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Ordinary Matter – por uma escuta reticular

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ARTEFACTUM – REVISTA DE ESTUDOS EM LINGUAGEM E TECNOLOGIA

ANO IX – N° 01/2017

Ordinary Matter – por uma escuta reticular

Frederico Pessoa fredericoz@hotmail.com http://lattes.cnpq.br/3867177471311145

RESUMO

Este artigo discute os procedimentos utilizados na tecedura das camadas de sentido que compõem o filme experimental Ordinary Matter (1972) de Hollis Frampton, partindo das articulações entre som e imagem, suas matérias ordinárias. A obra entrelaça diversos campos de saber e criação em uma rede complexa que solicita múltiplos percursos de decifração ao espectador. Frampton utiliza uma das primeiras tecnologias de produção de imagens em movimento criadas pelo homem, mas procura ultrapassar o programa da máquina através das propostas conceituais e dos procedimentos estéticos que formam esta obra.

Palavras-chave: Cinema experimental, banda sonora, tecnologia.

Matéria é aquilo de que são feitas as coisas, sejam elas seres ou objetos; sejam elas naturais ou produzidas; matéria é substância física, estofo das formas que habitam o mundo; substância primordial que recebe seu desenho/desígnio no ato de seu enformar; matéria é algo manifesto, evidente, mesmo que invisível a olho nu, mesmo que inaudível aos nossos ouvidos; suporte perene da permanência transitória do compartilhado.

O ordinário é aquilo que está sempre ali, ao lado, despercebido e desapercebido; o comum, o habitual, o que não se salienta; aquilo que não necessita ser notado. Ao mesmo tempo, é o estofo do mundo – o que está sempre presente, compondo a totalidade. Podemos pensar a matéria ordinária como a matéria comum que, por sê-lo, revela-se como a matéria fundamental, a matéria originária, permeando todos os entes.

Em Ordinary Matter, deparamos-nos ainda com outra matéria que faz parte da composição do mundo: a linguagem. A linguagem é o conhecimento do mundo; o pensamento com e sobre as coisas; o compartilhamento e o solipsismo; o atravessamento e a mediação. A linguagem é a morada do homem1 tanto quanto o limite

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de seu mundo2. Ela mesma possui sua matéria ordinária, seus elementos constituintes, modos de articulação e normas de funcionamento que delimitam seu alcance e suas possíveis manifestações. A matéria ordinária (e originária) da linguagem está sempre ali, ao lado, despercebida e desapercebida.

Ordinary Matter é um filme experimental de Hollis Frampton realizado em 1972, quinto volume da série Hapax Legomena3 (composta por sete filmes). Ao realizar o filme, o diretor traz ainda outra matéria, a matéria cinematográfica: seus elementos constituintes (sonoros e imagéticos); suas formas ou modos de construção; seu sentido (ou sentidos); suas relações com o mundo, com as pessoas e com a própria linguagem. Interessa-nos aqui discutir as articulações destes elementos constituintes da matéria cinematográfica e as redes sensoriais e de sentido que tecem. Interessa-nos o jogo entre Frampton, o aparelho e o dispositivo cinematográfico.

Ordinary Matter não é um filme narrativo. Não se trata de construir uma história que solicita a credibilidade e a identificação do espectador. Não se trata de ficcionar ou retratar o real. O filme é uma proposição, talvez não no sentido estritamente lógico do termo, mas uma proposição conceitual de construção de uma obra multisensorial que solicita diversas formas de apropriação e, com isso, múltiplas leituras. Trata-se de uma obra audiovisual que provoca o pensamento, articulando camadas de signos para compor um plano estético particular.

Em um mundo em que cada vez mais filmes são produzidos, com tecnologias simples e acessíveis, gerando imagens quase que por si mesmas, podemos afirmar, parafraseando Flusser (1985, p.30), que quanto mais gente filmando, tanto mais difícil se tornará o deciframento das imagens cinematográficas, já que todos acreditam saber fazê-las. Mas criar obras cinematográficas não se restringe a acionar máquinas automáticas de produção de imagens para, em seguida, veicular o resultado.

2 “Os limites de minha linguagem significam os limites de meu mundo” (WITTGENSTEIN, 2001, p. 245,

grifos do autor).

3 Expressão de origem grega, ἅπαξ λεγόμενον – hapax legomenon, que significa “termo dos quais apenas um exemplo de uso é registrado” (dicionário online Oxford). Legomena é o plural de Legomenon.

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Nos primeiros minutos de Ordinary Matter somos tomados pelo silêncio que encapsula as imagens que vemos: um aglomerado de pedaços de madeira em uma imagem estática mostrada por cinco segundos; a tela escura como ruptura da possível sequência por um segundo; a mesma imagem dos pedaços de madeira invertida em seu eixo horizontal por mais cinco segundos; a tela escura outra vez; novamente os pedaços de madeira em sua posição original. Segue-se um travelling que desliza por cima dos objetos por dez segundos (o movimento não está no objeto, mas na câmara); a inversão da sequência em seu eixo vertical e em seu sentido temporal; a repetição da sequência em seu eixo e percurso temporal inicial.

Após um rápido tilt para cima, acompanhamos a câmara em seu trajeto pelos campos, em ritmo acelerado, atravessando folhagens, beirando descampados, em uma montagem frenética de inversões horizontais, verticais e de sentido temporal que vão apresentando a matéria ordinária do mundo: uma massa quase amorfa, permeando os espaços e unindo-os em um todo unitário e ao mesmo tempo fragmentário– uno e múltiplo em sua constante pulsação: “é sábio escutar não a mim, mas [o lógos] e confessar que todas as coisas são Um” (HERÁCLITO apud SOUZA, 1996, p.31).

Uma pausa se dá na beira de um riacho. Vemos a água tremular com o vento, refletindo sutilmente a luz do sol: a água, origem de todas as coisas, princípio dos entes para Tales de Mileto (ordinária e originária), se mostra em seu próprio movimento. Aqui o movimento se desloca da câmera para o mundo – a máquina que filma, a caixa preta, se torna janela do mundo, simples mediadora do fluxo das coisas: “o caráter aparentemente não-simbólico, objetivo, das imagens técnicas faz com que seu observador as olhe como se fossem janelas” (FLUSSER, 1985, p.10).

Hollis Frampton começa a recitar os fonemas de Wade-Gilles (sistema de transcrição dos fonemas chineses para o alfabeto latino). Sua voz soa grave, acompanhada por forte reverberação, em ritmo lento e pausado. Parece falar de fora do mundo, transcendendo imagem, realidade, percepção. A voz do deus que realiza a revelação através do lógos, do discurso. Ficamos observando, estáticos, o sutil movimento do mundo, quase imperceptível, por alguns segundos. Após pequenos

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movimentos da câmera e pausas, retomamos a sequência anterior, que se repete na íntegra.

Compreendemos que há um procedimento padrão (com suas próprias possibilidades de variação) para a construção das sequências de imagens, seguindo os princípios mostrados pelo diretor logo no início do filme: a apresentação de planos, cenas ou sequências e sua variação por retrogradação, inversão, rotação, etc. Poderíamos fazer uma ligação entre a ordenação das imagens, sua estrutura de montagem e, ao menos parcialmente, as práticas serialistas da música. A série dodecafônica, criada por A. Schoenberg ainda no início do século XX, era constituída por uma sequência de 12 notas (utilizando-se todas as notas cromáticas) que servia de base para as composições seriais. “A partir do grupo básico [de notas da série], três grupos adicionais são derivados automaticamente: 1) a inversão; 2) o retrógrado; 3) a inversão do retrógrado” (SCHOENBERG, 1950, p. 115, nossa tradução). Vale lembrar que a série na música dodecafônica é a “matéria ordinária” da composição. Frampton expressa sua admiração pela música serial em entrevista a Deke Dusinberre e Ian Christie, curiosamente intitulada “Episódios de uma História Perdida do Serialismo Fílmico”:

[A] música serial neste século [...] teoria e prática convergindo uma sobre a outra, cada uma inextricavelmente dando forma à outra [...] Tenho uma predileção pela obra de Schoenberg, Berg e Webern, a qual seus sucessores deram continuidade. (FRAMPTON, 2004, p. 113, tradução nossa).

O serialismo é uma proposta conceitual de organização da matéria sonora a partir de procedimentos específicos que definem a criação de estruturas musicais. A cada obra, seria utilizada uma nova série, a qual, a partir de suas variações e usos harmônicos, ritmicos e melódicos, daria origem a composições completamente diferentes. A partir do serialismo, diversas propostas conceituais de construção de sistemas se manifestaram no campo da música, dialogando com as mais diferentes áreas – a biologia, a geometria, a arquitetura, entre outras. Frampton cria um sistema de articulação das imagens e de montagem das sequências que dialoga com o serialismo. A cada obra, cria novos sistemas e novas relações. Mas, além disso, o próprio filme Ordinary Matter dialoga com diversos outros campos da cultura, como veremos adiante.

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Após assistirmos às diversas variações do claustro da Catedral, um travelling para o centro do jardim nos transporta para o próximo tema: a ponte do Brooklin. “Caminhamos” (identificados com a subjetiva da imagem) de forma acelerada pela ponte, cruzando com pessoas a pé, de bicicleta, grupos, famílias. Até que, em um dado momento, vamos em direção a uma coluna de sustentação central da pista de pedestres em que estamos. A câmera “mergulha” na coluna e passamos a ver sua matéria ordinária: a textura do concreto, pedras sobrepostas, camadas de pedra e cimento, em uma sequência que aborda as possíveis variações do material de que se compõem as estruturas construídas pelo homem – a transformação tecnológica da matéria em formas arquitetônicas. O tempo todo somos acompanhados pela enunciação pausada, densa, lenta e reverberante de Frampton lendo o silabário de Wade-Gilles. As sequências da ponte e dos “mergulhos” se sucedem, até que entramos em uma passagem subterrânea e, com isso, no breu.

Seguem-se imagens de fragmentos de janelas, aberturas que permitem a passagem de luz, desenhando formas geométricas contra o fundo negro em que estamos imersos. A participação da voz de Frampton parece mudar, ganhando certa territorialização ao mesclar-se ao negrume e ao vazio que as imagens nos trazem. Parece não mais transcender o que vemos, mas imiscuir-se em algum recôndito daquele espaço, de onde enuncia enfaticamente uma mensagem (ela sim, transcendente) que revela uma profundidade (emanada da sonoridade de sua voz) cujo sentido nos escapa. Ficamos ali imersos, pela aparente eternidade, vendo fragmentos de luz que adentram o negrume através de formas geométricas, como vitrais de igrejas que habitam nossa memória cristã. Retomamos em seguida nosso trajeto pela ponte. O diretor, em sua curta sinopse do filme, fala da ponte do Broklin como um “monumento à conexão” (On Ordinary Matter). Talvez possamos pensar na conexão entre lugares, entre homens, entre homem e natureza, e entre homem e o transcendente, trazida tanto pelas imagens quanto, com o perdão do trocadilho, pela conexão entre voz e imagem.

Seguindo os mesmos procedimentos de construção de suas sequências de imagens, Frampton nos leva pela grama (em suas inúmeras formas), pelo monumento de Stonehenge e pelos campos de milho de sua infância. O filme termina abruptamente

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enquanto percorremos em velocidade os milharais, chocando-nos com as plantas e sentindo o sol por elas filtrado e refletido.

A banda sonora deste filme de Frampton é composta pelos cerca de 20 minutos de sua leitura do silabário de Wade-Giles (The Peking Sillabary, 1859)– parte do sistema de transcrição gráfica e sonora dos ideogramas chineses para o aprendizado ocidental criado por Thomas F. Wade e revisado por Herbert A. Giles, ambos britânicos. A escolha do diretor revela um processo de entrelaçamento entre som e imagem que se pauta por um procedimento conceitual pensado para articular diversas camadas de sentido, tanto por sua inserção em contextos de significação (linguísticos, históricos e estéticos) quanto pela forma de sua enunciação no filme.

Os fonemas são matéria ordinária/originária da linguagem, matéria que passa despercebida, mas permite a costura das coisas em palavras. Cada um dos fonemas recitados por Frampton soa como uma revelação, o desvelamento de uma verdade inaudita reservada àqueles capazes de decifrá-la. A voz enfática, mas distante, parece enunciar a própria profundidade desconhecida da linguagem. A textura da voz, marcada pelo aspecto metálico da reverberação acentuada que a acompanha, nos envolve em sua densidade. Parece transcender o mundo ordinário e alçar-nos ao aspecto místico da existência – uma espécie de mantra que nos provoca a meditação. Seu ritmo pulsado, em andamento lento, se opõe à pressa das imagens: a linguagem tem seu ritmo próprio, diferente do ritmo das coisas. Talvez possamos pensar que se revela lenta em sua própria formação, em seu balbucio recorrente, incapaz de acompanhar o fluxo ininterrupto do mundo em seu contínuo transformar-se: “A linguagem é o meu esforço humano. Por destino tenho que ir buscar e por destino volto com as mãos vazias” (LISPECTOR apud PINTO, 2005, p.21).

A linguagem é constituída, esculpida, amalgamada. As coisas do mundo nascem e perecem em um movimento inexorável - “donde a geração é para os seres, é para onde também a corrupção se gera segundo o necessário” (ANAXIMANDRO DE MILETO apud SOUZA, 1996, p. 62). A enunciação de Frampton não busca ancorar as imagens, extrair-lhes ou atribuir-extrair-lhes um sentido. A fala não se impõe sobre as imagens, mas flui em paralelo: cria pontos de contato, aproximações e afastamentos em acordo com as

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interações rítmicas que ambas realizam ao longo do filme. Inicia-se junto com a imagem da água, como se brotasse das profundezas do riacho ou corresse junto com o fluxo, tremulando tanto quanto a superfície que vemos: uma língua aquosa que escorre por toda a superfície da imagem, penetra as frestas, umedece a concretude do visível. Podemos identificar, a partir de uma primeira escuta, dois procedimentos de articulação entre som e imagem: I) fazer os aspectos materiais/estéticos da voz tão importantes quanto seu conteúdo para construção de sentido; II) desfazer a hierarquia entre voz e imagem, propondo um diálogo entre ambas.

Não se sabe há quanto tempo os caracteres chineses existem. Sabe-se que a língua chinesa possui um sistema de escrita altamente desenvolvido há pelo menos 3.000 anos. A escrita chinesa não usa um alfabeto, como sabemos, mas símbolos constituídos para abrigar significados, bem como símbolos de sons que indicam significados. Há um aspecto imagético marcante na escrita da língua chinesa, o qual parece sugerir uma conexão diferente com a realidade em relação às línguas que utilizam alfabetos. A escrita chinesa é composta por uma rede complexa de imagens, símbolos, sons, sentidos e articulações pouco comuns em outras línguas (YIN, 2006).

A escolha da língua chinesa por Frampton manifesta diversos entrelaçamentos entre esta e seu filme. Devemos ter em mente os múltiplos aspectos de sua grafia, de sua articulação complexa entre som e imagem, e de sua relação pictórico-sonora com o mundo (de certa maneira). Uma das questões centrais para Frampton em sua pesquisa artística era justamente os possíveis liames entre imagem e linguagem; o uso de uma para ampliar as possibilidades de sentido da outra. Seu filme Zorns Lemma (1970) lança mão de referências conceituais externas ao audiovisual para determinar sua estrutura e sentido, mesclando teoria matemática, linguagem e filosofia, embora praticamente não possua banda sonora. Na segunda parte de Zorns Lemma “as sequências e subsequências […] são determinadas por um sistema de substituição e progressão ordenado pelas vinte e quatro letras do alfabeto da língua inglesa (simplificado) [usado no livro denominado The Bay State para ensino de crianças]” (WEISS, 1985, p. 120).

Em Ordinary Matter o chinês é fator de construção de sentido ao propor uma reflexão sobre o estatuto da linguagem frente às imagens e vice-versa. Além disso, a

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língua chinesa é uma das mais antigas línguas existentes ainda em uso, mesmo que modificada. Este caráter da língua chinesa, de certa forma originário em relação à linguagem humana, dialoga diretamente com o tema do filme – a matéria ordinária. Frampton escolhe recitar o sistema de traduções dos símbolos chineses (sonoro-pictográficos) em símbolos ocidentais (sonoro-abstratos) em sua manifestação falada - sonora. Há uma cadeia de traduções entre imagem, sinal gráfico (cujo sentido se dá dentro de um sistema de oposições específico) e sons que se expressam nesta escolha do diretor. Desta forma, identificamos um terceiro procedimento de articulação entre som e imagem em Ordinary Matter: III) som, imagem e linguagem deslizam uns sobre os outros.

O sistema de Wade-Giles foi uma das primeiras tentativas ocidentais de transcrição do chinês para o alfabeto latino. No entanto, há uma série de questões quanto às escolhas realizadas pelos autores na construção de seu sistema: diversas formas de grafia de diferenças sonoras da língua não são funcionais, permitindo erros na interpretação dos fonemas e das palavras compostas a partir deles. Hoje já se têm sistemas mais aprimorados e com menos possibilidades de indução ao erro que o de Wade-Giles, embora este último ainda seja muito usado.

Assim, o artista não escolheu unicamente um sistema que aproxima formas diversas de pensar a linguagem (o oriental chinês e o ocidental inglês), mas escolheu um sistema que abarca possíveis erros, interpretações equivocadas, misreadings - termo que Frampton adapta do pensamento Poundiano - a partir da discussão sobre a necessidade de desfazer (desaprender – unlearning) o pensamento conceitual criativo do passado de modo a compreendê-lo e ampliá-lo (FRAMPTON, 1976, p. 105 tradução nossa). Frampton acreditava que toda interpretação do trabalho artístico da tradição passa pela sua compreensão (reading) e pela sua incompreensão (misreading) ou sua compreensão equivocada: “a leitura incorreta [misreading] ou o desmembramento equivocado das hipóteses composicionais permanecerão assombrando o espaço intelectual usurpado pelo sucessor [do artista antepassado]” (Ibid., p. 107, tradução nossa).

O diálogo com artistas e campos diversos, em composições que absorvem o “acerto” e o “erro” natural da própria interpretação, como faz Frampton, nos lança na

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incerteza do reading e misreading, dificultando as tentativas de dar conta de propostas que mais “omitem que enfatizam as articulações entre os elementos e operações pelos quais são compostas” (FRAMPTON, loc. cit., tradução nossa). No entanto, cabe ao espectador/ouvinte percorrer a tecedura desta rede de sentidos que o artista lhe apresenta. A escolha de Frampton quanto ao sistema Wade-Giles parece ser também uma afirmação teórica e um possível comentário sobre o próprio filme, apontando para a necessidade de um duplo esforço para compreendê-lo: a leitura correta e a abertura para o erro, para o equívoco, sempre propondo novas questões e caminhos interpretativos na busca de apreender a multiplicidade que se refugia em seu trabalho:

[...] o processo é um contínuo diálogo, um constante reabrir-se a questões com as quais eu possa abarrotá-lo, por assim dizer. E é precisamente ao nível da interferência das operações [sobre o próprio trabalho], ao nível da disjunção entre o aparato de significação e aquilo a que necessariamente ele se liga, que o diálogo acontece (FRAMPTON apud DUSINBERRE; CHRISTIE, 2004, p.117).

A partir de toda esta discussão, percebemos mais um procedimento de conexão entre sons e imagens: IV) as escolhas de articulação entre som (aqui representado pela voz) e imagem são definidas pela sobreposição de camadas de sentido que encadeiam não só diretamente imagem, som e linguagem, mas ultrapassam o imediato e conectam pensamentos, reflexões e leituras intertextuais teóricas sobre o próprio fazer artístico.

Frampton se distancia das práticas hegemônicas de articulação entre som e imagem, opondo-se a formas narrativas onde cada elemento já possui função pré-definida. A voz é o elemento que ocupa toda a banda sonora de Ordinary Matter, como vimos. Mas sua presença não se conecta às imagens como nos diálogos ou monólogos do cinema clássico, nem tampouco é uma explicação para elas, como nas narrações documentais tradicionais. A voz é portadora de linhas de significação que se entrelaçam, mas deixam pontas múltiplas, linhas de fuga, que solicitam percursos, jornadas (como a do filme), saltos entre campos de saber, criação e pensamento diversos. O território

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acústico4 que se desenha em Ordinary Matter é fruto do cruzamento de diversas linhas tanto sensoriais, quanto de pensamento e sentido.

A estruturação imagética e as escolhas temáticas de Frampton em Ordinary Matter são parte de um processo de criação artística e reflexão sobre o próprio fazer artístico que se manifestam na costura das imagens, na costura dos sons, e na costura de sons e imagens. Frampton parte de propostas conceituais de pensamento sobre as relações entre as matérias ordinárias de seu fazer artístico ao mesmo tempo em que aborda a matéria ordinária do mundo (que não deixa de ser também matéria da criação artística) definida a partir de seu olhar/ouvir, em um processo de referências cruzadas, sobredeterminações e articulações que fundem apreciação estética, escritura artística, produção de pensamento e construção de múltiplos sentidos.

Frampton cria territórios acústicos que estão em choque com a previsibilidade reforçada pela máquina e pela indústria cinematográfica. Sua maior preocupação era a experimentação de formas que se distanciassem das práticas cinematográficas tradicionais. Para isso, buscava referências em pensamentos tão díspares quanto a matemática, a literatura, a música e a filosofia. Frampton define suas propostas para o cinema da seguinte maneira: “Nós propomos outra morfologia, radicalmente nova... onde não se veja o filme partindo de fora, como um produto para ser consumido, mas de dentro, como um código em evolução dinâmica que responda e seja responsável, como qualquer outro código, frente ao supremo mediador: a consciência” (FRAMPTON, 1974, 109, tradução nossa). Assim, o artista busca distanciar suas práticas da repetição irrefletida e automática, do código pronto utilizado pelos “funcionários das máquinas”, buscando formas de ruptura frente aos programas pré-definidos pelas máquinas culturais e tecnológicas.

4 Conceito desenvolvido em nossa tese de doutorado e discutido no artigo Territórios Acústicos Audiovisuais (2016). Os territórios acústicos são espaços que podem ser dados contingencialmente na experiência ou serem propostos através da estruturação de situações de escuta que solicitam tanto a sensorialidade quanto processos específicos de decifração – conectando os mais diversos campos. Estão presentes em obras que solicitam esta escuta, como obras cinematográficas. O artigo pode ser encontrado neste link: https://www.academia.edu/30009226/TERRIT%C3%93RIOS_AC%C3%9ASTICOS_AUDIOVISUAIS.

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Ordinary Matter (1972), de Hollis Frampton pode ser acessado através deste link: http://www.ubu.com/film/frampton_ordinary.html.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

FLUSSER, Vilém. Filosofia da Caixa Preta: ensaios para uma futura filosofia da fotografia. São Paulo: Editora Hucitec, 1985.

FRAMPTON, Hollis. Episodes from a Lost History of Movie Serialism. Film Studies, n. 4, verão de 2004, p. 104-118. Disponível em <http://hollisframpton.org.uk/frampton.pdf> Acesso em 28 dezembro 2016.

______Notes on Composing in Film. October vol. 1, primavera, 1976, p. 104-110. Disponível em <http://hollisframpton.org.uk/frampton8.pdf>. Acesso em 28 dezembro 2016.

______On Ordinary Matter. Disponível em <http://hollisframpton.org.uk/bio.htm>. Acesso em: 14 outubro 2015.

HEIDEGGER, Martin. Conferências e Escritos Filosóficos. Coleção Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1973.

Cultural, São Paulo. 1973. PINTO, Paulo Roberto Margutti. A dialética da linguagem e do silêncio em Ludwig Wittgenstein e Clarice Lispector. Disponível em <https://www.academia.edu/1883045/A_dial%C3%A9tica_da_linguagem_e_do_sil%C3%AAncio_ em_Ludwig_Wittgenstein_e_Clarice_Lispector>. Acesso em: 18 maio 2016.

SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de Linguística Geral. São Paulo: Editora Cultrix, 2006. SCHOENBERG, Arnold. Style and Idea. Nova Iorque: Philosophical Library, 1950.

SOUZA, José Cavalcante de (Org.). Os Pré-Socráticos: fragmentos, doxografia e comentários. São Paulo: Eidtora Nova Cultural, 1996.

WITGENSTEIN, Ludwig. Tractatus Logico-philosophicus. 3ª ed. São Paulo: EDUSP, 2001. WEISS, Allen S. Frampton's Lemma, Zorn's Dilemma. October vol. 32, primavera, 1985, p. 118-128.

YIN, John Jing-hua.Fundamentals of Chinese Characters. New Haven: Yale University Press, 2006.

SOBRE O AUTOR:

Possui especialização em Filosofia pela Universidade Federal de Minas Gerais, mestrado em Artes/Cinema e é doutorando em Artes/Poéticas Tecnológicas, pela mesma instituição, com bolsa da FAPEMIG. Estudou música na Fundação de Educação Artística de Belo Horizonte e Produção Musical e Técnicas de Gravação no Morley College, em Londres.

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