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Edições bíblicas

em Portugal

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Três momentos para o estudo dos primórdios

da imprensa bíblica (judaica e cristã)

em Portugal

o período de 1487-1495 *

MANUELCADAFAZ DEMATOS

Academia Portuguesa de História

Centro de Estudos de História do Livro e da Edição

Ao Professor Artur Anselmo pelo seu 70.º aniversário

No âmbito da História da Imprensa na Europa, sobretudo ao longo dos séculos XV e XVI, a Bíblia – ou os textos de inspiração bíblica (no todo ou nas suas partes) – tiveram sempre um lugar de relevo, tanto nas opções de eruditos como de tipógrafos. No conjunto das edições em letra de forma produzidas nesse contexto em Portugal vamos abor-dar aqui, apenas, três casos que se afiguram paradigmáticos: o

Penta-teuco (1487), os Comentários ao PentaPenta-teuco (1489) e a Vita Christi (1495).

I.

O Pentateuco (Faro, 1487)

A edição do Talmud – e a imprensa em Portugal – teve as suas origens na cidade de Faro

Os primórdios da acção tipográfica em Portugal, primeira-mente ainda em caracteres hebraicos, remontam a 30 de Junho de

* Este trabalho toma por base estudos do autor como a introdução à obra Pentateuco. Re-produção fac-similada do mais antigo livro impresso em Portugal (Faro, Junho de 1487), editado em caracteres hebraicos pelo impressor Samuel Gacon (a partir do único exemplar existente no mundo, depositado na British Library, Londres), Faro, Governo Civil, 1991, intitulando-se esse nosso texto “A edição de Faro do Pentateuco (…) no contexto da História da Imprensa incu-nabular hebraica portuguesa”, pp. IX-L”; e a segunda parte do nosso trabalho de introdução a Comentários ao Pentateuco, de Moses bem Nahman, edição em fac-símile do mais antigo livro im-presso em Lisboa, 1489, Lisboa, Edições Távola Redonda e Câmara Municipal de Lisboa, 1989, tendo o nosso estudo o título “Moses ben Nahman, um comentador do Talmud com os olhos postos no Oriente” (o qual beneficiou nos começos da década de 90 de uma nova edição em Madrid, no Boletín de la Associación Española de Orientalistas).

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14871. A obra com que se inicia esse novo percurso da circulação (por via das técnicas ainda rudimentares de impressão) foi, precisamente, a Tora (Pentateuco).

A sua impressão ficou a dever-se a Samuel Gacon (leia-se Samuel Porteiro) que, na sua oficina tipográfica de Faro editou, no último quartel do século XV, pelo menos, mais dois tratados, ambos com co-mentários de Rashi2– e incorporadas num mesmo volume do Talmud, dito babilónico: Guitin [Tratado do Divórcio] e Shevu’ot [Tratado dos

Ju-ramentos] (1492?).

O cólofon daquela edição do Tora dá-nos a data do final da com-posição da obra:

Acabou-se aqui em Faro, a 9 do mes de Ramuz, no ano Feliz do justo, que gozara o fruto das suas obras! [Isaías, 3, 10, i.e., 247 = 30 de

Junho de 1487], por ordem do nobre e alto Dom Samuel Gacon3. Que

o seu Criador e Redentor o proteja4.

O Pentateuco é, efectivamente, o mais antigo livro que se conhece im-presso em Portugal. O Sacramental (de 1488?), de Sanchez de Vercial5 – que em 1988 estudámos na Biblioteca do Rio de Janeiro6–, bem como o Tratado de Confissom, cuja edição (de 1489) em boa hora foi descoberta e, inicialmente, divulgada através das páginas do Diário de Notícias7, fo-ram dados ao prelo, como se viu, não muitos meses depois.

1A passagem dessa data, em relação à História da Imprensa portuguesa, foi então assi-nalada, fundamentalmente, com a criação, por parte do Estado português, de uma Comissão para as Comemorações do Quinto Centenário do Livro Impresso, presidida pelo Prof. Dou-tor José V. de Pina Martins.

2Rashi, isto é, Salomão ben Isaac, que viveu entre 1040 e 1105.

3Ver-se-á, adiante, o significado de Porteiro, quer a um nível de comunidade cristã, quer a nível da comunidade judaica.

4Artur Anselmo, Origens da Imprensa em Portugal, Lisboa, Imprensa Nacional, 1981; e ver-são francesa, Les Origines de L’Imprimerie au Portugal, col. ‘Études’ da École Pratique des Hautes Études – IVe. Section, Braga, 1983. p. 486

5Catálogo de Incunábulos, da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. Minis-tério da Educação e da Cultura, 1956. Nota preliminar de Celso Ferreira da Cunha, Introdu-ção de Rosemarie Erila Horch, pp. 283-285.

6Rosemarie Erika Horch, na sequência das pesquisas que desenvolveu nesta biblioteca bra-sileira em particular durante a preparação do catálogo (referido na nota anterior) - escreveu um artigo para a revista Prelo, da Imprensa Nacional (Lisboa), onde defende tratar-se do mais an-tigo livro impresso em língua portuguesa.

7Remete-se para José V. de Pina Martins e para o texto publicado no Diário de Notícias, de 25 de Maio de 1965. Oito anos depois, este historiador do livro veio a editar, em fac-símile, o Tratado de Confissom.

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Enquanto o Sacramental e o Tratado de Confissom são obras em lín-gua portuguesa, o Pentateuco, produto saído de uma das (porventura primeiras) tipografias hebraico-portuguesas implantadas neste re-canto da península, é impresso com caracteres hebraicos8. Ele mate-rializa – e é testemunho – (d)esse apego judaico à arte tipográfica, in-clusive em Portugal. Dá conta do significado da preservação, em documentos escritos, da Lei do Talmud, de forma a que a palavra dos antigos sábios pudesse, ininterruptamente, ser transmitida de pais para filhos ao longo dos tempos, de sucessivas gerações.

O único exemplar que hoje se conhece deste Pentateuco (de Faro), en-contra-se depositado na British Library, em Londres. É o primeiro grande marco da implantação das artes tipográficas hebraicas no nosso país no século XV.

Das primícias da acção tipográfica na Europa à vigilância censória

Vejamos, assim, como se implantou a tipografia em Portugal – acção em que desempenham inicialmente um papel primordial os judeus. Daí até à publicação do primeiro incunábulo (em caracteres hebraicos) na cidade de Faro, foi apenas um passo.

As artes tipográficas tornaram-se, logo a partir dos alvores da im-prensa no século XV, tanto servidoras como inimigas da acção expan-sionista da Igreja. Por um lado, graças aos avanços registados nas ar-tes tipográficas (que com Gutenberg haviam conhecido, entre 1440 e 1450, a descoberta dos caracteres móveis), passaram-se a editar obras de carácter bíblico em profusão. Mas foi também graças a essa mesma im-prensa que os inimigos da própria Igreja, os autores hereges por assim dizer, passaram também a ser divulgados sem limite.

Essa foi uma das primeiras razões por que, para a Igreja – como só-lido suporte do poder instituído – importava agir taxativamente nesse sentido. Impunha-se coagir aqueles autores, cujos métodos abusivos e prevaricadores, postos ao serviço da interpretação dos textos sagrados, punham a própria Igreja (e os seus dogmas) em risco. Era essa a fun-ção da censura, instituída no nosso pais muito antes da implantafun-ção do Tribunal do Santo Ofício, e cuja acção já remonta – senão mesmo an-tes – à terceira década do século XIV, ao final do reinado de D. Dinis9.

8Continua hoje a não se ter a absoluta certeza de qual a oficina de fundição em que foram produzidos os caracteres hebraicos utilizados em Faro por Samuel Gacon.

9Vide Manuel Cadafaz de Matos, “Para a História da Imprensa e da Censura em Portu-gal nos séculos XIV-XVI”, in Boletim do Arquivo da Universidade de Coimbra, vol.8, pp. 259-285 e vol.9, pp. 291-312, respectivamente saídos em Coimbra, em 1986 e 1987.

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No caso concreto Portugal, situa-se já em 1324 (pelo menos) a pri-meira manifestação de defesa da Igreja e do poder instituído contra os vários perigos que os afrontavam ou contra esses ditos hereges. A cen-sura pré-inquisitorial e a cencen-sura inquisitorial, depois, actuam, assim, cumprindo a piedosa missão para que foram criadas, salvaguardando os interesses da Igreja, antes de mais, e em sua consequência os interes-ses (aparentes?) da colectividade.

Pelo que se depreende de abalizados estudos sobre a censura le-vados a cabo por António Baião ou I. S. Revah, uma das motivações imediatas, para a reorganização da actividade censória fora em mea-dos do século XV aquela descoberta de Gutenberg.

Autores como Henri-Jean Martin, Roger Chartier, José V. de Pina Martins e Artur Anselmo questionaram-se, em França e em Portugal, quer sobre a data efectiva da implantação das primeiras oficinas tipo-gráficas na Europa Central, quer sobre as primeiras que passaram a ac-tuar em Portugal.

Desde os anos cinquenta e sessenta do século XV, principiaram, com efeito, a proliferar as mais variadas oficinas tipográficas por toda a Eu-ropa, designadamente na península Ibérica. E a Igreja, zelosamente

mi-litante pela preservação dos dogmas do Cristianismo, não só vigiava

com atento rigor – graças à sua apertada maquina censória – a produ-ção dita herética como, mais do que isso, sempre que podia mandava queimar tais obras como os seus próprios autores, em pessoa ou em efí-gie. E isso passava-se, muitas vezes, pela via da teatralização, a ence-nação do auto-de-fé, incentivando as populações anónimas (iletradas por excelência) a cometerem contra tais intelectuais o maior somatório de atentados, que culminavam na maior parte dos casos com a própria morte dos mesmos.

Das primeiras tipografias com caracteres hebraicos em Portugal

Não se torna hoje muito fácil a elaboração de um rigoroso e exaus-tivo catálogo das obras impressas em Portugal, dado que, certamente, muitas delas não terão chegado até aos séculos mais próximos. É hoje possível, no entanto, estabelecer que as primeiras tipografias criadas neste recanto da Península estiveram associadas a famílias judaicas e laboraram com caracteres (móveis) hebraicos, pelo menos desde 1487. Um dado porém a não esquecer é que, para o funcionamento des-sas tipografias de caracteres hebraicos nesse ultimo quartel do século XV, se tornava imprescindível a observância de quatro vectores ou ver-tentes fundamentais:

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I uma técnica de grafismo – vocacionado também para a ilu-minura – capaz de responder as necessidades de ilustração dos textos, com frequente alusão aos textos bíblicos;

II a existência de caracteres hebraicos (diversos conjuntos de caracteres importados de países onde esse modelo tipográ-fico estivesse mais avançado);

III uma mão-de-obra (minimamente) especializada que, tanto num plano de impressão como de conceptualização e rea-lização de grafismos, pudesse corresponder aos desejos e in-teresses dos editores;

IV a existência de significativos stocks de papel – provenien-tes das fábricas já existenprovenien-tes em território nacional10– com que se pudessem efectivar os respectivos trabalhos de im-pressão.

Detenhamo-nos, assim, sobre essa hipótese da importação, e con-sequente difusão nacional dos conjuntos de caracteres móveis hebrai-cos. É por demais sabido, com efeito, que as famílias judaicas que vi-viam em Portugal no século XV se dedicavam, em particular, ao co-mércio, transaccionando não apenas dentro das fronteiras do nosso ter-ritório, mas com outras firmas sediadas em várias cidades da Europa como Toledo, Gibraltar, Paris, Livorno, Nápoles, Antuérpia, Bruges, Amesterdão, Roterdão e Hamburgo. Nessas cidades situavam-se en-tão algumas comunidades judaicas, denotadoras de uma identidade cul-tural fortemente enraizada, de que chegou notícia até aos nossos dias. Terá sido nas suas incursões comerciais ao estrangeiro que esses co-merciantes judaico-portugueses e espanhóis terão trazido até à Penín-sula quer alguns conjuntos de caracteres móveis de impressão, quer os métodos de manufactura dos mesmos e, consequentemente, conheci-mentos e técnicas acerca da rudimentar arte de impressão.

A introdução dos caracteres tipográficos em Espanha antecedeu, ao que se presume, em cerca de uma década, a verificada no nosso país. Assim, se o Pentateuco (algarvio) acabou de se imprimir em Faro – sob os cuidados de Samuel Gacon – em 30 de Junho de 1487, o marco de lan-çamento da primeira obra tipográfica em Espanha nesse tipo de

carac-10Essas qualidades do papel, no entanto, chegavam também a Portugal (entrando por por-tos como os de Faro, Porto, Setúbal e Viana do Castelo), proveniente de regiões do ocidente europeu como da Galiza, norte de França, e da Itália mediterrânica. Ver, de Maria Manuel Fer-nandes Pinto Lares, Para a História do Papel Português nos livros Impressos no século XVI, Lisboa, dissertação apresentada na Universidade Católica Portuguesa no âmbito do Curso de Ciên-cias da Informação, Lisboa, 1989.

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teres se deveu a Solomon b. Moses b. Alcabiç Halevi, em Guadalajara, por volta de 1476 (e não em 1482 em que esse mesmo impressor editou, na mesma localidade, os Comentários ao Pentateuco, de David Kimchi). O dado mais concreto de que hoje se dispõe, a este respeito, é apre-sentado, porém, na Geschichte des Spanishen Fruhdruckes in Spanishen

Früdruckes in Stammbaümen, de Konrad Haebler, onde se refere que já

em 1483 o castelhano Alfonso Fernandez de Córdoba procedia ao fa-brico de caracteres móveis hebraicos, porventura utilizados nas ofici-nas de Hijar e de Guadalajara.

Judeus portugueses impressores no nosso país e no exílio

No que respeita às primícias da arte tipográfica com caracteres he-braicos, produzidos estes por judeus portugueses no exílio ou em Por-tugal, importa reter, numa primeira análise, os nomes de Moses b. Shem Tob Ibn Habib e de Samuel Gacon. Ambos viveram em Portugal no úl-timo quartel do século XV, tomando, as suas vidas, a partir de um dado período, rumos diferentes dos da sua família espiritual do Algarve. Moses Ibn Habib foi um poeta hebreu, filósofo, tradutor e gramá-tico que nasceu no século XV em Lisboa11, em data que não se torna possível precisar. Este autor terá vivido, ao que refere Posnanski12, du-rante algum tempo no levante europeu. Esteve no sul de Itália, desig-nadamente em Nápoles, vindo a morrer nos começos do século XVI. Foi precisamente na cidade italiana de Nápoles que circulou em 1484 a sua gramática Perah shoshan, preparada nesse ano (e sobre a qual trabalhamos, há alguns anos, na British Library de Londres, seguindo registos de Amzalak13). Esta obra, em sete secções, cada uma dividida em vários capítulos, foi iniciada em 23 de Sivan A. M. 5244, no calen-dário hebraico (16 de Junho de 1484) e terminada em 27 Kislev A. M. 5244 (15 de Dezembro daquele ano).

Quanto ao outro judeu português atrás referenciado, Samuel Gacon, ele já se situa, com mais precisão, nos primórdios da arte tipográfica portuguesa14em território nacional. Samuel Gacon, cuja data de

nas-11Moses Bensabat Amzalak, Portuguese Hebrey Grammars and Grammarians, Lisboa, 1928, pp. 10-11.

12S. Posnanski, Jewish Encyclopedia, vol. VI, p. 125.

13Vide Moses Amzalak, A Tipografia Hebraica em Portugal no Século XV, Lisboa, Academia das Ciências, 1941, pp. 1-4.

14No campo de autores judaico-portugueses que se auto-exilaram neste período, conta-se Ibn Yahia Ben Solomon que nasceu em Lisboa em 1440. Autor de uma gramática, Leshon Li-nundim, optaria mais tarde por partir (em data que não se tornou possível precisar) para Cons-tantinopla, onde veio a falecer em 1506.

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cimento também não conhecemos, não teve de optar pela via do exí-lio. Sabe-se, apenas, que no ano de 1487 vivia em Faro. Foi precisa-mente nessa cidade que, em 30 de Junho desse mesmo ano – três anos depois de Ibn Habib ter feito divulgar em Nápoles a sua gramática – concluiu a edição do Pentateuco15que se considera ser a primeira obra

impressa em Portugal em caracteres hebraicos16.

Da impressão (em 1487) do Pentateuco

Desde os anos 80 do século passado que se tem tentado estabelecer uma teoria das ligações dos principais núcleos tipográficos espanhóis do último quartel do século XV com outros existentes, quer em Portugal (sobretudo em Faro, Lisboa e Leiria) quer no Norte de África (onde, a partir do século XV, floresceram também importantes comunidades judaicas provenientes de Espanha e do nosso pais). Embora não se pos-sa ainda admitir correctamente a sua região de origem, na zona arabi-co-andaluza, não podemos deixar de lembrar que é sensivelmente nes-te período da edição do Pentanes-teuco – ou seja, cinco anos depois, por al-tura do decreto de expulsão dos judeus de Espanha – que parte para o Norte de África o grande teórico e humanista Yossef Alachkar, dito EI-Rkyese – que depois de 1502 se estabelece em Tlemecem, onde de-senvolve obra intelectual assinalável, no estudo da Bíblia e do Talmud. Samuel Gacon (em Faro), David Kimchi e Solomon Al-Kabi (em Guadalajara) e Yossef Alachkar (em Tlemecem, no Norte de África), afi-guram-se-nos, assim, peças importantes de um mesmo puzzle que im-porta desmontar, reconstituir a analisar ate as suas mais ínfimas par-tes constituinpar-tes.

De Samuel Gacon chegou até aos nossos dias a primeira obra de que há notícia ter sido impressa em Portugal. Trata-se de um trabalho que se nos apresenta em 110 fólios, com composição de 30-32 linhas.

Tendo, no nosso país, sido primeiramente divulgada a sua exis-tência por Proença e Anselmo17a notícia da sua existência já havia, no

15José V. de Pina Martins Tratado de Confissom, ed. cit. (1973), p. 12.

16O “único” exemplar que se conhece do Pentateuco é, segundo Amzalak (op. cit.) o que se encontra depositado na British Library Museum, Londres. Sobre esta obra trabalhámos na capital britânica nos anos 70, altura em que formulámos a intenção de a divulgar em edição fac-similada por altura do seu quinto centenário. Também Leão Fernandes, “O Livro e o Jor-nal em Goa”, in Boletim do Instituto Vasco da Gama, Pangim, 1935-1936, cap. 1. Introdução, p. 44, refere, a tal propósito, conhecer que “o ‘único exemplar’ conhecido guarda o British Museum, de Londres”. Também Alberto Iria chamou a atenção (em conferência na Academia das Ciên-cias em 1983) para a necessidade de uma nova edição do Pentateuco de Faro.

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entanto, sido feita, segundo nos adverte Artur Anselmo, nas Origens da

Imprensa em Portugal, por Steinchneider, entre 1852 e 1860.

O Pentateuco (de Faro), cuja realização tipográfica se concluía em 30 de Junho de 1487, foi impresso precisamente um mês depois de ser edi-tada em Itália, nas oficinas de Francesco del Tuppo, a obra Apologia de Picco della Mirandola. Não pode, porém, ainda hoje considerar-se como provada documentalmente a hipótese de António Ribeiro dos Santos de os caracteres tipográficos móveis hebraicos terem inicial-mente chegado a Portugal provenientes de Itália18.

Dos três núcleos de produção hebraica quatrocentista portuguesa (Faro, Lisboa e Leiria)

O Pentateuco de Faro constitui, como é sabido, a primeira obra edi-tada em caracteres hebraicos no nosso país. Quanto ao Sefer Abudraham, ou seja Novas da Lei ou Comentários sobre o Pentateuco, de Moses ben Nahman, esse é “o primeiro livro impresso na capital portuguesa em

carac-teres hebraicos” e já conta com uma reedição, em fac-simile, no nosso

país19.

Marque ou não essa edição o início de uma venturosa época (porém de não muito longa duração) de intensa actividade dos impressores he-braicos em Portugal, sabemos que ela se expandiu entre nós na década de 1487-97 por diversos outros pontos do país. Assim, e mesmo que em 1489 (pelo testemunho de Pina Martins) ou porventura em 1488 – a con-firmar-se a hipótese de Rosemarie Erika Horch em relação ao

Sacra-mental – já laborassem em Portugal tipografias com caracteres em

lín-18José V. de Pina Martins, Cultura Italiana, Lisboa, Editorial Verbo, 1971, p. 208. Francesco del Tuppo terminou a sua edição da Apologia, de Giovanni Pico della Mirandela, precisamente em 31 de Maio de 1487. Curiosamente António Ribeiro dos Santos, apresentou, já há várias dezenas de anos – acerca da vinda de caracteres hebraicos de Itália para o nosso país – esta hipótese: “Ela [a tipografia] nos veio transplantada da Itália, e por mãos dos Hebreus, que eram os únicos naqueles tempos que a estabeleciam e propagavam por toda a parte, porquanto os Judeus, maiormente os alemães da cidade de Spira, que haviam passado à Itália, tinham levantado os seus primeiros prelos nas cidades de Socino (sic), de Piobe (sic), de Pesaro, de Bolonha e de Ferrara; e destes vieram alguns a Portugal, para onde muito os atraía e convi-dava a grande quantidade que cá tínhamos de Judeus estrangeiros e nacionais e a esperança do grosso lucro que lhes prometia o muito fervor com que então se tratavam os estudos de li-teratura sagrada nas sinagogas deste Reino”. – In António Ribeiro dos Santos, Memórias da Li-teratura, Lisboa, Academia das Ciências, p. 17.

19José V. de Pina Martins, Para a História da Cultura Portuguesa do Renascimento – A

Icono-grafia do Livro Impresso em Portugal no Tempo de Durer, Lisboa, Lysia Editores e Livreiros, 1972, Apêndice Documental, gravura 2. Desta obra, Comentários ao Pentateuco, procedemos em 1989, como atrás referimos, a uma nova edição, em fac-símile (Edições Tavola Redonda).

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gua portuguesa como a de Chaves, é facto provado que neste período a tipografia hebraica conhecia já uma significativa fase de implantação entre nós.

Faro pode hoje, como efeito, orgulhar-se – justificadamente – de ter sido o berço da primeira Imprensa hebraica portuguesa e, dai, o local de realização da mais antiga obra – em caracteres hebraicos – de que (até agora) há notícia na História da Imprensa no nosso país.

Não restam hoje dúvidas – depois das desenvolvidas pesquisas de Artur Anselmo (e contrariando o que escrevera Joshua Bloch) – que Sa-muel Gacon e SaSa-muel Porteiro foram uma única e mesma pessoa. Tal não invalida que Offenberg – no índice final de Hebrew Incunabula (p. 187) – tenha distinguido Samuel Gacon de Samuel Porteiro, refe-rindo que o segundo imprimiu em Faro até por volta de 1496. Nessa altura os seus filhos levaram o prelo (ou componentes do mesmo) para Pesaro, em Itália (onde, segundo Artur Anselmo sobreviveram

“vestí-gios de caracteres tipográficos” da sua oficina “na qual só havia tipos qua-drados de dois tamanhos, embora as vogais-pontos só apareçam na matriz maior”). Também elementos da mesma família dos Gacon foram

des-cobertos por Joshua Bloch em Constantinopla.

A cidade de Leiria, por sua vez, foi testemunha, em 1496, da pu-blicação do Almanach Perpetunum celestius motuus. Foi esta obra escrita pelo judeu e astrólogo Abraão Zacuto, destacada figura na corte de D. Manuel20. Importa, pois, que também aqui se estabeleça o rol de pu-blicações surgidas em cada um dos núcleos tipográficos judaicos por-tugueses nesse último quartel do século XV.

I – Faro

1. 1487 – Pentateuco (Samuel Gacon)

2. 1492(?) – Talmud Babilónico. Comentário de Rashi (Samuel

Gacon)21.

3. 149.4 – Tratado do Divórcio (Samuel Gacon)22.

20Vide Armando Carneiro da Silva, art. “Almanaques e folhinhas conimbricences”, in

Ar-quivo da Bibliografia Portuguesa. Ano I, 1955, p. 13. O Almanach Perpetum, segundo Artur An-selmo, “documenta a (única) impressão gótica saída dos prelos hebraicos” (op. cit., ed. de 1983, p. 116).

21Esta obra é referenciada (além da grande maioria de todos os outros bibliógrafos) por Artur Anselmo, op. cit., p. 88.

22Esta obra é descrita (com reprodução, em fac-símile, de um dos fólios), in Amzalak, A

tipografia hebraica em Portugal no Século XV, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1922, pp. 20--21, Estampa II.

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II – Lisboa

1. 1489 – Novas da Lei ou Comentários ao Pentateuco, de Moses ben

Nahman (Eliezer Toledano)23.

2. 1489 – Comentário à Ordem das Orações24, de David Abudarham (Eliezer Toledano).

3. 1490(?) – Livro de Orações (Eliezer Toledano)25.

4. 1490(?) – Caminhos do Mundo, de Josué Levi. 4.1. idem – Livro do temor, de Ionah Gerondi.

4.2. idem – Segredos da Penitência, de Ionm Tovb (os três

tra-balhos, reunidos num só volume, da responsabilidade também de Eliezer Toledano?).

5. 1491 – Pentateuco, em versão de Onkelos e com comentário de

Rashi (Eliezer Toledano).

6. 1492 – Provérbios de Salomão. Comentário de David Bem

Sa-lomão ibn Iaachia (Eliezer Toledano).

7. 1492 – Isaías e Jeremias. Comentário de David Kimchi (Eliezer

Toledano)26.

8. 1492(?) – Leis da Matança, de Moses ben Maimon

(Maimoni-des) (Eliezer Toledano?)27.

23No cólofon desta obra, que é apresentado por Artur Anselmo (in op. cit., secção “Registo Catalográfico”, afirma-se: “…por um homem justo e pobre, R. Elieser, que, entre as balanças (i.e. prensas), trabalhou e imprimiu a Lei com o targum e o comentário de R. Salomão que é a luz dos olhos. Acabou-se em Lisboa, no ano de 251 (= 1491), no mês de Av, adicionando (aos 251) três mil e dois mil (3000 + 2000 + 251 = 5251). Seja Deus, que O assistiu, exaltado com har-pas, órgãos e címbalos”.

24No cólofon deste Comentário à Ordem das Orações, de David Abudarham, refere-se, de-signadamente: “Impresso em Lisboa, no meio da qual esta situada a sinagoga que é o amparo e a mãe de todas as principais sinagogas”.

25Do Livro de Orações temos conhecimento directo do espécime existente no Seminário Teo-lógico Judaico de Nova Iorque (de que foi bibliotecário Menahem Schmelzer). Veja-se a res-peito desta obra hebraica (e outras). Herrmann Mezer in “Incunabula”, Encyclopaedia Judaica, Jerusalem, Keter, 16 v., 1971, vol. 8, col. 1319-1344. Deve-se a Artur Anselmo (in op. cit.) a pri-meira referenciação desta obra em edição portuguesa.

26No cólofon desta obra refere-se, designadamente: “Impresso em Lisboa, em casa do sá-bio R. Eliezer, no ano Ele voltará radiante de alegria, com as suas gavelas (Salmos, 126, 6), segundo a Criação”.

27Sobre este pensador judaico medieval remetemos para Maimónides y su época, com in-trodução de David Romano, em particular o capítulo “Las obras rabinicas de Maimónides”, Córdoba, 1986; artº. “Maimónides”, por R.D.B., in Enciclopedia de la Cultura Española, tomo IV, Madrid, Editora Nacional 1967, pp. 174-175. Este tratado sobre as Hilkhot Shechitali (Leis sobre o Abate Ritual de rezes) presumivelmente em 1492, contém, na expressão de Artur Anselmo “os preceitos da degola dos animais de acordo com as instruções do Talmud” (op. cit., ed. 1981, p. 262).

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III - Leiria [prelo da família Ortas28]

1. 1492 – Provérbios de Salomão. Comentário de Menahem

ha--Meiri e Levi ben Gershom (Samuel d’Ortas e filhos)29.

2. 1494 – Profetas Primeros. Comentários de Levi ben Gershom e

Davi Kimji (Samuel d’Ortas e filhos)30.

3. 1495 – Caminhos da Vida, de Jacob ben Asher (Abraão d’Ortas). 4. 1496 – Almanach perpetuum celestius motuus, de Abraão Zacuto.

A estas obras judaico-portuguesas do século XV poder-se-ão acres-centar, no entanto, ainda alguns “fragmentos de outros espécimes” que, se-gundo A. Anselmo “podem ter sido impressos em Lisboa e Leiria entre 1490

e 1495”. Entre tais trabalhos contar-se-ão, seguramente, alguns já

refe-renciados em 1971 no censo geral de incunábulos hebraicos organizado por Herrmann Mezer.

Outra conclusão que será lícito tirar é que, nos dois últimos decé-nios do século XV, enquanto em Faro se destacava a acção tipográfica desenvolvida por Samuel Gacon, em Lisboa se notabilizava, nesse mesmo contexto a de (entre outros) Eliezer Toledano. Este último, no primeiro ano da sua actividade entre nós (1489), fez editar obras como a já referida Novas da Lei ou Comentário ao Pentateuco e Comentário à

Or-dem das Orações, a última das quais, segundo Amzalak, foi adquirida

no começo da década de vinte, pela Biblioteca Nacional de Lisboa, na Alemanha.

Poder-se-ia concluir, ainda, que na tipografia judaica de Leiria – e algumas investigações entretanto já realizadas apontam que ela se si-tuaria não muito longe do castelo da cidade e numa ruela a que tais ofi-cinas chegaram mesmo a dar o nome – Samuel d’Ortas terá sido o grande “obreiro” neste tipo de actividade. Tal mester, afinal, passá-lo-ia depois (ao que era tão frequente no espírito corporativo da época)

28Sendo hoje certo que Samuel d’Ortas teve filhos que (também) se dedicaram às artes ti-pográficas, há quem defenda a tese de que ele (o impressor de Provérbios de Salomão) e Abraão d’Ortas (o impressor do Caminho da Vida) são uma e a mesma pessoa, que se chamaria preci-samente Samuel Abraão d’Ortas.

29No cólofon desta edição dos Provérbios de Salomão afirma-se: “Executado na oficina im-pressória do honrado Dom Samuel d’Ortas, num país distante... com a ajuda do seu hábil fi-lho Abraão (e à custa do) Samuel Kolodro. Acabou-se no primeiro dia do mês de Av (= 25 de Julho)... no ano E eles chegarão a Sião com Júbilo (Isaías, 51, 11 )... “

30No cólofon desta edição dos Profetas Primeiros refere-se: “Por ordem textual de pessoas eminentes e das autoridades residentes na comunidade de Lisboa, cidade feliz sob todos os aspectos, a composição pelos três irmãos, dos quais o pai e o chefe e rei, na vila chamada Lei-ria, situada na margem do rio do mesmo nome. Acabou-se no ano de (5)254..., na terceira se-mana do mês de Shevat, perícopta sabática de Mishpatim”.

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aos seus próprios filhos. Desconhecemos, no entanto, o laço de paren-tesco – estrito embora, é certo – entre Samuel d’Ortas (responsável em 1492 pela edição dos Provérbios de Salomão) e Abraão d’Ortas que em 1495 (três anos depois, portanto), fez sair dos seus prelos a obra

Cami-nho da Vida. Será que Abraão era pai de Samuel e incutiu a este – bem

como a outros filhos – os segredos, o rigor e o “cuidado” da sua Arte? Tivesse também em Leiria a produção tipográfica hebraico sido mais ampla (ou não) do que hoje se conhece, é um facto que aí os im-pressores, à semelhança do que sucedia em Lisboa e em Faro, sentiram uma natural e justificada inclinação para editar e, sobretudo, comen-tar o Pentateuco.

Nesses fins do século XV era naturalmente seguida, pela sua im-portância, a Bíblia dos Setenta. Assim, também os judeus exegetas – se-gundo o testemunho de Joaquim Carreira Marcelino das Neves31 es-tavam em crer que “os 72 anciãos, reunidos por Ptolomeu como o fim de traduzirem o Pentateuco, actuavam sob o carisma da inspiração di-vina. Filão de Alexandria diz explicitamente que os tradutores dos LXX não são apenas tradutores, mas “hierophantes et prophetes”: “ces hommes

qui ont pu suivre par des expressions transparentes la pensée si pure de Moïse”. Esta tradição é conservada no ”Talmud Babilónico”.

Tendo debatido exaustivamente esta problemática, Carreira das Ne-ves acaba por concluir que os LXX não são apenas uma tradução, mas

tam-bém uma recriação e interpretação do original hebraico. Tamtam-bém é verdade que o Novo Testamento usa destas interpretações para exprimir o mistério de Cristo. Mas nunca esqueçamos que os LXX são antes de mais uma actualização do original hebraico com um fim bem determinado: consolar os fiéis, os pobres, os justos e a diáspora judaica e levar-lhes a certeza da próxima redenção do jugo inimigo e dos mais judeus que o dirigiam.

Admite-se que só nas três cidades de Faro, Lisboa e Leiria tenham estado activas, numa primeira fase, essas mesmas tipografias hebrai-cas. Pode concluir-se, assim, que da região do litoral tais técnicas – e consequentemente as acções daí resultantes – passassem a ser dirigi-das para o interior do país, presumivelmente entre 1488 e 1495. Nesse modelo de penetração técnico-cultural desempenharam, em particular, um decisivo papel, a um nível endogâmico e a um nível exogâmico, três intervenientes precisos: o rico comerciante judaico; o almocreve (inicialmente ligado, também, ao culto judaico); e o aristocrata em viagem.

31Joaquim Carreira Marcelino das Neves, OFM, A Teologia da Tradução Grega dos Setenta

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Quanto ao rico comerciante judaico, esse indivíduo (ou grupo) está as-sociado, a nosso ver, à importação das primeiras “impressoras”, rudi-mentares, já se vê. Ele estava motivado, antes de mais, pela mira do lu-cro. A introdução do novo aliciava-o a agir nesse sentido, com as “portas” verdadeiramente franqueadas32.

Um lugar não menos decisivo ocupou, então, sobretudo num con-texto de ruralidade, o almocreve. Era ele – e alguns estudos de espe-cialistas como Humberto Baquero Moreno atestam nesse sentido – o grande elo de ligação intercomunitária, ligando espaços urbanos a es-paços rurais e vice-versa.

O almocreve – para além dos produtos de comércio (utilitário do-méstico) que transportava, designadamente, azeite, tecidos, botões ou, ainda, novas técnicas como rudimentar o fogão de barro, uma forma primitiva de tesoura e agulhas, etc. – é também um elemento in-termediário e de propaganda, difusão ou contágio. Não era ele, apenas, que transportava as novas, como também divulgava o conceito de novo, ao nível das novas técnicas surgidas.

O almocreve desempenhou também, de facto, um papel decisivo no que respeita à chegada do livro à aldeia. Falamos da micro-comuni-dade regional, onde a população era, na sua esmagadora maioria, analfabeta. A cultura da escrita sobrepunha-se, assim, a uma arcaica cul-tura oral-empírica e que muito tardaria a ser suplantada. É evidente que esse atraso se deveu, fundamentalmente, à histórica falta de me-didas tendentes à alfabetização popular.

O terceiro componente a que atrás fazíamos referência é o aristocrata

em viagem. Ele fazia chegar ao interior do país – sobretudo junto da aris-tocracia reinante, descentralizada, nos contextos da ruralidade da época

– durante as suas incursões de tipo comercial ou de mero carácter re-creativo (designadamente venatório), como prolongamento da sua cul-tura, diversas obras de imitação dos clássicos, tais como as de Marco Túlio Cícero ou de Séneca33. Tais obras normalizavam, por vezes, a con-duta social do nobre, disciplinava a sua actividade em termos de vida pública – num plano de exercícios em comunidade, como os jogos, os

32Os judeus tiveram uma particular preponderância em negócios do reino e, também, na benéfica introdução de novas técnicas, designadamente no que respeita à tipografia e ao pri-meiro fabrico de papel. Nesta época de transição da Idade Média para o Renascimento, a arte tipográfica – e outras formas de arte - contribuíram, ao que é sabido, para a introdução do ideal do Renascimento no nosso país. Importaria, a nosso ver, continuar a estudar em pormenor hoje o que concerne à introdução no nosso país dessas mesmas técnicas científicas e artísticas.

33Vide, por exemplo, as edições do Infante D. Pedro, em pleno século XIV, XV, intituladas o Livro da Virtuosa Bemfeitoria (a partir de Beneficiis, de Séneca) ou O Livro dos Ofícios (a partir De Oficii, de Cícero).

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torneios, as partidas recreativas – ou em privado, inclusive no que res-peita à educação dos filhos nobres, à maneira de se comportar à mesa, de negociar um casamento, ou falar ao coração de uma donzela.

A penetração das tipografias judaicas no interior do país

Ao longo da última década do século XV, a acção tipográfica ju-daica, nas cidades de Faro, Lisboa e Leiria foi sendo, gradualmente, ob-jecto de intensificada vigilância. Já nos primeiros tempos do reinado de D. Manuel, mesmo antes do tão conhecido decreto, de 1496, da ex-pulsão do povo judaico, a gente de nação passou a sentir não só as mais vivas represálias, como a mais acesa perseguição.

À semelhança do que sucedia em Lisboa, também nas judiarias das cidades do sul do país, como Évora, Beja e Faro, essa perseguição não deixou de ser uma afrontosa realidade. Estamos em crer que foi na se-quência de tal situação que os filhos de Samuel Gacon Porteiro parti-ram de Portugal para o levante, mais concretamente para Itália e Cons-tantinopla. E, ignorando-se também se o pai daqueles técnicos partiu com eles, pode hoje afirmar-se, no entanto que, à semelhança do que já no século XIII fora Moses ben Nahman, também Samuel Gacon foi um editor do Talmud com os olhos postos no Oriente.

Para aqueles que em 1495 ainda não tinham partido, a perseguição era efectivamente feroz. Isso verificava-se, pelo menos, na cidade de Évora, o que levou a Rainha D. Leonor a escrever uma carta – datada de 24 de Outubro desse ano e dirigida a D. Fernando de Castro, Conde de Lemos e Trastâmara – em que incumbia aquele dignitário “de

pro-teger a comuna judaica, então ameaçada de expoliações e violências”34. Em relação à vida dos judeus, nesses últimos decénios do século XV, em Beja e Faro, ela decorreria também – à semelhança do que se veri-ficou em relação à comunidade eborense – em moldes de uma mani-festa segregação ou, mesmo, ao nível de uma automarginalização. Existe documentação apropriada que permite estabelecer, para esse pe-ríodo, um nítido traço de união entre a comunidade judaica de Beja e a de Faro. Mais importante que isso é, porém, o facto de se poder ad-mitir – embora a falta de documentos precisos nos impeça de o afirmar categoricamente – identificação de um tal “Gagim Judeu morador” da cidade de Faro, com Samuel Gacon (ou Porteiro), impressor do Pen-tateuco, na mesma cidade, em 1487.

34Oliveira Caetano e José Alberto Seabra Carvalho, in Frescos Quinhentistas do Paço de S.

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Esta hipótese de identificação foi aventada, pela primeira vez, por Alberto Iria, um dos mais distintos investigadores da História do Al-garve, na conferência “Os Judeus no Algarve medieval e o Cemitério Israelita de Faro do século XIX, História e Epigrafia...”35, pronunciada em 24 de Novembro de 1983 na Academia das Ciências de Lisboa. Segundo Alberto Iria “em Beja, a 9 de Novembro de 1489, el-Rei D. João II confirmava a Abraão Alegria, morador em Faro (faarão), a carta de aforamento que, nesta vila algarvia, lhe fizera Fernão de Espa-nha, contador da Casa Real e, por especial mandado régio, contador neste Regno do algarue, em 8 de Agosto de 1488”.

Neste aforamento, Fernão de Espanha fez saber

que por díuida que huu manuel (?) gagim Judeu morador na dita villa deuia ao dito Senhor [Rei] da parte que teue das Remdas do Amoxarifado da dita vylla o anno passado de lxxxiiijº (sic) lhe toram tamadas (sic) huuas casas que por ello tinha dadas a fiamça da dita Remda ho dito anno o dito abraão elegria (sic) seu cunhado.

“Metidas estas casas em pregão, só Abraão Alegria licitou, pelo que lhe foram aforadas por 400 reais de foro anual, enfatiota, a pagar em Janeiro, já no ano de 1489”, sublinha ainda o autor de “Os Judeus no Algarve medieval”...

As casas estavam localizadas na própria “Judaria” (sic), as quaes [ca-sas] estam dentro da judaria da dita uilla E partem com casas de jsaque

tol-ledano e com casas de Joham de dios e com Rua pruuica...

Mas Abraão Alegria ficou com a obrigação de pagar bem e

despa-chadamente vimte Reaees de prata destes de vimte Reaees o Real que fazem ca-torze e cimco oytauas e huua homça por dia de Janeiro em cada huu anno…

Este aforamento – constante do Livro II de Odiana, a fl. 217 v.º – feito em Faro por Fernão Gonçalves, porteiro dos contos por Fernão Vieira, seu escrivão.

É plausível, na óptica de Alberto Iria (e corroborando a opinião ex-pressa por Artur Anselmo) que Samuel Gacon, já referido, “tivesse tam-bém exercido em Faro as funções de porteiro dos Contos, por nomea-ção régia que, infelizmente, não chegou até nós”.

Estas são algumas das considerações que se nos oferecem, respei-tantes quer à implantação da tipografia em Portugal, no último quar-tel do século XV, quer às primeiras tentativas de “pôr a circular” pelo interior do país, o produto cultural que é o livro, resultante do labor des-ses mesmos artífices (tipógrafos hebraicos, ou de credo judaico).

35O texto desta conferência veio a ser publicado no tomo XXV das Memórias das Ciências

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Assumiu, de facto, uma enorme importância para a cultura portu-guesa de fins da Idade Média e do Renascimento a introdução da Arte tipográfica em Portugal, por intermédio da impressão de obras como o Pentateuco, em 1487 em Faro. A esta comunidade estiveram, aliás, ligadas várias famílias judaicas, até há poucas décadas atrás.

II

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Os comentários ao Pentateuco (Lisboa, 1489)

Foi essa mesma motivação que levou, em 1489, os judeus, estabe-lecidos em Lisboa, a imprimir a mais antiga obra que se conhece,

No-vas da Lei ou Comentários ao Pentateuco. Ou, ainda, a motivação

daque-les impressores cristãos que, nesse mesmo período, imprimiram, em linguagem, o Sacramental (1488?), ou o Tratado de Confissom (1489), da primeira das quais trataremos de seguida.

O filósofo hebraico de Castela, Moses ben Nahman (11-l270)

Dois anos depois da edição, em Faro, do Pentateuco, já se encontrava uma utensilagem tipográfica judaica também em Lisboa. Esta, em breve, passou – sob a tutela de Mestre Eliezer Toledano, na capital do reino, a fornecer obras em hebraico à comunidade local (e as outros membros do povo eleito que o pretendessem).

De Moses ben Nahman, um dos mais proeminentes pensadores ju-daicos hispânicos da Idade Média, é, com efeito, a obra intitulada

Hi-dushei Ha-Tora, isto é, Novas da Lei ou Comentários ao Pentateuco.

Consi-dera-se este livro como o mais antigo impresso em Lisboa, nas oficinas de um compositor judaico, Eliezer Toledano. Foi terminado em data que, no calendário hebraico, corresponde a 18 de Av 5249 (no calen-dário cristão, 16 de Julho de 1489).

Tal livro, curiosamente, foi dado à estampa apenas 23 dias antes do mais antigo livro (de colophon datado) impresso em língua portuguesa, o Tratado de Confissom, concluído precisamente, em Chaves, em 8 de Agosto do mesmo ano. Deste, José V. de Pina Martins produziu uma cuidada edição anastática, não muito tempo após a sua descoberta36. Importa situar, assim, os Comentários ao Pentateuco (a partir daqui simplificaremos o nome da obra nestes termos) nos primórdios da

im-36Tratou-se de uma edição, em fac-simile, do exemplar que pertenceu ao Dr. Miguel Gen-til Quina - e hoje integra as colecções da Biblioteca Nacional de Lisboa - com leitura diplo-mática e estudo bibliográfico por aquele professor da Faculdade de Letras de Lisboa, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1973.

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prensa hebraico-portuguesa em caracteres móveis. Antes desta edição, com efeito, apenas ainda tinha sido dada à estampa em território na-cional (e continuando a pairar largas dúvidas se o Sacramental, em lín-gua portuguesa, datará de 1488, pois não é conhecida a sua folha de

co-lophon) o já referido livro em caracteres hebraicos, o Pentateuco (saído

os prelos de Samuel Gacon, em 30 de Junho de 148737).

Destes Comentários…, já estudados por diversas ocasiões, sabe-se que existem mais exemplares do que até aos idos anos 80 se julgava crer. Offenberg, em carta que nos dirigiu, regista existirem exemplares desta obra nas seguintes colecções:

Amsterdão, UB, BRos 1(-3 ult. ff) (Burger; IDL) Berlim (Ocid.), SB I(VB; Schmitt)

Budapeste, BN 1(-) (IBH)

Cambridge, Clare CL 1(-) (Cohen; Goldstein) Cambridge, UL 2(1-, var) (Cohen; Oates; Goldstein) Cambridge, Mass., HCL, HoughtL 1(-) (Goff) Chicago, NewbL 1(-) (Goff)

Cincinnati, HUCL I(-fl) (Marx; Goff)

Copenhaga, KB 2(1-26ff; I frag de If) (Madsen) Francoforte/M., StUB I(Fr.; Ohly-Sack)

Jerusalém, JNUL 3(1-1f) (TishbyIsr) Jerusalém, Schockinst 1(-74ff) (TishbyIsr)

Leninegrado, BAcad, InstOrSt 2(1-9ff; 1-) (Wiener; Chwolson; Jakerson) Lisboa, BN 1(-) (BibIPort; Anselmo; Sul Mendes)

Londres, BritL 1(2ff esq.) (Zedner; Pr.; STCSp-Port; Goldstein) Londres, JewsCL 1(-) (Wild; Goldstein)

Londres, ValmTr I(p.c.)

Moscovo, Lenin B 2(Kiselev; Verusalimsky; Jakerson) New Haven, YaleUL 2(-) (Goff)

Nova Iorque, HispSocAm I(Goff) Nova Iorque, JTSL I(Goff)

Nova Iorque, NYPL I(Goff) Nova Iorque, PML 1(Goff) Nova Iorque, YeshUL 1(Goff) Otava, NLCan I(Hill)

Oxford, BodlL 2(St.CB; Pr.; Cowley; Goldstein)

37Através de um extenso artigo, publicado nas páginas do Diário de Notícias, precisamente em 30 de Junho de 1987, ant cit. (p. 25), intitulado Pentateuco de Faro, editado por Samuel Gacon, primeiro livro impresso em Portugal completa hoje meio milénio, procuramos chamar a atenção para a importância da actividade daquele tipógrafo hebraico na cidade. O Governo Civil de Faro tomou, por nossa proposta, a seu cargo a tarefa de fazer uma edição fac-similada desta obra (através de microfilme do exemplar existente em Londres) em 1991.

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Oxford, ChrChurchL 1(Goldstein) Paris, BMaz 1(p.c.)

Paris, BN 1(-5ff) (Adler; CIBN) Parma, BPal I (Tamani Parma; IGI) Filadelfia, RosFound I (Goff)

Piacenza, BC 1(-) (Tamani Piacenza; IGI) Provo, BrYoungUL 1(Goff)

Reggio Emilia, BM 1(-) (IGI) Roma, BApostVat 1(Tishby Vat) Ruão, BM 1(Doublet)

San Juan, CasadLibro 1(-) (Goff) São Marino, HuntL I(-)(Mead; Goff) Estrasburgo, BNU I(Catane)

Turim, BN 1(Artom; IGI) Upsala, UB I(Coljnl Upsala) Varsóvia, ZydlnstHist 1(Weil)

Vila Viçosa, Paço Duc 2(1-) (BiblPort; Peixoto; Anselmo) (exemplar por nós seguido em 1989, no essencial).

Washington, LC 1(Goff) Zurique, ZB 1(-) (p.c.).

Estudiosos da Imprensa hebraica portuguesa

Não pode hoje analisar-se a importância dessa histórica edição (he-braica) lisboeta de 1489, sem se recorrer a três obras de portugueses que permitem esclarecer alguns dados sobre a Imprensa judaico-portu-guesa, em particular no século XV. Trata-se de estudos publicados por António Ribeiro dos Santos, de 1792; de Freire Mateus de Assunção Brandão, de 1827; e de Moses ben Amzalak, de 192238.

Os autores que, no entanto, levaram mais longe, o estudo do tra-balho desenvolvido na península pelo judeu Eliezer Toledano (que po-derá muito bem ser o mesmo que se denomina Eliezer ben Alantansi) foram José A. Moniz, em 1913 e Artur Anselmo, em 198139. Ambos se

38Ver, do primeiro, “Memórias da literatura sagrada dos judeus portugueses, desde os pri-meiros tempos da monarquia até aos fins do século XV”, in Memórias de Literatura Portuguesa, da Academia das Ciências de Lisboa, t. 2, 1972, pp. 236-414; do segundo, “Memória sobre o Pen-tateuco impresso em Lisboa em 1491”, in História e Memórias da Academia Real das Ciências, Lis-boa, t. 10, parte primeira, 1827, pp. 141-150; e do terceiro, A tipografia hebraica em Portugal no século XV, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1922.

39Do primeiro desses autores é o título Lições de Bibliologia - A Imprensa em Hespanha no

Sé-culo XV (Notas Subsidiárias), Lisboa, Guimarães Editores, 1913 (agradecemos a cedência deste opúsculo raro ao Dr. Cunha Leão); do segundo é o trabalho Origens da Imprensa em Portugal, edição ant. cit. (1981).

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preocuparam, com efeito, em analisar com rigor as origens da acção ti-pográfica desse hebreu hispânico.

Enquanto José A. Moniz se debruça apenas – até pela especificidade da sua obra – sobre a acção de impressores como Eliezer ben Alantansi, Artur Anselmo procede a um sólido enquadramento dos impressores (designadamente hebraicos) que laboraram em Portugal, mas cha-mando também a atenção para o meio cultural em que actuaram e para os autores que deram a conhecer através dos seus prelos.

Artur Anselmo regista, nesse estudo, que o talmudista Moses ben Nahman, natural de Gerona, actuou nesse século XIII na península, em condições muito específicas (já) de um certo isolamento ou segrega-cionismo. E sublinha esse facto nestes termos:

Tudo contribuiu para reforçar a ideia de que os artífices judaicos se fe-charam a qualquer influência do exterior, fosse pela escolha dos temas e au-tores, fosse pelas características técnicas do seu trabalho manual. Este iso-lamento, esta visão uniforme do mundo, este enquistamento, apenas podem explicar-se à luz das próprias tradições hebraicas e da fisionomia, inter-nacional e estável, do mercado que interessava aos editores40.

Tendo nascido (como já se disse), na cidade de Gerona, Moses ben Nahman – o autor destes Comentários ao Pentateuco com que se iniciou a acção tipográfica judaica na cidade de Lisboa – veio a este mundo no ano de 1194. Tal verificou-se no ano em que governava o reino de Por-tugal D. Sancho I e precisamente no ano em que este doou aos cava-leiros de S. João do Hospital a terra de Guindintesta (que, segundo Joel Serrão, se viria a chamar Belver).

Nas suas primícias intelectuais, naquela cidade, o jovem Nahman foi discípulo dos conhecidos talmudistas Meir ben Natan de Trinque-taille e de Judah ben Yakar, estudando também Filosofia e Medicina41. A sua obra foi polifacetada, circulando desde muito cedo em manus-crito pelas principais comunidades judaicas da península – e também por outras integradas em territórios que são a Itália, França e Alema-nha – até à sua morte em 127042.

40Artur Anselmo, op. cit., pp. 91-93.

41Estes dados sobre o perfil intelectual de Moses ben Nahman colhemo-los de José Ma-ria Millás Vallicrosa (antigo professor catedrático da Universidade de Barcelona), que, em 1940, publicou La Poesia Sagrada Hebraico-Española, cujo capítulo VIII se detém, em grande parte na sua obra e, também, na Enciclopédia Judaica, bem como na Enciclopédia Universal Ilustrada Europeo-Americana, Espasa-Calpe, t. XXXVII, s/d.

42A data da morte de Moses ben Nahman não beneficiou do consenso de vários investi-gadores que se dedicaram ao estudo da sua obra. David Gainz aponta o ano de 1260. Segundo

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Até à invenção da imprensa em caracteres móveis – o que, ao que é sabido, só se verificou em meados do século XV na Europa por Gu-tenberg – a obra de Moses ben Nahman circulou entre os eruditos he-braicos, nesse período de cerca de 200 anos, em conhecidos códices, a maioria deles identificados e conservados em diversas bibliotecas europeias. Tal permitiu, com efeito, que esses seus trabalhos fossem objecto de aprofundados estudos como o que lhe votaram outros judeus como o português Abraão Zacuto, no livro Sefer Yuhasin.

A obra de Nahman pode ser analisada – como o é realmente pelos hispanistas43– em algumas vertentes muito específicas: a do tradicio-nalista conservador, a do rabino, a do apologista e a do desterrado (ou, ainda, na esfera da sua ligação à Catalunha).

Não nos detendo aqui, em pormenor, sobre cada uma dessas com-ponentes, não podemos deixar de frisar, no entanto, que é considerada de significativa importância a acção que exerceu como rabino. Nessas funções ele tentou ser o mediador, o conciliador entre a tradição e o

racio-nalismo; entre as escolas francesas, capazes de produzir somente torafistas e a buliçosa mentalidade dos israelitas do delicioso país de Sefarad...44. Neste sentido contribuiu para a adaptação do aristotelismo ao talmudismo, síntese essa realizada em particular por Maimónides, de quem Nah-man foi discípulo.

Graças aos códices, contendo escritos de Moses ben Nahman, é hoje possível aos hebraístas estabelecer as vertentes essenciais da obra da-quele pensador hispânico do século XIII. Os seus textos, com efeito, continuavam a interessar a comunidade judaica de Lisboa nesse último quartel do século XV, ambiência sociocultural esta que foi estudada com rigor por Maria José Pimenta Ferro Tavares45.

A espiritualidade cabalística do geronense

As obras de Nahman podem, hoje, ser estudadas nos seguintes cam-pos: poéticas, comentários bíblicos, glosas talmúdicas, obras haláquicas e, finalmente, obras de controvérsia e apologética. Destas áreas duas, a nosso ver, interessam em particular: as de natureza poética, por retratarem, de

Aboab ele teria morrido, porém, em 1267 e, segundo outros, em 1270, a data que se afigura mais provável.

43É essa a óptica seguida pelo hebraista que preparou o extenso estudo para aquela en-ciclopédia espanhola acima referenciada.

44Enciclopédia Universal..., tomo referido, p. 919.

45Remete-se para Maria José Pimenta Ferro Tavares, Os Judeus Portugueses no Século XV, Lisboa, 1980.

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uma forma que cremos ser das mais fiéis, a base humana da sua for-mação intelectual e, por outro lado, os comentários bíblicos, por ser nessa área que se posiciona a obra impressa por Eliezer Toledano, em Lisboa, em 1489.

Uma parte da obra poética de Moses ben Nahman tem uma vincada carga cabalística, no sentido científico do termo aplicado por Gersholm Scholem46. Como aliás observou, judiciosamente, José Maria Millás Vallicrosa, uma das poesias de Nahman, a intitulada Mustayab (por exemplo), está influencidada pela cabala, doutrina professada pelo seu autor47.

Eis uma das passagens mais significativas desse poema:

El irradió a fin de descubrir lo que estaba oculto, / ya a la diestra parte ya a la siniestra, / desde las altas surgentas48, que descienden / de la piscina

/ de la emisión49hacia el jardin del Rey50.

Nahman – que contou com esclarecidos discípulos como Selomó B. Ishaq Girondi – escreveu, além deste poema, outros bastante conhe-cidos como a oração intitulada Rosh ha-Senáh, ou seja do Ano Novo. Esta poesia religiosa veio a conhecer uma particular divulgação pela Europa, sendo traduzida, pelo menos, para inglês e alemão51. Em toda essa produção poética – e é essa característica que importa, quanto a nós, reter – ressalta sobretudo o erudito também terreno, muito hu-mano, interessado em servir a comunidade (judaica) a que pertence. A parte que porventura neste momento mais interessa captar da obra intelectual – no âmbito da espiritualidade –, desenvolvida por Nahman no seu rabinato foram, porém, os seus comentários bíblicos. Situa-se, aí, a obra indicada com o título Biur ou Pirux al há-Torah, que um hebraísta espanhol, na Enciclopedia Universal, salienta ser o

Comentário ao Pentateuco, indicado por Artur Anselmo pelos termos

também hebraicos de Hidushei Ha-Tora.

Trata-se de uma obra manuscrita que, nos finais do século XV – pela

46Veja-se, de Gersholm Scholem, La Cabala. A componente cabalística da poesia de Nah-man foi também analisada por Scholem, in AlNah-manach des Schocken Verlags, auf das Jahr, 5696, 1935-36, p. 88.

47José Maria Millás Vallicrosa, op. cit., p. 325, n. 121.

48Ou seja, as almas. Estas, como as duas notas interpretativas que se seguem, são de Mil-lás Vallicrosa, op. cit., p. 325 (n. 121).

49Ou seja, “pleroma”, ou matéria primeira. Alusão à criação (Genesis). Pleroma é, segundo Manuel Augusto Rodrigues, um termo grego que pode ter vários significados, como por exem-plo, plenitude.

50Ou seja, mundo terreno.

51Ver, em particular, Zung, Litteraturgeschichte der Sinagogale Poesie (obra apontada na

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importância que tinha, como guia espiritual, no seio das comunidades judaicas (essencialmente no Ocidente), – passou logo a seguir ao apa-recimento da prática tipográfica europeia com caracteres móveis, a ser impressa na maioria das cidades onde viviam judeus. Este Comentário

ao Pentateuco foi publicado, com efeito, antes de 1480, em Roma52, vindo algum tempo depois a ser impresso em Lisboa e também em Nápoles53. Poderemos questionar-nos sobre o ano ou, pelo menos, o período em que Moses ben Nahman escreveu esta sua obra. Artur Anselmo re-fere que tal se verificou no fim da sua vida54. Este investigador aponta, também, as circunstâncias em que se enquadra a produção da mesma, bem como os interesses dominantes que apresentava junto dos seus destinatários:

O comentário de Nahmanides tem um objectivo didáctico preciso: es-clarecer o espírito de quantos, vogando ao sabor das andanças do exílio e das convulsões do povo hebraico, sentiam dificuldade em interpretar cor-rectamente os passos bíblicos recitados nas sinagogas. Considerando a Tora como fonte de todo o conhecimento, Nahmanides procura o sentido exacto dos textos, na sua dupla forma de preceitos legais e exposições dos mitos hebraicos (halakhah e agadah); as narrativas bíblicas surgem não apenas como registo do passado mas também como linhas premonitórias do fu-turo55.

O impressor Eliezer Toledano é o mesmo que Eliezer Alantansi?

Detenhamo-nos, ainda, sobre alguns aspectos relativos à vida e obra daquele que materializou, em Lisboa, nesse ano de 1489, a impressão dos Comentários ao Pentateuco, de Nahman. Uma questão que continua por esclarecer diz respeito ao facto de se saber se Eliezer Toledano, de origem castelhana, e Eliezer ben Alantansi, um físico, mas que também foi impressor em Hijar (Espanha), foram um único indivíduo. Artur Anselmo, em 1981, procurou fazer um ponto da situação das pesqui-sas até então já feitas por vários autores no respeitante a esse problema.

52Sobre a edição deste incunábulo romano remete-se para Short-title Catalogue of Books

printed in Italy and of Italian Books printed in other countries from 1465 to 1600 in British Museum, Londres, 1958 (obras impressas em Itália); e Rossi, Annales hebraeo-typographici (século XV), 1795.

53Art. “Nahman”, in Enciclopedia Judaica, Jerusalém, Keter, 1971. 54Artur Anselmo, op. cit., p. 269.

55Idem, ibidem. Artur Anselmo regista, ainda, que a obra de Nahman, de grande pene-tração psicológica e crítica – nomeadamente ao analisar o comportamento dos Patriarcas – foi a primeira a recorrer à Cabala – (como aliás, documentámos numa anterior passagem referente à sua obra poética), para fundamentação dos Comentários ao Pentateuco.

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O autor de Origens da Imprensa em Portugal frisou, com efeito,

Certos autores pretendem que (...) são a mesma pessoa, o que explicaria o facto de na última produção dos prelos de Hijar (Pentateuco, 1490) já não figurar o nome de Eliezer e de esta oficina hebraica ter fechado então as suas portas56.

E Artur Anselmo conclui que a identidade, já pressentida por Hae-bler nos começos deste século, é também sugerida, por exemplo, por Herrman Mezer, já nos começos da década de 70, embora sem tomar posição definitiva57.

Do que se sabe de Eliezer Toledano é que nasceu em Espanha e foi proprietário de uma tipografia em Lisboa, onde terá iniciado a sua ac-tividade tipográfica em 1489. Esses seus trabalhos ter-se-ão iniciado aqui, com efeito, precisamente com a impressão da referida obra de Moses ben Nahman. A sua permanência oficinal nesta cidade poderá ter-se verificado até 1492. Dos seus prelos saíram, para além dessa obra:

– Comentário à Ordem das Orações, de David Abudarham (ainda em

1489);

– um Livro de Orações (1490);

– Caminhos do Mundo, de Josué Levi, Livro do Temor, de Ionah

Ge-rondi, e Segredos da Penitência, de Ionm Tovb (E. Toledano?, 1490);

– Pentateuco, versão de Onkelos e comentários de Rashi (1491); – Provérbios de Salomão, com comentário de David ben Salomão ibn

Iachia (1492?);

– Isaías e Jeremias, com comentário de David Kimji (1492); e Leis da Matança, de Maimonides (1492?)58.

Não se sabe o que aconteceu a Eliezer Toledano depois de 1492. Ar-tur Anselmo refere que é provável que se tenha instalado em Fez, no Norte de África. Já mais seguro é que

parte do material tipográfico de Eliezer Toledano foi parar às mãos de Ju-dah Gedaliah (seu empregado), o qual viria a utilizá-lo, a partir de 1515, na oficina que montou em Salónica (...) Na oficina de Eliezer Toledano ha-via caracteres quadrados de três tamanhos e rabínicos de um só corpo59.

56Artur Anselmo, op. cit., pp. 122-123.

57Ver, a propósito, Konrad Habler, Tipografia ibérica del siglo XV, Leipzig, 1902, pp. 43-44; e Herrman Mezer, Incunabula, in Enciclopedia Judaica, Jerusalém, Keter, 1971, vol. 8, col. 1325. Vide, ainda, Gabrielle Sed-Rajna, in Lisbon Bible – 1482, Br. Lib. Or 2626, Nahar-Miskal, 1988 (introd., p. 21): (...) Eliezer Toledano (probably identical with the physician R. Eliezer ben Alantansi who left Toledo for Lisbon around 1488).

58Artur Anselmo, op. cit., p. 88. 59Idem, ibidem, p. 125-126.

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Admitindo-se que este toledano e Eliezer ben Alantansi fossem uma mesma pessoa, sabe-se hoje, no entanto, um pouco mais sobre os ca-racteres utilizados no seu plantel tipográfico. José A. Moniz, refe-rindo-se em 1913 a essa presumível segunda identidade daquele oficial hispânico, comenta, com efeito, que na produção desses caracteres in-terveio um tal Alonso Fernandez, de Córdova. Aquele, escrevia ainda este investigador português (do princípio de novecentos)

era ourives de prata, fundira novos caracteres, julgando-se serem dele os tipos mais perfeitos das impressões de Hijar, notáveis pela sua beleza, fa-bricados por este artista cristão, que se encontrava emigrado por ter sido condenado à morte, e que viera alistar-se ao serviço do livreiro Salomão Ibn-Kabiz60.

A mais antiga edição – em livro impresso com um plantel de ca-racteres móveis (hebraicos) – concluída na cidade de Lisboa em 16de Julho de 1489 é, a todos os títulos, um marco na história da Imprensa portuguesa que convirá conhecer melhor61.

III.

A Vita Christi (Lisboa, 1495)

da proveniência presum. mogunciana à edição incunabular portuguesa

Uma outra obra que importa ser aqui considerada, é a Vita Christi, texto claramente medieval na ideologia da sua produção, difundida pe-las técnicas de impressão, também em Lisboa, em 1495.

Este trabalho importa ser perspectivado em duas vertentes funda-mentais. Há que apreciar, por um lado, o enquadramento da mesma na esfera do pensamento do pietismo medieval e, por outro, os ecos de difusão da mesma quer no contexto da formação da aristocracia

por-60José A. Moniz, op. cit., p. 17. O mesmo autor refere, ainda, que nos tipos desta fundição não existem os sinais indicativos das vogais (pontos diacríticos), havendo quatro espécies de tipos de diversos tamanhos, sendo três quadrados e o quarto de forma rabínica. Sendo assim – e comparando com a expressão (atrás reproduzida) de Artur Anselmo, referindo-se a “caracteres quadrados de três tamanhos e rabínicos de um só” – sublinha que esta poderá ser mais uma prova a juntar à tese que defende de esses dois judeus hispânicos serem uma única pessoa.

61Um esforço no sentido de se conhecer melhor esta obra de Moses ben Nahman é a edi-ção Comentary on the Torah: Ramban (Nachmanides), traduedi-ção de Charles B. Chavel, Nova Ior-que, Shilo, 4 vols., 1971-1975, uma edição crítica baseada nos manuscritos e primeiros textos impressos. Ver, também The Commentary of Nahmanides on Genesis, chapter 1-6:8 tradução de Jacob Newman, Leiden, Brill, 1960.

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tuguesa quatrocentista e quinhentista, quer nos aspectos da sua difu-são na gesta da expandifu-são lusíada por terras da Ásia e das Américas.

Em 1495 – meia dúzia de anos depois da edição em hebraico dos

Comentários do Pentateuco (também na capital, como atrás se viu) – teve

lugar o início da actividade tipográfica de inspiração cristã. Foi nesta cidade, com efeito, que saiu impressa a obra de Ludolfo Cartusiano ou de Saxónia, Vita Christi, em quatro partes.

Trata-se inequivocamente de uma obra perpassada pelo espírito e pela forma mentis medieval. Para uma percepção rigorosa do conteúdo desta obra piedosa importa, porém, saber-se recuar até à História as Ideias do período em que a mesma foi redigida, ou seja, até meados do século XIV.

O seu autor, Ludolfo, tudo indica que foi natural da Saxónia (como o seu nome parece indicar). Ele optou, provavelmente desde muito cedo, pela vida religiosa e a sua existência e encontra-se documentada, pelo menos entre c. 1295 e 1377.

Não sabemos, ao certo, nem quem foram os mestres medievais que, de uma forma decisiva, mais contribuíram para a sua forma

men-tis, nem, tão pouco, qual o período em que terá partido da Saxónia para

Estrasburgo.

É conhecido porém, com mais segurança, que em determinado pe-ríodo optou por ingressar na Ordem da Cartuxa. E, por outro lado, que ao redigir esta obra Vita Christi, não se encontrava na cidade de Ar-gentina, isto é Estrasburgo, pertencendo também então – ao que tudo indicia – à referida Ordem. Isso apesar da expressão – aposta no cólo-fon da Quarta Parte com que se iniciou a edição portuguesa da obra – onde constam estes dizeres:

Ho qual liuro compos ho venerable meestre Ludolfo prior do moesteyro muy honrrado de argentina, da ordem muy excellente da cartuxa e foy ti-rado segundo a ordem da hystoria evãgelical.62

Existem fortes indícios de probabilidade de que a Vita Christi, de Lu-dollfo de Saxónia, tenha sido redigida, com efeito, durante um largo pe-ríodo de vivência deste membro da Ordem da Cartuxa, na cidade de Mogúncia.

O Pe. Augusto Magne, do Brasil – um dos mais credenciados estu-diosos e editores desta obra medieval – estabeleceu, com efeito, a pro-pósito do original (ainda não encontrado) deste trabalho:

62O texto do presente cólofon da Vita Christi, Quarta Parte (consultado por nós, no origi-nal, existente na BNP) é também reproduzido por Artur Anselmo, Les Origines de l’Imprime-rie au Portugal, edição francª. ant. cit .(1983),p. 158.

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O autógrafo, desaparecido, era provavelmente conservado na Cartuxa de Mogúncia, para onde Ludolfo de retirou depois de resignar, em 1348, o priorado de Coblença e onde é verosímil que comporia seu livro.

Importa referir, deste modo, que a produção do códice matricial dessa obra terá ocorrido naquela cidade germânica de Mogúncia, que virá (c. de um século depois), afinal, a ser o berço (cuna, de incunábulo) da História da Imprensa na Europa, a partir de c.1445-1450, pelas mãos de Gutenberg e de Fust.

Poderá referir-se, de igual modo, que para a produção desta sua obra Ludolfo de Saxónia deveria dispor, nesse seu convento de Mo-gúncia, de uma bem apetrechada biblioteca. Na redacção deste vasto trabalho o autor recorreu, com efeito, a uma larga soma de fontes pois ele referencia aí (mesmo que indirectamente) alguns dos mais perti-nentes códices medievais, com testemunhos dos mais variados desde Santo Agostinho a S. João Crisóstomo.

Registe-se que, por meados do período quatrocentista, também nessa cidade João Gutemberg e alguns dos mais esclarecidos técnicos que o acompanhavam também dispunham nessa cidade, como homens de cultura que eram, de uma bem apetrechada biblioteca. É de concluir, assim, que entre o século XIV e meados do século XV Mogúncia – que foi um centro intelectual de assinaláveis proporções (pelos trabalhos de índole diversa ali produzidos) – contava também (entre outras mais) com esta importante biblioteca da Ordem da Cartuxa, que muito apro-veitou a este monge, Ludolfo64.

Da necessidade de uma clara destrinça entre a entidade-encomendado do traslado e a entidade-encomendante da edição impressa

Entremos mais especificamente, na matéria da preparação do

tras-lado desta obra em Portugal e na sua consequente edição incunabular.

Não pode deixar de se estabelecer, aqui – por necessária e esclarecedora – uma destrinça entre a entidade-encomendante desse traslado para a língua portuguesa daquela obra deste monge da Ordem da Cartuxa65

63Ludolfo Cartusiano, O Livro de Vita Christi em Lingoagem Português, edição fac-similar e

crítica do incunábulo de 1495 cotejado com os apógrafos (2 vols.), edição do Pe. Augusto Magne, S.J, em particular in vol. I, Rio de Janeiro, Casa de Rui Barbosa, 1957, p. IX.

64É de nossa autoria um vasto trabalho, “Para o estudo das fontes cristológicas de Ludolfo de Saxónia, no século XIV germânico (o poder de selecção e de síntese de um hermeneuta me-dieval)”, produzido nos finais da década de oitenta, quando trouxemos do Rio de Janeiro os dois volumes da edição, aliás rara, do Pe. Augusto Magne, da Vita Christi.

65De assinalar que a Ordem da Cartuxa (de natureza contemplativa) tinha sido fundada em França, por S. Bruno, na Chartreuse, em 1084.

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