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Sumário. Texto Integral. Supremo Tribunal de Justiça Processo nº

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Supremo Tribunal de Justiça Processo nº 048149

Relator: LOPES ROCHA Sessão: 08 Novembro 1995 Número: SJ199511080481493 Votação: UNANIMIDADE

Meio Processual: REC PENAL.

Decisão: NEGADO PROVIMENTO.

RECURSO PENAL PROVAS MATÉRIA DE FACTO

PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

Sumário

I - O depoimento indirecto a que se refere o artigo 129 do CPP consiste "em se ouvir dizer" a pessoas determinadas, caso em que o juiz pode chamar estas a depor, sob pena de não o fazendo, esse depoimento não pode, nessa parte, servir como meio de prova, salvo se tal não for possível por morte, anomalia psíquica superveniente ou impossibilidade superveniente de serem

encontradas.

II - São totalmente irrelevantes as considerações que os recorrentes fazem no sentido de pretenderem discutir a prova feita no julgamento e de solicitarem ao S.T.J. modifique tal prova e passe a aceitar como realidade aquilo que o interessado pretende corresponder ao sentido do que teria resultado do julgamento.

Texto Integral

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

1 - Perante o tribunal colectivo da comarca de Viseu, responderam A e B, com os sinais dos autos, acusados, o primeiro, da prática, em concurso efectivo, de um crime de tráfico de estupefacientes, na forma continuada, previsto e

punido pelo artigo 21, n. 1, do Decreto-Lei 15/93, de 22 de Janeiro, 30, n. 2, e 78, n. 5, do Código Penal e de um crime continuado de consumo de droga, previsto e punido pelo artigo 40, n. 1, do mesmo Decreto-Lei e artigos 30, n. 2 e 78, n. 5 do Código Penal; e o segundo, da prática de um crime de tráfico de

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droga, na forma continuada, previsto e punido pelo artigo 21, n. 1, citado Decreto-Lei e artigos 30, n. 2 e 78 , n. 5 do Código Penal.

Pelo acórdão de folhas 139 e 143, com data de 8 de Março de 1995, foi o primeiro daqueles arguidos condenado: a) como autor do crime de tráfico de estupefaciente, na forma continuada, previsto e punido nos termos do artigo 21, n. 1, do Decreto-Lei n. 15/93 e 30, n. 2, do Código Penal, na pena de 4 anos e seis meses de prisão; b) como autor do crime de consumo de

estupefacientes, na forma continuada, previsto e punido nos termos do artigo 40, n. 1, do citado Decreto-Lei e 30, n. 2, do Código Penal, na pena de 30 dias de prisão.

Tendo em conta o disposto no artigo 78 do Código Penal, foi condenado na pena única de 4 anos, 6 meses e 10 dias de prisão.

O segundo acusado saiu absolvido.

Não se conformando com o decidido, o A interpôs recurso para este Supremo Tribunal, constando da respectiva motivação as seguintes conclusões:

1.1. Deve ser punido pela prática do ilícito previsto e punido no artigo 25 do Decreto-Lei 15/93, de 22 de Janeiro e, em consequência, ser a pena aplicada reduzida substancialmente, situando-se próximo do mínimo legal;

1.2. Foram violadas as normas constantes dos artigos 21 e 25 do Decreto-Lei 15/93, bem como o artigo 129 do Código de Processo Penal.

2 - Apresentou resposta o Excelentíssimo Delegado do Procurador da República na comarca, em que concluiu como segue:

2.1. Ao recorrente foram apreendidos cinco panfletos de heroína, com o peso global de 683 miligramas, que destinava à venda com lucro;

2.2. Actividade que vinha desenvolvendo com regularidade;

2.3. Aquela quantidade não sendo elevada, não é desprezível, bastando, para tanto, ter em conta que, de uma grama, se fazem vários panfletos - doses;

2.4. O arguido agiu com dolo directo e ilicitude média, não se encontrando esta consideravelmente diminuída;

2.5. Deve ser negado provimento ao recurso e confirmar-se o douto acórdão recorrido.

3 - Teve lugar a vista a que se refere o artigo 416 do Código de Processo Penal e efectuou-se o exame preliminar, no qual se verificou que o recurso é o próprio, foi interposto e motivado em tempo e recebido no efeito devido, nada obstando ao seu conhecimento.

Correram os vistos legais e procedeu-se à audiência, com observância do ritualismo da lei de processo penal.

Cumpre apreciar e decidir.

4 - A matéria de facto apurada pelo tribunal colectivo é a seguinte:

4.1. No dia 12 de Agosto de 1994, cerca das 15 horas, quando o arguido A saía

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da sua residência em Viseu, foi interceptado por elementos da P.S.P. desta cidade, que encontraram na sua posse cinco panfletos (embalagens plásticas) contendo um pó de cor creme, com o peso bruto de 683 miligramas,

embalagens essas que lhe foram apreendidas;

4.2. Submetida ao competente exame toxicológico, revelou o mesmo que a substância contida nas referidas embalagens era heroína - substância incluída na tabela I-A anexa ao Decreto-Lei 15/93, de 22 de Janeiro.

4.3. O arguido destinava aquela substância, que já havia dividido e

acondicionado em pequenas doses, à comercialização, no propósito de auferir lucros;

4.4. Em seguida, foi efectuada, pela P.S.P., uma busca à residência do arguido, que a autorizou, tendo sido encontrado e apreendido um plástico para embalar droga;

4.5. O arguido é consumidor de heroína desde há cerca de quatro anos, tendo a determinada altura abandonado o consumo para fazer tratamento de

desintoxicação;

4.6. Voltou, porém, a consumir heroína em Maio de 1994, consumo que manteve até à data da detenção, em 12 de Agosto desse ano;

4.7. Naquele período, o arguido consumia quantidade não concretamente apurada, mas injectava-se duas vezes ao dia, o que fazia na sua residência, em Viseu;

4.8. O arguido B foi consumidor de haxixe, heroína e cocaína, produtos que consumiu, pelo menos até Fevereiro de 1994;

4.9. Não se provou que este arguido também se dedicava à venda de produtos estupefacientes, designadamente heroína;

4.10. Não se provou que no período situado entre os meses de Maio e Agosto de 1994, o arguido B vendeu, nesta cidade de Viseu, ao arguido A, heroína, de dois em dois dias, na quantidade de meia grama de cada vez, pelo preço de 10000 escudos;

4.11. Não se provou que o arguido destinou aquele produto, quer para venda, quer para seu consumo pessoal;

4.12. O arguido A adquiria o produto estupefaciente, que consumia e vendia, normalmente, em Águeda, a pessoa cuja identidade não se apurou;

4.13. O arguido A é referenciado na cidade de Viseu, como traficante de droga;

4.14. Ambos os arguidos conheciam as características da substância atrás mencionada - heroína - e sabiam perfeitamente que a sua compra, venda detenção e consumo não eram permitidos por lei;

4.15. Ao actuar da forma prescrita, agiu o A, de forma voluntária, livre e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram ilícitas e puníveis, tendo

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actuado pelo circunstancionalismo favorável que rodeou a primeira actuação;

4.16. Tem mantido bom comportamento no estabelecimento prisional onde se encontra detido.

5 - É jurisprudência corrente e pacífica deste Supremo Tribunal que o âmbito de um recurso é dado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da

respectiva motivação (cf., por todos e por último, o acórdão de 5 de Abril de 1995, Processo n. 47751, com referências a vários arestos no mesmo sentido).

Assim, as questões a resolver, conforme o que se relatou em 1.1. e 1.2., são as seguintes, indicadas pela ordem lógica e racional de apreciação:

a) Violou o acórdão recorrido o disposto no artigo 129 do Código de Processo Penal?

b) Deve o recorrente ser punido pelo crime previsto no artigo 25 do Decreto- Lei n. 15/93, de 22 de Janeiro, por ter sido incorrectamente qualificada a sua conduta, com base nos factos apurados, como preenchendo o tipo legal do artigo 21 do mesmo diploma?

6 - A primeira questão suscitada assenta em crítica feita à formação da

convicção do tribunal colectivo, quanto aos factos tidos por provados que, no acórdão recorrido se diz resultar do depoimento das testemunhas de

acusação, agentes da P.S.P. de Viseu, ligadas à brigada de combate ao tráfico de estupefacientes, que vigiaram o arguido, o revistaram e lhe apreenderam substância que se revelou ser heroína e ainda, os documentos dos autos.

A este propósito, formula o recorrente, na sua motivação, uma série de interrogações, o que procurou responder de forma a concluir que os

elementos de prova, indicados na fundamentação, eram insuficientes para tão grave condenação.

Vejamos se lhe assiste razão.

Começaremos por recordar que, no sistema processual penal português, vigora o princípio da livre apreciação da prova, dispondo o artigo 127 do

Código de Processo Penal que, salvo se a lei dispuser diferentemente, aquela é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção dos julgadores.

Mas a recorrente interroga-se sobre se a convicção do tribunal colectivo podia ser aquela que expressou na descrição dos factos que motivaram a decisão.

Para tanto, discute o valor probatório das testemunhas de acusação, os agentes da P.S.P., que procederam à sua detenção e que não assistiram a nenhuma transacção do produto apreendido. A isso chama "depoimento indirecto", que não podia servir para ser usado nem valorado para a fixação dos factos provados, sob pena de violação do artigo 129 do aludido Código.

Só que o depoimento indirecto a que se refere este artigo consiste em se

"ouvir dizer" a pessoas determinadas, caso em que o juiz pode chamar estas a depor. E só se o não fizer é que o depoimento produzido não pode, nessa

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parte, servir como meio de prova, ainda assim salvo se a inquirição das

pessoas indicadas não for possível por morte, anomalia psíquica superveniente ou impossibilidade superveniente de serem encontradas. Corolariamente, e segundo o mesmo preceito, não pode, em caso algum servir como meio de prova o depoimento de quem recusar ou não estiver em condições de indicar a pessoa ou fonte das quais tomou conhecimento dos factos.

Pois bem: não consta do acórdão que as testemunhas ouvidas na audiência (ver acta de folha 136) tivessem prestado depoimento "resultante do que ouviram dizer", susceptível de convocação das pessoas determinadas que eventualmente seriam a fonte dos factos de que hajam tomado conhecimento.

Da fundamentação, na parte relativa às provas que serviram para formar a convicção do tribunal (artigo 374, n. 2, do Código de Processo Penal) resulta que os depoimentos das referidas testemunhas foi considerado "por vigiarem o arguido, o terem revistado e lhe terem apreendido a substância que se revelou ser heroína". Logo, tratou-se de testemunhas presenciais de factos com

interesse para a decisão da causa, testemunhas directas e não "de ouvir dizer". E o acórdão impugnado não diz que esses depoimentos serviram para formar a convicção do tribunal relativamente à totalidade dos factos. E não eram a única prova a apreciar pelo tribunal, que teve o cuidado de referir ainda os documentos dos autos.

Um juízo de acertamento da matéria de facto pertinente para a decisão releva de um conjunto de meios de prova, que pode inclusivamente ser indiciária, contanto que os indícios sejam graves, precisos e concordantes como se exprime o Código de Processo Penal italiano, ao seu artigo 192, n. 2, o qual, em muitos aspectos, e como se sabe, foi fonte inspiradora do nosso.

E "as regras da experiência" a que alude o citado artigo 127 do Código

português tem aqui um importante papel na convicção do tribunal. Pois, como se diz no acórdão recorrido, ao arguido foi apreendida quantidade de heroína, já dividida em doses individuais devidamente acondicionadas e prontas a

serem entregues aos consumidores e na sua residência foi apreendido plástico próprio para embalar os estupefacientes, após a divisão, acrescentando-se que

"tudo isso é indicador de tráfico, já que o consumidor não adopta este tipo de actuação". Assim, o que seria contrário às "regras da experiência" era que o arguido, se apenas detivesse a substância estupefaciente para seu consumo pessoal, se desse ao trabalho minucioso de a dividir por panfletos e com eles andasse na rua, como ficou provado, para mais existindo na sua residência um plástico próprio para embalar droga, como também ficou provado.

Continua o recorrente, em sede de crítica da convicção do tribunal, que não se explicou no acórdão como se chegou ao estabelecimento do facto de ele ser referenciado, em Viseu, como traficante de droga e aventa a hipótese de esse

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elemento provir dos agentes da P.S.P..

Mas no acórdão não se diz que essas referências tivessem partido dos referidos agentes.

Como quer que seja, o facto é irrelevante para o preenchimento do tipo legal de crime.

Acrescenta o recorrente que parece ter sido a apreensão da droga o único facto que pode ter contribuído para sustentar a sua condenação pela prática do crime previsto no artigo 21 do Decreto-Lei n. 15/93. Não é isso que resulta do acórdão, pois, como já vimos, o tribunal colectivo deu como provado outros factos, como acima se relatou. E não dispõe este Supremo Tribunal de razões sérias para crer que o tribunal colectivo de Viseu não tenha seguido um

processo lógico e racional na apreciação da prova, em ordem a acreditar que, nessa parte, a decisão se apresente como ilógica, arbitrária ou notoriamente violadora das regras de experiência comum na sua apreciação.

Vem a propósito recordar algumas considerações feitas em vários acórdãos deste Supremo Tribunal sobre críticas ao julgamento de facto.

Sirva de exemplo, o já invocado acórdão de 5 de Abril de 1995, de que se transcreve o seguinte trecho: "Como inúmeras vezes tem sido frisado por este Supremo Tribunal, são totalmente irrelevantes as considerações que os

recorrentes fazem no sentido de pretenderem discutir a prova feita no

julgamento e de solicitarem que este Tribunal de recurso modifique tal prova e passe a aceitar como realidade aquilo que o interessado pretende

corresponder ao sentido do que teria resultado do aludido julgamento. É isso que claramente resulta da redacção do artigo 410 do Código de Processo Penal".

E um pouco acima, esse acórdão, porque o aí recorrente alegava que a prova produzida não podia conduzir a haver-se como provada a matéria que se provou, ponderou: "E, com evidente violação da lei, em cerrado ataque ao concreto desempenho do princípio da liberdade de apreciação da prova ou da livre convicção do julgador (artigo 127 do Código de Processo Penal).

Para terminar a análise do meio de impugnação de que nos termos ocupado, interessa pôr em destaque uma confusão do recorrente quanto ao que o tribunal colectivo disse relativamente à comercialização da substância apreendida, dividida e acondicionada em pequenas doses.

Com efeito, o tribunal deu como não provado que o arguido recorrente

destinasse produtos estupefacientes para venda e consumo pessoal (cf. supra, pontos 4.10. e 4.11.). Mas tal resposta não se referia, obviamente, aliás

haveria contradição insanável da fundamentação, à substância que foi encontrada na sua posse quando foi interceptada pelos agentes da P.S.P.

(factos descritos nos pontos 4.1. a 4.3.).

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Referia-se, sim, aos factos, não provados, relativos a hipotéticas vendas do arguido absolvido B ao recorrente (pontos 4.9. a 4.11., supra). E o que se não provou, concretamente, foi que o recorrente destinou aquele produto, ou seja heroína vendida pelo B, de dois em dois dias, na quantidade de meia grama de cada vez, pelo preço de 10000 escudos, quer para venda quer para consumo pessoal, o que nada tem a ver com aquele outro produto que se provou estar na posse do mesmo recorrente e que este consumia e vendia, normalmente em Águeda (ponto 4.12.).

A confusão do recorrente é certamente devida à deficiente ordem de exposição dos factos provados e não provados. Não é de boa técnica, com efeito, intercalar estes na sucessão expositiva dos primeiros, o que se presta a confusão, mas uma leitura atenta logo a dissipa. Não há, em suma, qualquer contradição insanável da fundamentação.

Em suma, a primeira questão examinada não nos merece resposta afirmativa em ordem a ter-se como violado o artigo 129 do Código de Processo Penal.

7 - A segunda questão a resolver consiste na adequação dos factos às normas incriminadoras.

Defende o recorrente que o acórdão errou na subsunção deles no tipo legal do artigo 21.

É que, verificando-se as condições descritas no corpo do artigo 25, que não são mais do que razões que diminuem, por um lado, a danosidade social do facto e, por outro, a menor culpa do agente, não pode o delinquente ser

punido com a mesma pena que cabe a quem preenche a previsão do artigo 21.

E que este preceito contem na sua base axiológica a prática reiterada de modo mais ou menos organizado de actos que se consubstanciam na colocação, junto dos consumidores, nesse circuito infernal que é o circuito da droga, das substâncias constantes nas tabelas anexas ao diploma.

Ora - prossegue - nada parece obstar que o tribunal a quo tivesse condenado o arguido pelo crime previsto no artigo 21, desde logo porque a quantidade de estupefaciente apreendida (430 miligramas) pouco mais é do que irrelevante, tão pouco ela era.

Aliás, o acórdão, na valoração dos factos dados como provados, refere que o facto de o estupefaciente que o arguido detinha estar já dividido em doses individuais, é indiciador do tráfico, já que o consumidor não adopta este tipo de conduta. Só que, após a busca feita à sua residência mais nenhuma

quantidade foi encontrada e nenhum outro objecto, além do plástico, lhe foi apreendido. Ora, se não resulta que o arguido destinava aquele produto, que lhe foi apreendido, para consumo, também não é plausível que pudesse

destinar todo aquele produto para venda. Pois sendo o arguido heroinómano, e injectando-se duas vezes por dia, tal como o acórdão deu como provado, tudo

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leva a crer que a maior parte do estupefaciente se destinaria ao seu consumo pessoal. Se ele o destinasse todo para venda, e não lhe tendo sido apreendido, na sua residência, mais nenhum estupefaciente, como é que o arguido poderia sustentar o seu próprio vício?

De tudo isto, conclui, parece resultar de forma clara que das 430 miligramas que lhe foram apreendidas, grande parte, ou todo o estupefaciente, seria destinado para seu consumo pessoal.

Toda esta argumentação conflitua com o já referido princípio da livre

apreciação da pena, do artigo 127 do Código de Processo Penal, e visa discutir a prova feita em julgamento, em ordem a quo este Supremo Tribunal passe a aceitar como realidade aquilo que o recorrente pretende corresponder ao que teria resultado do aludido julgamento - como se expressou o citado acórdão de 5 de Abril de 1995.

Mas já vimos que o tribunal colectivo estabeleceu como facto provado que a droga apreendida se destinava à comercialização (ponto 4.3. supra). Por outro lado, quando deu como provado que o arguido consumia quantidade não

concretamente apurada, mas injectava-se duas vezes ao dia, na sua residência (ponto 4.7. supra), não disse que tal quantidade pertencesse ou fosse

destacada da quantidade apreendida. Daí não poder concluir-se que parte ou

"grande parte", ou mesmo todo o estupefaciente (683 miligramas e não 430 miligramas, como quer o recorrente) seria destinada para seu consumo

pessoal, conclusão formulada, aliás, em termos hipotéticos. É plausível que a quantidade utilizada para consumo próprio fosse outra, pois que se deu também como provado (ponto 4.12. supra), que o arguido adquiria o produto estupefaciente que consumia e vendia, normalmente em Águeda, a pessoa cuja identidade se apurou.

Nenhuma contradição se surpreende entre estes factos - e não foi convicção do tribunal colectivo aquela que o recorrente pretende agora impor a este Supremo Tribunal.

Por isso mesmo o tribunal colectivo ponderou - e bem - que dos factos apurados não resulte que o arguido destinava todo o produto da venda de estupefacientes para adquirir estupefacientes para seu consumo pessoal, pelo que afastou a qualificação de traficante-consumidor do artigo 26 do Decreto- Lei n. 15/93, precisado, também correctamente, que esta disposição exige que o tráfico tenha por finalidade exclusiva conseguir substâncias para uso

pessoal.

Mas o recorrente argumenta, ainda, que do facto de ser tóxicodependente, é de extrair a ideia que é essa toxicodependência que o arrasta para o crime de tráfico; e que a razão que levou o legislador a criar o tipo bastante atenuado do artigo 26 também deve ser tido em conta, embora em menor grau, na

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medida em que o tráfico e o consumo aparecem, nestes casos aos olhos do legislador, como uma unidade incindível de actos que se complementarizam - citando jurisprudência nesse sentido. Em sustentação deste ponto de vista, invoca o despacho do Senhor Delegado do Procurador da República, de folhas 34 e seguintes, que admite que "a sua conduta possa vir a ser subsumida ao tráfico de menor gravidade previsto e punido pelo artigo 25, alínea a) do Decreto-Lei 15/93".

Acontece que este tema não passou despercebido aos julgados, pois vê-se do acórdão, em sede de motivação, uma referência ao bem fundado da acusação, ao imputar ao recorrente a prática dos dois crimes - consumo e tráfico - em concurso real, pois "não existe qualquer incompatibilidade entre os tipos criminais, porquanto os bens jurídicos penalmente protegidos são distintos e têm natureza eminentemente pessoal - saída alheia e própria - não havendo nada de comum entre eles" - citando igualmente jurisprudência deste

Supremo Tribunal nesse sentido.

E continuando a sua apreciação, acrescentou-se que dos factos apurados resulta devidamente comprovado que o arguido cometeu o crime de consumo de estupefacientes, pondo em risco a sua saúde; e que também resulta

devidamente comprovado que adquiriu e detinha em seu poder,

estupefacientes para transaccionar, vendendo-os a consumidores que procurava ou para o efeito o procuravam.

Ainda nesta sede, invoca o arguido recorrente que no acórdão impugnado não se refere uma única transacção em concreto que por ele tivesse sido

efectuada, nem se provou ou referiu, no mesmo acórdão, nem na acusação, vantagem patrimonial que o arguido retirasse dessa actividade; como não foi provado nem referido na acusação que o arguido se movesse pela finalidade de lucro fácil, ou que obtivesse grandes lucros com a venda da droga, ou que traficasse em grande quantidade. Mais, diz-se que os actos de consumo e tráfico foram repetidos, prolongando-se no tempo a actuação ilícita do arguido, mas não se refere em concreto qual foi esse período, pelo que se pode concluir que tanto pode ter durado um dia como durado mais tempo. E, vigorado no direito processual português o princípio in dubio pro reo, este facto não pode deixar de beneficiá-lo.

Assim, entende que a sua conduta não preenche o tipo de ilícito previsto no artigo 21, mas sim o previsto no artigo 25, devendo o acórdão ser revogado nesse sentido.

Não lhe assiste razão, porém.

Começaremos por notar que o artigo 21 do Decreto-Lei n. 15/93 contempla uma série de actos, cada um dos quais, de per si, integrar o crime aí definido.

Ora, como resulta da matéria de facto dada como provada, o arguido detinha

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ilicitamente a heroína, para a destinar à comercialização e ao propósito de auferir lucros e que a vendia, normalmente, em Águeda, a pessoa cuja

identidade se não apurou. Para estabelecer estes factos, não tinha o tribunal colectivo que considerar provada uma qualquer transacção em concreto ou em que vantagem patrimonial concreta se traduziu a venda, a menos que se

remetesse a meras conjecturas. Baseando-se nas provas produzidas e examinadas, o tribunal foi até onde lhe era possível, no que demonstrou manifesta prudência. Aliás, é da experiência comum a grande dificuldade, para não dizer a impossibilidade, de averiguar, em concreto, quantas vendas se realizaram e que quantidade em dinheiro foram obtidas por cada uma ou pela totalidade: o tipo de agente e as modalidades de actuação não se

compadecem com registos de transacções ou com uns sistemas de

contabilidade, revelados desses elementos, pois tudo se passa, normalmente, no maior sigilo e a ocultar. De sorte que a convicção dos julgamentos tem forçosamente de resultar de provas ou indícios graves, precisos e

comandantes, como acima se referiu, em particular a inequívoca

demonstração da posse de droga já empacotada ou embalada ou de material adequado a novas embalagens. E o tribunal convenceu-se de que estes

elementos eram suficientes, indo ao ponto de considerar provado que o produto era normalmente vendido em Águeda, embora sem conseguir, pelas referidas contingências de prova, apurar a quem e por que preço.

Não teve o tribunal colectivo dúvidas quanto a estes pontos, que pudessem accionar o aludido principio "in dubio pro reo".

Enfim, a alusão ao despacho do Senhor Delegado do Procurador da República não há qualquer valor nesta sede.

Como se vê de folha 34 dos autos, tal despacho foi proferido no acto de interrogatório do arguido, em 13 de Agosto de 1994, e procedendo à

realização do primeiro interrogatório judicial e à proposta de aplicação da medida de coacção processual de prisão preventiva. Nessa fase do processo, ainda longe da ultimação do inquérito, é natural que o magistrado proponente ainda não dispusesse de indícios seguros para a definição dos factos e sua qualificação jurídica. Daí que admitisse a possibilidade de a conduta do

arguido vir a ser subsumível no tipo do artigo 25 do Decreto-Lei n. 15/93, que não representou qualquer compromisso assumido com carácter de

definitividade. Tanto assim que, no acto de acusação (folhas 80-82), já não teve dúvidas em importar aos arguidos, e no que particularmente respeita ao ora recorrente, a prática dos crimes de tráfico de droga e de consumo de droga, previstos e punidos nos artigos 21, n. 1 e 40, n. 1 do Decreto-Lei n. 15/93.

É interessante notar que o recorrente, neste segundo meio de impugnação, ao defender a qualificação da sua conduta como "tráfico de menor gravidade"

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(artigo 25 do citado Decreto-Lei). Não deixa de aceitar a pertinência dos factos, enquanto reveladores de actos de tráfico descritos no tipo legal do artigo 21, posto que o primeiro daqueles artigos tem como pressuposto os factos aí tipificados, só que a moldura penal punitiva é inferior quando se mostrar que a ilicitude se revela consideravelmente diminuída, em atenção, nomeadamente, aos meios utilizados, à modalidade ou circunstâncias da acção e à qualidade ou quantidade das plantas, substâncias ou preparações.

Mas, como bem se pondera no acórdão recorrido, dos factos apurados não resulta que a conduta do arguido possa integrar o tipo de tráfico de menor gravidade, pois nada permite concluir que se mostra consideravelmente diminuída a ilicitude daquela conduta, sendo desconhecido os meios

utilizados, bem como as modalidades e as circunstâncias da acção; e ainda que a lei não exige a intenção lucrativa ou lucros avultados como elemento

integrante do crime, bastando-se com a prática dos factos fraudulentos,

comerciar ou deter para comércio, ministrar ou facilitar a outrem substâncias estupefacientes; Tratando-se, pois, de um crime de perigo comum, que visa a protecção da saúde pública.

Não nos merece censura esta argumentação.

E, acompanhando o expendido, na sua resposta, pelo Excelentíssimo Delegado do Procurador da República, não só a quantidade de droga detida pelo

recorrente não pode considerar-se despicienda como se trata de uma droga dura, cujos malefícios são por demais conhecidos.

Com efeito, é da experiência comum que a heroína é uma substância

particularmente nociva para a saúde e integridade física das pessoas. Não sem razão observa Lourenço Martins que o bem jurídico primordialmente

protegido pelas previsões do tráfico é o indicado, sem que esteja descartada a protecção da própria humanidade se, como quem algum, se encarada a sua destruição do longo prazo. E que a punição também é diferente conforme a potencial perigosidade da droga traficada, embora o legislador não tivesse aderido à conhecida distinção entre drogas duras e drogas leves, mas

verificando-se alguma graduação consoante a sua posição nas tabelas I a III ou na tabela IV.

Relativamente à intenção do agente que possui ou detem a droga - continua aquele autor - "que mora nos arcanos inexpugnáveis do ser humano", ela deduzir-se-á, por isso, na maior parte dos casos - se não for o próprio a revelá- la - de factos exteriores os mais diversos, desde que provados. "De tais factos, seguindo as regras da experiência comum, o julgador retira as suas

conclusões. Sem que estejamos no domínio das presunções, as quais suporiam uma inversão de ónus da prova".

E, prosseguindo: "Continua a ser de fácil previsão que em sua defesa o

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arguido venha invocar que a detenção das substâncias se destinava ao consumo pessoal (artigo 40) ou que com o tráfico se visava apenas e exclusivamente o uso pessoal (artigo 26).

O quantitativo da droga detida é, em regra, um elemento de grande relevo, assim como o saber se o arguido era consumidor ou não (se o não for a posse apontará para o tráfico). Todavia, outros critérios são utilizáveis para

patentear a intenção do arguido: se tinha em seu poder balanças de precisão, pequenas bolsas ou materiais para embalagens, doses já preparadas..., todos serão, em princípio, indicadores de tráfico".

Enfim, quanto ao tipo legal do artigo 25, cuja aplicação é definida no recurso, importa esta algumas conclusões do mesmo autor.

Assim, quanto à "qualidade" das plantas, substâncias ou preparações, não deve esquecer-se que a organização e colocação nas tabelas segue, como princípio o critério da periculosidade intrínseca e social das mesmas.

Saber, porém, qual o número de doses médias diárias (dose avaliada em face de um consumidor (habitual) médio), dito de outro modo, qual a quantidade de droga para além da qual o tráfico não pode ser considerado de menor

gravidade é tarefa a medir em face de cada caso concreto. Não é, todavia arrojado afirmar que o legislador português abandonou o rigorismo da quantidade diminuta, entendida como a dose necessária ao consumo

individual de um dia, alargando esse parâmetro para alguns dias. (Cfr. "Droga e Direito", Ed. Aequitas/Ed. Notícias, páginas 122 e seguintes). E quanto ao tema da necessária ou não necessária verificação cumulativa das

circunstâncias enunciadas no preceito, diferentemente do que sucede na lei italiana, a enumeração não é taxativa, o que significará que outras

circunstâncias podem ser atendidas em ordem a considerar o tráfico de

gravidade diminuída. Aquelas, porém, não podendo deixar de ser ponderadas, e tal como na jurisprudência italiana, uma apreciação complexiva, diríamos, finalística, isto é, dirigida à obtenção de um resultado final, qual seja se

objectivamente a ilicitude da acção é de relevo menor que a tipificada para os dois artigos anteriores.

Note-se que a terminologia usada se aproxima da inserta no n. 1 do artigo 73 do Código Penal - "Circunstâncias que diminuam por forma atenuada a

ilicitude do facto" (Ibidem, página 153).

Estes contributos doutrinários confortam a ideia de que o tribunal colectivo não errou nem quanto aos elementos integrantes do crime do artigo 21 nem quanto à inexistência, no plano fáctico, de razões para que se possa concluir pela consideravelmente diminuída ilicitude da conduta do arguido.

E as penas aplicadas não deixaram de levar-se em conta a inexistência de agravantes e de atenuantes de relevo. Todavia, a matéria de facto provada

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aponta para alguma atenuação da culpa, desde a circunstância de se tratar de um consumidor de heroína desde há cerca de quatro anos, que em dada altura abandonou o consumo para fazer tratamento de desintoxicação, mas que

voltou a consumir até ser detido. E algum relevo foi dado ao facto de ter mantido bom comportamento no estabelecimento prisional onde se encontra detido.

Certamente por isso, as penas parcelares foram fixadas, quanto ao crime de tráfico, muito perto do mínimo da moldura penal e, quanto ao crime de consumo, no mínimo. Não se pode dizer que o tribunal não tenha sido

generoso, sendo certo que este Supremo Tribunal não pode modificar essas penas, agravando-as, dado o disposto no artigo 409, n. 1, do Código de Processo Penal.

Também não há razões ponderosas para censurar a decisão, no que toca à qualificação dos factos como crimes continuados, tendo havido correcta aplicação do artigo 78 do Código Penal, no estabelecimento da pena única.

Cabe aqui precisar que a personalidade do agente o não favorece, face aos elementos disponíveis constantes da decisão impugnada. Em conclusão, as penas foram determinadas, quiçá alguma benevolência, dentro dos limites da lei, em função da culpa revelada e pode dizer-se que também satisfazem as exigências de prevenção de futuros crimes que, na sua vertente de prevenção geral, respondem à manifesta intenção do legislador do Decreto-Lei n. 15/93, de reagir contra a que se tem chamado o verdadeiro flagelo que resulta da indesejável multiplicação dos fenómenos de tráfico e consumo de

estupefacientes, em particular os que respeitam às drogas mais nocivas, como é o caso. Assim, foram respeitados os critérios do artigo 72, n. 1, do Código Penal.

Pelo exposto, a segunda questão a apreciar no âmbito do presente recurso deve resolver-se no sentido da improcedência da crítica feita ao acórdão recorrido, no sentido de que o recorrente devia ter sido punido pelo crime do artigo 25 do Decreto-Lei n. 15/93, por errada qualificação dos factos apurados como integrantes do tipo legal do artigo 21.

8 - Assim, por tudo quanto fica exposto, decidem negar provimento ao recurso, confirmando a decisão impugnada.

Pagará o arguido quatro UCs de taxa de justiça e as custas que couberam, fixando-se a procuradoria em 1/4. Fixa-se em 7500 escudos os honorários do defensor oficioso.

Lisboa, 8 de Novembro de 1995.

Lopes Rocha Amado Gomes Castro Ribeiro

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Fernandes Magalhães Decisão:

1. Juízo Criminal de Viseu.

Referências

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