delles cidades ricas, & tudo o mais erão bosques de grandes aruoredos, em que auia muytas hortas, jardins, & pumares, & a fora isto cãpinas de trigo muyto grãdes, em que pacia grãde soma de gado vacum: muytos veados, antas, & badas, & tudo apac.tado por hom.s a cauallo. No rio auia infini - dade de embarcaços de remo, nas quais se vendião todas as cousas quãtas a terra produze, em grande abudancia, das quais nosso Senhor foy seruido de enriquecer a gente destas partes muyto mais que todas as outras que se agora sabe em todo o mundo, elle sabe o porque.14

A exuberância do Calaminhão é importante do ponto de vista comercial, pois a intenção primeira ao registrá-la não é valorizar o caráter estético da paisagem que circunda a fortaleza de Campalagor. É como uma tentativa de adequar o discurso à necessidade de mostrar o caráter econômico que envolve as descri - ções. Como se aquele mundo bonito só tivesse importância na medida em que

servisse aos homens, de alguma forma. Esta exposição é puramente informativa,

voltada para o uso de comerciantes e mercadores ocidentais, como se pode constatar no fragmento a seguir, que fornece uma localização exata dos tesouros deste império:

Daquy partimos hum Domingo pela menham, & ao outro dia à vespera fomos ter a hua fortaleza que se dezia Campalagor, situada sobre hua ponta de rocha metida no rio a modo de ilheo, cercada de boa cantaria, com tres baluartes, & duas torres de sete sobrados, dentro dos quais disserão ao Embaixador que tinha o Calaminhan hum grosso tisouro dos vinte & quatro que estauão repartidos pelo reyno, de que a mayor parte era em prata, o qual teria de peso seys mil candins, que da nossa conta são vinte & quatro mil quintais, o qual todo estaua em poços debaixo do chão.15

Para Alfredo Margarido, Mendes Pinto não se afasta da grelha descritiva do século XVI, visto que “(...) as descrições obedeciam a determinados códigos, que encon - tramos em textos, quer europeus quer chineses. Os códigos a serem respeitados não tinham tanto em linha de conta objetivos estéticos quanto utilitários: servirem de repositório de informações para poderes políticos e econômicos. Daí a abundância de enumerações, o registro de quantidades exatas, a precisão

O descobrimento dos sentidos na Peregrinação

715

14MENDES PINTO, Fernão (2002), p.346.

16MARGARIDO, Alfredo apud PINTO CORREIA, João David (1979), Autobiografia e aventura na

literatura de viagens: a Peregrinação de Fernão Mendes Pinto, Lisboa, Seara Nova, p. 72.

17MENDES PINTO, Fernão (2002), p.347.

18Idem, Ibidem.

19Idem, p.369.

20Idem, p.361.

21Idem, p.369.

22Idem, p.372.

de informações técnicas, a recolha de terminologia científica (relacionada com a flora e a fauna, por exemplo).” 16De fato, observamos que quando o autor men -

ciona a flora e a fauna do Calaminhão não há notação destacada, são informações puramente utilitárias. A flora é vista pela sua riqueza e a fauna pela sua diversi - dade e o seu lado prático.17

No entanto, notamos, que apesar do propósito do autor quando menciona o espaço urbano deste reino ser puramente utilitário, o sensorial surge como um dado a mais, detalhando aos ocidentais esse outro mundo. A este respeito o narrador se manifesta na descrição dos hábitos odoríficos utilizados por esta sociedade oriental na manutenção da enfermaria de Chipanocão.18

Antonio José Saraiva afirma que não há retrato na Peregrinação. Da mesma forma que quando se volta à paisagem, o retrato do Calaminhão é registrado de modo informativo, restrigindo-se a uma classificação social, etária ou utilitária. Sabemos que, neste reino, a nobreza “tratase muyto limpa & honradamente, com seruiços de baixellas de prata, & alg.as vezes douro, & a gente comum, de por cellana, & de latão. Vestem citins, damascos, & taficiras da Persia, & nos inuernos roupas forradas de martas”19, o tio do rei chama-se Monuagaruu, e é

“homem de mais de setenta annos” 20e, as mulheres são normalmente alvas e

belas “mas o que lhes dá mayor lustro he serem muyto b. inclinadas, castas, caridosas, & mauiosas.” 21A fim de o clarificar, Mendes Pinto aproxima o vestuário

exótico dos Pauileus, homens brancos desta região, da sua realidade conhecida, ao afirmar que andam “ vestidos de queimo.s de seda como Iapo.s, & comião cõ paos como Chins.” 22

O discurso informativo-científico da seqüência da embaixada ao Calaminhão gera um discurso de natureza histórica, geográfica, antropológica, nele o autor descreve os acontecimentos do percurso até o reino de Pegú, a flora, a fauna, a população, o nativo, os costumes, as festas, as religiões e os funerais. O narrador trata da sua aventura pessoal nas terras orientais, conta e informa com preten - sões científicas uma experiência real. No mesmo texto, Mendes Pinto continua con tan do uma experiência pessoal, porém, agora, puramente “espiritual”.

Maria Alice Arruda Ferreira Gomes

716

23POPEANGA, Eugenia (2002), “Viajeros en busca del paraíso terrenal” in Maravillas, peregri -

naciones y utopías: Literatura de Viajes en el Mundo Románico, Valencia, Universitat de

Valencia, pp.59-76, pp. 59 e 60.

24MENDES PINTO, Fernão (2002), pp.371-372.

25 MARGARIDO, Alfredo apud PINTO CORREIA, João David (1979), Autobiografia e aventura na

literatura de viagens: a Peregrinação de Fernão Mendes Pinto, Lisboa, Seara Nova, p. 72.

“Tanto estos viajes “espirituales” como los viajes contados “desde un sillón” suelen ser viajes puramente librescos, cuya fuente es constituida por un con - glome rado de textos mezclados en un afán, quizás, de crear una enciclopedia

del viaje, obra a medio camino entre las conocidas imágenes del mundo y los

correctores de la ilusión espacial, esto es libros que cuentan viajes reales.” 23

Estão presentes na Peregrinação tanto as descrições de lugares novos que o autor conheceu e outros de espaços sonhados e desejados. É por isto que observamos uma notação mais destacada quando o autor se refere aos homens selvagens e estranhos deste reino, esta observação faz parte da sua viagem “espiritual”, da sua aventura livresca, porque o nativo oriental é caracterizado por Mendes Pinto pela pigmentação da pele, pelo aspecto do rosto e pelo vestuário primitivo. A referência ao vestuário é registrada em função da posição social que ele ocupa e surge integrada em um processo de caracterização dos traços biológicos do seu portador:

Vimos outra nação de homens muyto ruyuos, & alg.as com alg.as sardas, & muyto barbaçudos, & tinhaõ as orelhas & os narizes furados, & nos buracos h.s reuites douro como colchetes, estes se chamauão Ginafógaos & a prouincia donde erão naturais, Surobasoy, os quais por dentro dos montes dos Laudos confinaõ co lago do Chiammay, & destes huns andão vestidos de pelles em cabello, & outros de pelles escodadas, & andão descalços, & com as cabeças sempre descubertas. Estes, nos dezião alguns mercadores, que erão comummen te muyto ricos, & que não tinhão entre sy mais que somente prata, porem desta muyta em grande quantidade.24

Para o narrador, o importante na descrição informativa da sociedade deste reino é o elemento humano que foi descobrindo e contatando no decorrer do itinerário. Alfredo Margarido esclarece que “(...) Fernão Mendes permanece fiel à imagem do Outro comum à sua época: este não é identificado pelas carac terísticas somá - ti cas, mesmo que se registrem um certo número de informações, respeitando à cor da pele, à forma dos olhos, ao corte do cabelo.” E comple menta que o Outro, para o autor da Peregrinação, “(...) é visto através do seu vocabulário, das práti - cas militares e religiosas, e através das produções agrícolas ou artesanais.” 25

Para descrever um retrato, uma paisagem ou uma cena um escritor não deve se limitar a uma visão geral; é importante haver traços que a tornem singular a

ponto de não ser confundida com nenhuma outra. O autor deve ter sensibili dade para transmitir ao leitor todas as sensações físicas percebidas no momento da viagem: as cores, as formas, os gestos, os sons, os odores, as texturas e os sabo - res. O objetivo de qualquer escritor de viagens contemporâneo é justa mente captar a essência e o caráter de um lugar em poucas frases a ponto de despertar o desejo imediato nos leitores de conhecer o país descrito. Como comentamos anteriormente o homem pré-moderno não levava em consideração este aspecto, o importante era que a escritura da viagem servisse de utilidade para a sociedade.