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de Gilgameš F RANCISCO C ARAMELO

Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade Nova de Lisboa

A

Epopeia de Gilgameš é o produto de uma longa história no que concerne à

sua transmissão textual (D’Agostino 59-78). Originalmente, e ainda antes de emergir como composição literária com uma unidade próxima da que hoje conhecemos, registava-se a coexistência de um ciclo de Gilgameš, composto por vários episódios alusivos às aventuras do mítico rei-herói que deram lugar a uma série de textos independentes, escritos em sumério, por volta do séc. XXI a.C. (Sanmartín 50-51). São conhecidos presentemente cinco desses textos, o que não exclui a existência de outros, os quais terão feito parte de um processo de justificação e de legitimação ideológica e política da dinastia e do poder. No séc. XVIII a.C., surgiram as primeiras narrativas escritas em acádico, ainda longe de constituírem uma unidade literária. Sanmartín (51) não exclui a possibilidade de algumas dessas narrativas se agruparem em séries, o que justifica que hoje as designemos por versão babilónica antiga. Entre os sécs. XV e XII a.C., o interesse literário em torno das histórias de Gilgameš foi ganhando raízes na Mesopotâmia e mesmo fora dela (Sanmartín 51), dando origem, inclusive, a traduções noutras línguas e noutras áreas culturais. É o caso da tradução hitita, que ilustra bem a difusão literária da história de Gilgameš.

Por volta dos sécs. XIII-XII a.C., o escriba Sîn-lēqi-unninni compôs aquela que ficou conhecida como a versão babilónica standard da Epopeia de Gilgameš (Sanmartín 51-52), utilizando os materiais disponíveis e dando origem a uma composição literária constituída por onze tabuinhas. Por fim, pelos sécs. VIII-VII a.C., já no período neo-assírio, é produzida a chamada recensão ninivita, tendo sido introduzida uma décima segunda tabuinha (Sanmartín 52). A longa história de transmissão textual da Epopeia de Gilgameš, com origem, provavelmente, numa tradição oral e num ciclo de lendas, ainda no III milénio a.C., desemboca assim nesta versão mais completa, que reflecte a recepção do texto no contexto cultural deste período.

O propósito da nossa abordagem consiste em proceder a uma análise do texto em duas vertentes, que acreditamos terão sido concomitantes — uma dimen são ideológica e política, por um lado, e uma dimensão sapiencial e filosó fica, por outro. O poema épico começa por exaltar a figura de Gilgameš, aludindo à con - dição sobre-humana do herói, filho da deusa Ninsun. Estamos convencidos de que

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esta ambiguidade relativamente à sua natureza — dois terços divino e um terço humano — terá contribuído para criar uma lógica de tensão e de paradoxo ao longo da narrativa. O herói almeja a imortalidade mas esta insiste em escapar- -se-lhe por entre os dedos, levando, ainda assim, o leitor ou ouvinte, o desti na - tário da história, de outrora como de hoje, a experimentar momen ta neamente essa tensão e dúvida acerca da (im)possibilidade de fugir ao destino ditado pelos próprios deuses quando criaram o homem. A tensão da narrativa reduz-se precisa - mente a essa dúvida que nos acompanha ao longo da história — saber se está ou não ao alcance do homem vencer o seu destino inexo rável. E, parado xalmente, não está, nem para Gilgameš, ainda que semi-divino.

Na primeira tabuinha, o herói é-nos apresentado e traçadas as suas carac - terísticas físicas e psicológicas. Gilgameš é senhor de uma beleza e de uma complei ção física incomparáveis e dotado de uma sabedoria e de uma coragem que o distinguem da humanidade, aproximando-o dos deuses. Mau grado esses inigualáveis atributos, regista-se, nesta fase inicial da história, uma certa censura moral do herói, que é rei de Uruk. Este mostra-se arrogante (Caramelo, The epic

of Gilgamesh 233). Oprime o seu povo e os lamentos chegam aos ouvidos dos

deuses. O móbil da acção é, na verdade, a arrogância do rei-herói que despreza o seu povo, não cumprindo assim os desígnios divinos. A confiança divina, mate - rializada na escolha do rei e assim na legitimação do seu poder, destinado a exercer uma missão ordenadora, via-se, desta forma, defraudada. O paradigma da realeza encontrava sentido na imagem do pastor, analogia que, na mentali - dade e na literatura mesopotâmicas, traduzia de forma eficaz a missão ordena - dora do rei. Ora, Gilgameš, com os seus excessos e com a sua altivez, estava nos antípodas desse paradigma e, ao invés de governar com justiça, era, ele próprio, origem de desordem.

Os deuses eram não só a origem do poder como também reguladores da ordem. O poder real não era, por conseguinte, do ponto de vista ideológico e religioso, ilimitado ou absoluto. Era concedido e confiado pelos deuses mas de forma condicional. É esse o raciocínio e a lógica que estão subjacentes a esta passa gem da primeira tabuinha. Se Gilgameš não estava a corresponder às expec - tativas divinas, os deuses encontram uma forma de o condicionar, que consiste na criação de Enkidu, um herói com um poder comparável a Gilgameš e que se destinaria a contrabalançar a sua acção desequilibrada.

Enkidu começa por significar e representar uma série de características que constituem a antítese de Gilgameš. As duas personagens reflectem a antítese entre o homem civilizado, representado por Gilgameš, e uma espécie de proto-

homem, expressão ambígua de primitivismo e de inocência ou ingenuidade, por

um lado, e de natureza selvagem e de barbárie, por outro. A natureza apa ren - temente indómita de Enkidu é, no entanto, domada pelo amor e pelo sexo da

prostituta Šamhat. A entrega ao amor e ao prazer carnal levam-no a perder o seu carácter original e a humanizar-se. A intimidade e a convivência com os animais deixam de ser possíveis, uma vez que estes fogem agora quando aquele se aproxi - ma. A humanização de Enkidu completa-se quando este come pão e bebe cerveja pela primeira vez. Efectivamente, estes simbolizavam o triunfo do homem e da civilização sobre a natureza. O paradigma do homem sedentário, agricultor, que domestica a natureza em seu proveito, era bem representado pelo pão e pela cerveja, ambos produtos da transformação e da acção humana.

Diferente, desadaptado agora ao que fora até então o seu meio, Enkidu penetra no mundo dos homens. Escutando, também ele, os ecos dos excessos de Gilgameš, resolve intervir, tornando o duelo com o herói de Uruk inevitável. A pele ja revela-se dura e demorada mas Enkidu acaba por reconhecer a superiori - dade de Gilgameš, nascendo entretanto uma amizade entre os dois contendores.

O herói de Uruk propõe então ao seu amigo a primeira aventura — rumar à longínqua floresta dos cedros e matar o seu guardião sagrado, Humbaba. Enkidu, voz da sensatez e da prudência, acompanhado mais tarde pelos anciãos da cidade de Uruk, procura dissuadi-lo do temerário intento, mas em vão. Gilgameš insiste no seu propósito, sequioso de glória, ansioso por trilhar caminhos que nunca percorreu, ávido de descobrir o desconhecido e de realizar façanhas inolvidáveis.

À entrada na floresta de cedros, os aventureiros avistam, pela primeira vez, o terrível Humbaba. Este fala-lhes, questionando-os sobre as suas intenções e pondo em causa o seu discernimento, por se atreverem a pisar estes terrenos proibidos, enfrentando-o. O guardião ameaça Gilgameš e o terror começa a apode rar-se do herói de Uruk. Pela primeira vez, este sente medo, duvidando da sensatez da sua decisão. Atemoriza-se perante o terrível esgar de Humbaba mas Enkidu incute-lhe novo alento, levando-o a recuperar a coragem. Com a ajuda de Šamaš, que envia os poderosos ventos contra o guardião, este fica mais vulnerá vel e exposto aos golpes desferidos por Gilgameš. O herói ainda vacila, hesitando em pôr fim à vida de Humbaba, mas Enkidu, mais uma vez, mostra-se resoluto e impele o amigo a matar o seu adversário. O medo que invade Gilgameš é a primeira fronteira da sua finitude, o primeiro instante da consciência dos seus limites, o primeiro vislumbre da sua humanidade.

A notícia da morte de Humbaba chega aos ouvidos de Ištar, que se deixa encantar pela formosura do herói. A deusa promete-lhe o poder e a fortuna, preten dendo desposá-lo. Surpreendentemente, Gilgameš repudia a oferta, argu - mentando com a volubilidade dos amores de Ištar e com a efemeridade das suas relações. Acusa-a de ser caprichosa e recusa assim o seu convite sedutor. A relação de Ištar com Gilgameš pressupunha e reflectia, provavelmente, o mito do casa - mento sagrado, que era um dos aspectos fundamentais do complexo ritual do Ano Novo. Efectivamente, este rito celebrava a renovação da natureza e da sua

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fertilidade, mas também era a ocasião em que se reafirmava a escolha divina e o poder do rei. O ritual hierogâmico simbolizava essa eleição, através da união do monarca com Ištar, representada por uma sacerdotisa. Era assim um tempo de reafirmação e de renovação da ordem nas suas várias dimensões (Caramelo,

O ritual de Ākitu 157-160).

Subsiste, todavia, a dúvida sobre a motivação da recusa de Gilgameš. O que terá levado o herói, rei de Uruk, a refutar a tentadora oferta de Ištar? Na lógica interna da narrativa, no domínio das relações afectivas entre as duas persona - gens, será suficiente a argumentação usada por Gilgameš, no entanto, no plano ideológico e religioso, o mito era verdadeiramente estruturante da ideia de realeza, pelo que a recusa do rei-herói se revelava ilógica. Não deixará, não obstan te, de ter o seu significado. Será que Gilgameš não se encontrava ainda preparado para a assunção do seu papel e da sua missão? Não será esse, afinal, o sentido da demanda? Alcançar a maturidade, tomar consciência dos seus limites e de que só os deuses são imortais, atingir a sabedoria e estar assim preparado para governar. A rejeição significaria não apenas o repúdio da deusa, mas sobre - tudo a recusa em aceitar o seu lugar na ordem terrena, isto é, em ser verdadei - ramente rei. Gilgameš não tinha ainda alcançado a maturidade e não estava preparado para regressar a Uruk, assumindo a sua missão.

Ištar, contrariada com a rejeição de Gilgameš, queixa-se a seu pai, Anu, exigindo vingança. Pede-lhe que liberte o Touro do Céu, criatura terrível, que inspirava o medo. Anu, relutante, acaba por ceder à insistência da filha. Quando o touro resfolegava, abriam-se abismos na terra e sucumbiam multidões, o que constitui, certamente, uma alusão aos sismos e ao temor que estes inspiravam, bem como às suas terríveis consequências.

O combate entre os dois heróis e o Touro do Céu é terrível e a sua descrição lembra a tauromaquia. Vencem-no e matam-no, o que deixa Ištar ainda mais transtornada e inconformada. Os próprios deuses estão insatisfeitos com a situa - ção, decidindo que após a morte de Humbaba e do Touro do Céu alguém teria de pagar por semelhante arrojo. Na verdade, as acções de Gilgameš, tanto no caso do desafio a Humbaba como no do repúdio de Ištar, são avaliadas pela assembleia dos deuses de forma desfavorável ao herói. Esta provocação é implicitamente entendida como sinal da imaturidade de Gilgameš. Este desafiara a ordem e o poder dos deuses e eles não podiam tolerar tal afronta. O herói ofendera os deuses, ao eliminar as suas criaturas, e por isso devia ser castigado. Decidem, no entanto, poupar a vida a Gilgameš e condenar, em seu lugar, o seu dilecto amigo e companheiro de aventuras, Enkidu. A enfermidade era, na men talidade meso po tâmica, entendida como um castigo que, tendo uma origem divina, culminava alguma falta ou transgressão humana. Neste caso, Enkidu caía enfermo como resultado do orgulho de ambos, que haviam desafiado a ordem divina.

A doença fatal atinge-o e ele, amargurado, amaldiçoa a prostituta que lhe deu a conhecer a civilização. Enkidu lamenta o seu destino e a tentação que o conduziu a este fim. Šamaš, no entanto, escuta-o e responde-lhe, dizendo-lhe que deveria, pelo contrário, abençoá-la, uma vez que Šamhat lhe dera o pão a comer e cerveja digna de um rei a beber. Fora ela também quem o vestira com magníficos vestidos e lhe proporcionara o encontro com Gilgameš.

A morte de Enkidu produz uma dor profunda e incomensurável em Gilgameš. O relato deste pesar estende-se ao longo de uma elegia que ocupa a oitava tabuinha. Na seguinte, o herói, ainda amargurado, digerindo a morte do seu amigo, toma consciência, pela primeira vez, da possibilidade do seu próprio fim. Essa consciência abala-o, perturba-o profundamente, porque se revela mais uma fronteira da sua finitude. À mágoa causada pelo desaparecimento de Enkidu junta-se o temor da própria morte. Angustiado e atormentado por essa ideia, evolui de um estado psicológico de passividade para uma reacção à desdita.

Resolve partir novamente, em busca de Uta-napišti e de sua mulher, os úni - cos a quem os deuses haviam concedido a imortalidade. Eles eram a excep ção que confirmava a regra. O destino dos homens era inexoravelmente a morte. Gilgameš não estava, no entanto, preparado para aceitar essa verdade e, moti vado pelo exem plo de Uta-napišti, decide procurá-lo e ir ao seu encontro nos confins do mundo. O caminho é longo e tortuoso, assinalando desde logo a enorme difi cul - dade em cumprir esse desígnio de chegar até Uta-napišti, o longín quo. O primeiro grande obstáculo é o monte Māšu, por onde quotidia namente entrava e saía Šamaš. Todos os dias, o sol mergulhava nas profundezas e todos os dias renascia, rompendo o monte Māšu. Essa porta era guardada por homens-escorpião, que, ao avistarem Gilgameš, reconheceram a sua natureza quase divina. Perplexos com a presença do herói, chegado de tão longe, dispõem-se a ouvir a sua história e este, atemorizado pela visão destas criaturas fantásticas, explica-lhes a razão da sua demanda. Apesar de jamais alguém ter atravessado esta porta, os homens- -escorpião compadecem-se com a história de Gilgameš e permitem-lhe a passa - gem, mergulhando nas profundezas e na obscuridade do interior do monte Māšu.

Vencidas as doze léguas duplas, o herói encontra finalmente a luz e descobre um magnífico jardim de cujas árvores pendiam pedras preciosas. À beira do mar, vivia a taberneira Šiduri que, num primeiro momento, o receia. No entanto, Gilgameš explica-lhe a razão da sua presença ali, bem como o motivo por que o seu semblante se mostra tão carregado e sofrido. O herói expõe o seu medo mais profundo: se o seu amigo Enkidu retornou ao barro, não lhe estará a ele também reservado semelhante destino? O homem, que havia sido moldado e criado pelos deuses a partir do barro, estava fatalmente destinado a regressar ao barro. Gilgameš temia esse destino e tudo fazia para o evitar, convicto de que poderia imitar o longínquo Uta-napišti.

O herói de Uruk pretendia que Šiduri lhe mostrasse o caminho para chegar até Uta-napišti mas esta explica-lhe que jamais alguém atravessara aquele mar. Não obstante, e tal como na cena do diálogo com os homens-escorpião, a taber - neira acaba por lhe dizer como fazê-lo. Ur-šanabi, o barqueiro de Uta-napišti, poderia conduzi-lo à outra margem. A travessia era difícil e pelo meio ficavam as águas da morte, as quais se fossem tocadas tornar-se-iam letais. Esta imagem do barqueiro e do mar como uma derradeira fronteira, sugere, mutatis mutandis, a analogia com a religião grega. O rio Estige separava o mundo dos vivos do dos mortos. Caronte, o barqueiro encarregava-se de atravessar os defuntos e de os transportar até à outra margem, onde ficava o domínio de Hades que reinava sobre os mortos. Os paralelismos são notórios e devem reflectir a provável difusão destas ideias e de uma mitologia funerária por todo o mundo antigo, ainda que adaptando-se à idiossincrasia de cada cultura.

Gilgameš é conduzido até à margem, onde se encontrava já Uta-napišti, que estranha a inusitada aparição. O imortal interpela o herói acerca da sua apa - rência cansada e desgastada e este relata-lhe, angustiado, as suas desven turas. Explica-lhe o seu inconformismo perante a inevitabilidade da morte, recusando o silêncio e a inacção. Por isso, decidiu fazer esta longa viagem e procurá-lo nos confins do mundo. Uta-napišti retorque-lhe, dizendo que a morte é inevitável e imprevisível. Explica que Mammitum, a fazedora do destino, em conjunto com os Anunnaki, os grandes deuses, fixaram a vida e a morte mas que não revelaram o momento em que esta teria lugar. Da intervenção de Uta-napišti resultam, pois, duas verdades insofismáveis, ontem como hoje: a morte é certa mas sem hora conhecida e nada permanece. A introdução do relato do dilúvio, onde Uta-napišti explica a Gilgameš como alcançou a imortalidade, terá, pro vavel mente, como finalidade demonstrar que o seu caso e a sua condição são abso lutamente excep - cionais e que se ficaram a dever a circunstâncias extra ordinárias.

Apesar de lhe afiançar a natureza irrevogável da morte, Uta-napišti decide ajudá-lo. Esta decisão parece contraditória. Porquê ajudá-lo se tinha a convicção de que a imortalidade não estava ao alcance do herói? Parece-nos uma situação semelhante às que observámos com os homens-escorpião e com Šiduri. Por um lado, os interlocutores de Gilgameš mostram a sua compaixão. Apesar de lhe decla rarem a impossibilidade da sua missão, abrem-lhe caminho e dão-lhe os meios para procurar, ele próprio, realizar os seus intentos. Por outro lado, do ponto de vista da narrativa, parece valorizar-se, assim, a ideia de que é necessário experimentar o erro, o fracasso, para concluir efectivamente aquilo que já havia sido enunciado em teoria. Apesar de dito, urgia comprovar o enunciado através da experiência e da prática. O ingénuo e esperançado Gilgameš repre senta aí a própria humanidade, que deve compreender e aceitar a sua finitude.

Francisco Caramelo

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1O episódio serve também para explicar o fenómeno da mudança da pele na serpente e o seu

aparente rejuvenescimento.

2Provavelmente uma referência ao que Gilgameš aprendeu com a experiência de ter conhecido

Uta-napišti.

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