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Para Jess

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SUMÁRIO

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Prólogo Capítulo 1 Capítulo 2 Capítulo 3 Capítulo 4 Capítulo 5 Capítulo 6 Capítulo 7 Capítulo 8 Capítulo 9 Capítulo 10 Capítulo 11 Capítulo 12 Capítulo 13 Capítulo 14 Capítulo 15 Capítulo 16

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Capítulo 17 Capítulo 18 Capítulo 19 Capítulo 20 Capítulo 21 Capítulo 22 Capítulo 23 Capítulo 24 Capítulo 25 Capítulo 26 Capítulo 27 Capítulo 28 Capítulo 29 Capítulo 30 Epílogo

Créditos A Autora

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E

PRÓLOGO

m uma gélida manhã de inverno, nas águas de uma ilha praticamente esquecida, uma merrow nadava, distante de seu lar. A névoa pairava como um véu sobre o mar, se agarrando à sua pele no momento em que ela subiu à superfície. Primeiro, uma coroa de corais e ossos, e então olhos amarelos, redondos como a lua. Uma cicatriz pálida delineava seu maxilar.

Ela interrompeu o nado.

Havia um menino parado na beira do mar. Ela sentiu o cheiro de sal marinho em seu sangue.

Passou a língua nos lábios.

Guardião da Tempestade.

Ela lembrava.

O menino estava de olhos fechados, sua respiração rápida expelida do corpo como um rastro de nuvens. Ele esticou o braço e mexeu os dedos sobre a água. Por um instante, congelou totalmente. Então, seu corpo soluçou com violência, como se algo dentro dele tentasse sair aos socos. Abriu os olhos de repente, o medo estampado em sua testa franzida.

Magia.

A merrow se aproximou. O sol ascendia no céu da cor do marfim, e em breve a ilha estaria abarrotada de gente na orla, motores engasgando e vitrines acendendo como lampiões. Ela não deveria estar ali, na costa... tão perto da voz que vinha sussurrando em seu ouvido das profundezas. Mesmo assim, viera, para ver de perto o menino que havia despertado Morrigan de seu sono eterno.

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Depois de tantos anos, ele finalmente estava ali.

— Funciona! — reclamou o menino quando um choque saiu das pontas dos seus dedos. — Funciona, idiota!

Ele chutou um amontoado de algas para dentro da água.

Magia aprisionada.

A merrow franziu a testa. O tempo estava se esgotando. Ela sentiu a escuridão se mobilizando sob o horizonte, ganhando volume, como se fosse um mar com vida própria abrindo caminho pelo mundo. Na direção da ilha. Na direção do menino. Daquele menino.

Que estupidez de Dagda. Ele será a ruína de todos nós.

O menino apanhou uma pedra e a arremessou no ar. A merrow acompanhou o arco com os olhos, seus lábios se torcendo quando a pedra caiu, com um ploft, ao seu lado.

Um batimento. Dois batimentos. Finalmente, ele despertou.

Começou a correr na direção dela, a água batendo em sua canela, em seus joelhos, até chegar à cintura.

A merrow hesitou por um instante, antes de recuperar o juízo.

Mergulhou sob a primeira onda, sua cauda desaparecendo em meio a um brilho de prata oxidada.

Agora não, pensou ela, se lançando como um arpão para o fundo do mar. Ainda não.

Suas guerreiras estavam subordinadas a outro.

Elas teriam de esperar. Pela ruína, ou pela Invocadora da Maré.

O que viesse primeiro.

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E

CAPÍTULO UM

A CONTAGEM REGRESSIVA

sparramado em um velho sofá surrado, Fionn Boyle tentou gritar para acordar. Em algum lugar de seu subconsciente ele sabia que estava sonhando, mas não era capaz de abrir os olhos.

Só conseguia ouvir a voz melódica que vinha habitando a sua mente. Ela sibilava como uma serpente e se enterrava cada vez mais fundo no cérebro.

Tique-taque, sussurrou a voz. Está me ouvindo, pequeno Boyle?

Morrigan estava nítida em sua mente. Aquele sorriso cínico, largo demais para o rosto anguloso.

Tique-taque, o ruir do despenhadeiro.

Três dias, atenção para o ponteiro.

Ela deu uma gargalhada, e uma sombra foi deslizando na direção dele, os dedos se esticando no breu da sua mente. Tique-taque, tique-taque, tique-taque... As palavras eram cada vez mais frenéticas, cada vez mais agudas, até a risada se transformar em um grito. TIQUE-TAQUE, TIQUE-TAQUE, TIQUE-TAQUE.

Fica longe de mim! Fionn tentou gritar, mas as palavras saíram da sua garganta em borbulhas.

O corpo do menino girava como um tornado, seus braços se debatendo cegamente enquanto ele lutava para voltar à consciência. O sofá rangia sob o seu peso, as molas enferrujadas reclamando do esforço. Socorro! Ela vai arrancar meus olhos! Por favor...

Plaft!

Fionn despertou no susto com algo frio e pegajoso em seu nariz.

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Deu uma fungada. Era...?

— Presunto — disse uma voz familiar. — Panado.

Fionn descolou a fatia do rosto.

O avô estava olhando para ele, seus olhos azuis brilhando na luz da alvorada.

— Acho que você estava redemoinhando de novo. — Em uma das mãos, ele carregava uma pequena bandeja de presunto fatiado, e na outra um pedaço de queijo laranja. — Pensei que o presunto era a opção mais caridosa.

Fionn tirou o cabelo emaranhado da frente dos olhos. Um punho caloroso e familiar aquecia o seu peito, as juntas pressionando o seu tórax como se o estivesse cumprimentando. A magia do Guardião da Tempestade estava desperta, assim como ele.

Fionn suspirou.

— Você não podia só ter chamado o meu nome, feito uma pessoa normal?

— E desde quando eu sou normal? — respondeu o avô, mordiscando uma pontinha do queijo. — Além do mais, chamei o seu nome oito vezes. Cutuquei você três vezes e te sacudi pelos ombros precisamente uma vez. Logicamente, a medida seguinte...

— Era o presunto — completou Fionn, se arrastando pelo sofá até ficar sentado e deixando a maldita fatia de presunto no apoio de braço.

— Infelizmente, rapaz. — O avô o observou atentamente, erguendo as sobrancelhas acima do aro grosso dos óculos. — De novo a mesma coisa?

— Tique-taque — disse Fionn, balançando a cabeça desalentado.

— A contagem regressiva continua.

Morrigan habitava a sua mente fazia alguns meses, mas havia duas semanas que seus sonhos tinham adquirido uma nova urgência. A voz, antes desencarnada e distante, passou a se manifestar com uma contagem regressiva, com mãos e dedos que

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tentavam agarrá-lo, e lábios pálidos próximos demais de seu ouvido.

Ela vinha ficando mais forte, mais atordoante.

— A contagem regressiva é um pouco preocupante — disse o avô.

Uma brisa entrou por baixo da janela e envolveu o sofá. Fionn puxou o cobertor para perto. No mês anterior o inverno tinha tomado conta da ilha, costurando-se ao vento e gemendo por entre as rachaduras nas paredes. Os vidros das janelas viviam cobertos com cristais de gelo, e, às vezes, de madrugada, quando Fionn acordava ofegante, ele podia ver sua respiração pairando como fumaça na escuridão.

— Por que você não vai se deitar no meu quarto, rapaz? — sugeriu o avô. — A energia lá é benevolente e agradável. E ainda tem um aquecedor que é de cair o queixo.

— Agora eu já acordei mesmo — disse Fionn, esticando os braços acima da cabeça e girando o pescoço até ele estalar.

No verão, ele havia cedido sua cama de solteiro para a mãe, insistindo em ficar no sofá doado por Donal, o lojista. O móvel parecia ter sido exumado de uma casa mal-assombrada e exalava um cheiro agonizante. Tinha um rangido terrível à noite e fazia a pequena sala de estar parecer ainda menor do que já era, mas Fionn sabia que não importava onde ele dormisse, Morrigan iria achá-lo de qualquer modo.

— Que horas são? — perguntou ele, após se levantar rapidamente.

— Horas? — O avô já estava voltando para a cozinha. — Você sabe muito bem que eu não sigo esses conceitos arbitrários de tempo.

Tempo.

Fionn andou até a vela que tremeluzia na cornija da lareira, a única chama acesa em um cômodo repleto de velas. A cera estava a cada dia mais rasa, mais parecendo uma poça leitosa de azul do que uma vela. Obviamente, não era só uma vela, para começo de

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conversa. Era a essência de seu avô, todas as suas memórias reunidas em um composto mágico, feito de sangue e mar, queimando noite e dia rumo ao seu fim.

Tempo. O de seu avô parecia estar contado.

Lembrar-se disso deixou Fionn enjoado. Ultimamente, parecia que tudo estava fora de seu controle. Conforme as noites passavam e Morrigan se aproximava dos dias da sua eminência, ele só conseguia se imaginar como o condutor de um trem desgovernado.

Sentia a escuridão começar a envolvê-lo, a contagem regressiva da feiticeira acompanhando o ritmo de seu pulso. Algo iria acontecer.

Em breve.

Ela despertará quando o garoto retornar, dissera Ivan, com muito entusiasmo. Ela ascenderá quando o Guardião da Tempestade sangrar por ela.

Fionn não sangrava por Morrigan desde o dia em que ela havia despertado, mas também não tivera sucesso em adormecê-la de novo. A jornada até a Caverna do Mar durante o verão ainda o assombrava. Tinha chegado tão perto de perder a irmã, e então de se afogar sozinho naquela escuridão sem fim, com Morrigan gargalhando em seu ouvido. Aquela lembrança era dura, machucava, e, muitas vezes, quando sua mente divagava, ele percebia a lembrança sufocando o seu peito.

— Sanduíche? — perguntou o avô de dentro da cozinha. — Podemos dividir o presunto, mas o resto da mostarda é meu, sinto muito. É integral. E francesa. Très cara.

— Não, valeu.

Fionn olhou fixamente para a pequena chama na cornija da lareira. A magia dentro do menino acendeu em reconhecimento. Ele esticou a mão acima da tina de vidro, instigando a chama a dançar em sintonia.

Vamos... Vamos...

Fionn era o Guardião da Tempestade, quem a ilha havia escolhido para controlar os elementos em nome de Dagda, pelo

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tempo que sua mente e seu corpo fossem capazes. Era quem comandaria a terra, o vento, o ar e o fogo só com o pensamento.

Deveria ser fácil. Deveria ser simples.

Ele rangeu os dentes, movimentando os dedos da maneira que o avô ensinara. Vamos.

A chama o ignorou.

Seu rosto começou a coçar.

Cresça, implorou ele com a força do pensamento. Dance.

A magia soluçou em seu peito, quase derrubando o garoto.

Fionn baixou o braço e deu um suspiro.

A sala de estar voltou a ficar nítida e, quando ele se deu conta, o avô estava ao seu lado.

— Um dia vai funcionar, rapaz.

— Já faz cinco meses.

— Talvez ainda leve mais um.

— Eu não tenho mais um!

— Até onde sabemos, a Morrigan pode estar blefando — disse o avô, pouco convincente. — Tentando assustar você, só pela diversão. Tentando mexer com a sua cabeça!

— Ela já mexeu com a minha cabeça, vô. Preciso aprender a controlar minha magia. Agora.

O avô franziu a testa, encarando o sanduíche.

— Não foi assim comigo... Nem era preciso tanta concentração, na verdade...

Ele olhou em volta, para as velas que ocupavam as prateleiras do cômodo, a magia do Guardião da Tempestade. Anos de magia, produzida e engarrafada. A mesma magia que corria no sangue de Fionn.

— Você pode tentar acender uma...

A expressão de Fionn interrompeu a ideia do avô.

— A última vez que tentei usar a magia das velas, eu vomitei e desmaiei — lembrou o garoto. — Eu já sinto a magia correndo no meu corpo todo. Só não faço ideia de como desencadear...

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O olhar de Fionn foi atraído para a estante atrás de seu avô. A mesma estante sobre a qual ele passou a noite anterior debruçado, contando incansavelmente as colunas de cera, nome após nome, pavio após pavio, até ceder a um sono irregular. Toda noite ele a estudava minuciosamente, como um general catalogando seu arsenal, enquanto sua própria arma seguia engasgada em suas veias.

Havia algo de errado com a estante naquele momento.

No meio dela, onde um conjunto de nevascas disputava espaço com pores e nasceres do sol, havia uma lacuna praticamente imperceptível. Entre Saoirse, que significava “liberdade”, e Suaimhneas, “paz”, Fionn deu falta da vela Chuvas primaveris de 2008.

O garoto atravessou a sala em três longos passos, enfiando os pés dentro dos tênis sem nem mesmo desamarrar os cadarços.

O avô o seguiu com o olhar, mastigando o sanduíche.

— Aonde você vai com tanta pressa?

Fionn vestiu um casaco rapidamente e puxou seu gorro de lã sobre as orelhas.

— Fomos roubados!

— Minha nossa. Roubaram o quê?

Fionn lançou um olhar desaforado para o avô.

— Acho que você sabe exatamente o que roubaram. E também sabe quem roubou, inclusive.

O avô enfiou o resto do sanduíche na boca de uma vez só, parecendo um baiacu de bochechas inchadas, farelos espalhados nos seus lábios, e então apontou para o próprio rosto como se dissesse: Não posso falar agora, estou de boca cheia.

Fionn abriu a porta da casa, e o inverno entrou como um vendaval, soprando seus fios de cabelo pretos descobertos pelo gorro.

— Temos que preservar elas! — disse o garoto com raiva, antes de bater a porta e sair correndo pelo caminho do jardim.

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O portão se abriu para ele, e os arbustos, esqueléticos sem a folhagem do verão, estalaram em despedida. Um toldo de nuvens cobria o sol ascendente. Fionn podia ver o bando de corvos habitual patrulhando o promontório, obrigando as gaivotas a voltar para o mar. O vento gélido assobiava à sua volta, abafando os gritos distantes dos pássaros, limpando a trilha de pedrinhas e inclinando as flores em reverência enquanto o garoto descia o promontório em direção à praia.

De imediato, ele viu o redemoinho. Ali estava, em plena vista de quem quisesse olhar, a magia do Guardião da Tempestade, saltitando e dançando ao longo da costa. A água girava em círculos, criando espuma nas bordas como uma batedeira. Quanto mais tempo Fionn observava, mais a espuma crescia.

Ele pulou a mureta e seguiu em frente, caminhando na areia.

— Ei! Para com isso!

Na beira da água, a irmã de Fionn se virou para ele. Uma das suas mãos estava esticada para o redemoinho, enquanto a outra segurava uma vela turquesa que queimava de cabeça para baixo, se consumindo de dentro para fora.

— Oi, trouxa — disse ela, com um amplo sorriso. — O que você veio fazer aqui?

Fionn marchou na direção da irmã.

— Já te falei mil vezes pra você não desperdiçar as velas!

— Estou praticando — rebateu ela, virando-se de volta para o mar. Seu rabo de cavalo golpeou o vento, que fazia balançar o casaco de inverno. — O vovô disse que eu podia, então sossega o facho.

— Não é o vovô quem decide, sou eu! — exclamou Fionn. — Apaga!

A risada de Tara se espalhou para todos os lados.

— Você é tão dramático!

— Disse a garota que ficou de vigília quando o Bartley Beasley voltou pro continente!

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Ela lançou um olhar fulminante para o irmão.

— Você sabe que eu ainda não estou pronta pra falar disso!

Fionn puxou a garota pelo braço.

O redemoinho enfraqueceu.

— Me larga! — rosnou Tara, sacudindo o braço. — Estou me concentrando!

— O sol já vai nascer! Todo mundo vai te ver aqui! — Fionn olhou por sobre o ombro. Uma senhora idosa com um xale cinza caminhava na beira da areia. — Tá vendo?!

— Deixa de ser paranoico — respondeu ela, sequer se dando o trabalho de olhar. — Você sempre vem aqui. Só está com medo de verem como eu sou muito melhor do que você nisso. De verem como as ondas me obedecem. E aí todo mundo vai começar a se perguntar da sua magia. Por que será que ninguém nunca viu? Ahh.

A irmã do Guardião... talvez comecem a dizer que a ilha devia ter me escolhido. — Ela apertou os lábios, satisfeita, certa de que havia metido o dedo na ferida. — E talvez tenham razão.

Não — respondeu Fionn, prontamente. — Você é só uma idiota que tá acabando com o nosso arsenal como se fosse um saquinho de jujubas, porque é incapaz de pensar em outras pessoas, além de si mesma! — Sua respiração estava tensa. — Se você tivesse mais de dez neurônios, perceberia isso.

Tara ergueu a cabeça.

— Eu tenho um monte de neurônios. Sempre ganho do vovô no jogo de palavras cruzadas.

— Então, prova — desafiou Fionn, olhando novamente por sobre o ombro. A senhora havia sumido. — Apaga a vela.

— Tá bem.

Tara esmagou o que restava da vela em sua mão e, com a outra, acenou na direção do irmão. O redemoinho saltou do mar e, em uma enxurrada congelante, deu um caldo em Fionn, encharcando seu gorro e descendo por suas roupas até que água gelada escorreu pela boca das calças, formando poças na areia.

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— Feliz agora? — disse ela, com um sorriso malicioso.

Fionn olhou feio para a irmã, suas palavras passando violentas por entre os dentes que não paravam de tremer:

— Quem dera eu pudesse enterrar você debaixo de uma pedra por toda a eternidade.

— Pode tentar — respondeu ela, andando de costas. — Eu voltaria em menos de uma semana.

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U

CAPÍTULO DOIS

A ONDA PODRE

ma hora depois, Fionn se encontrava do lado de fora da lojinha de esquina do Donal, olhando ainda furioso para o seu chocolate quente. A luz do sol abriu caminho entre as nuvens, trazendo consigo um frio congelante que se alojou entre os seus dedos do pé e se agarrou à ponta de seu nariz. À sua volta, seus colegas estavam agasalhados com cachecóis, gorros e casacos pesados de inverno, as mochilas sacudindo e batendo nas costas enquanto eles conversavam animados na orla. Era o último dia de aula antes das férias de fim de ano, e havia uma leveza no ar.

Fionn mal reparou. Estava ocupado demais, concentrado no marshmallow em seu copo.

Faz alguma coisa. Qualquer coisa.

Ele rangeu os dentes, sequer piscando os olhos.

Me dá uma bolha. Só uma bolhinha.

Sua visão começou a ficar embaçada.

Vamos. Vamos. Vamos.

Uma buzina soou à distância, fazendo o garoto dar um salto.

Fionn jogou fora o copo e girou o pescoço para os dois lados, piscando para as lágrimas caírem dos olhos. Adiante, a balsa da manhã se aproximava do porto.

Ele piscou novamente, desta vez confuso. Não havia uma balsa, mas duas. A segunda deslizava na água no rastro da primeira.

Fionn franziu a testa. Durante todos esses meses morando em Arranmore, ele nunca tinha visto uma balsa tão lotada, muito menos duas. Começou a andar na direção da praia, quase esbarrando nas

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irmãs Aguero. Cada uma desviou para um lado, jogando seus cabelos pretos idênticos afrontosamente enquanto caminhavam na direção de Tara, que esperava no portão da escola. A irmã trocou olhares com ele, e então deu algumas batidinhas no pulso, como se dissesse: Anda logo, trouxa. Você vai se atrasar.

Fionn ignorou o gesto, dando as costas e se dirigindo para o píer.

As balsas estavam lotadas de passageiros. A maioria amontoada no convés, os ombros colados uns nos outros, espremidos como sardinhas enlatadas. Quando a buzina da segunda balsa soou, todos se viraram ao mesmo tempo, completamente atentos. Aquela imagem era sinistramente familiar: o mar de rostos estranhos se movendo silenciosamente na água, todos com olhos grandes e arregalados.

Caçadores de almas.

Horrorizado, Fionn observou em silêncio a primeira balsa atracar.

Uma onda se formou embaixo dela, crescendo e espumando conforme galopava na direção da praia.

Ela vinha carregando um cardume de peixes podres. Eram tantos, que Fionn podia ouvir, de onde estava parado, os peixes sendo jogados contra a areia. Podia até mesmo ver suas tripas, olhos pegajosos e escamas manchadas formando uma pilha cada vez maior, a cada nova onda.

Ele ouviu um grito vindo da praia. Douglas Beasley disparou para fora dos correios com um pacote debaixo do braço e Donal apareceu na porta de sua loja, o cabelo flutuando sobre sua cabeça como uma nuvem. Na frente da escola, as conversas foram encerradas. Os adolescentes agora esticavam o pescoço, curiosos.

As ondas podres continuavam quebrando, os peixes mortos intoxicando o ar com um forte cheiro fétido.

Fionn cobriu a boca com a manga do casaco para segurar a ânsia de vômito, mas, quanto ao pânico, não havia o que fazer. O pavor aumentou em seu peito, esmurrando o coração do garoto até ele sentir que não podia mais respirar.

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Enfim, ela havia conseguido. De alguma forma, Morrigan convocou seus seguidores à sua casa, e eles vieram acompanhados pela sombra da morte.

O estrondo de passos se aproximando interrompeu seu pânico crescente. Com eles, seu nome, lançado no ar como uma bola de futebol.

— EI! FIONN!

Fionn levantou a cabeça e viu seu melhor (e único) amigo na ilha correndo furiosamente na sua direção.

Isso não era muito comum para Sam Patton. Dos dois, Sam era o sereno. Era muito mais viajado do que Fionn, e estava acostumado a uma vida menos convencional. Foi esse traço de personalidade do amigo que chamou a atenção de Fionn, a princípio. Isso, e o fato de que Sam, apesar de ter sido criado em Londres, pertencia a uma das cinco famílias originais de Arranmore. O garoto não quis deixar dúvidas disso quando conheceu Fionn em setembro, em meio a um bando de adolescentes mortos de cansados, caminhando pelo pátio da escola com um ar de celebridade.

— Guardião da Tempestade! — Ele tinha analisado Fionn da cabeça aos pés, para ter certeza. — Você é mais magricela do que eu esperava, mas até que tem uma certa pinta. Lembra a minha bisavó. Sam Patton — anunciara, estendendo a mão vestida com uma luva de couro. — Bisneto da primeira e única Maggie. Ela foi Guardiã da Tempestade, também. Passei as férias todas ansioso pra te conhecer.

Sam era nitidamente mais baixo que Fionn, mas seu senso de tranquilidade fazia parecer que media três metros de altura. Tinha olhos castanhos grandes, pele negra e cabelos cacheados. Eles quicavam na sua testa enquanto ele corria pela orla com um estojo de flauta debaixo do braço esquerdo e o outro braço oscilando como um moinho de vento. Ele parou abruptamente.

— Olha o tamanho dessas ondas! — disse, ofegante, antes de cobrir a boca com a mão livre. — Argh, esse cheiro. E só piora.

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As ondas continuavam quebrando uma atrás da outra, espumando e pintando o litoral de prateado.

— De onde será que elas estão vindo? — perguntou Sam, por entre os dedos.

— Deles — disse Fionn, apontando para o píer. — Parece que os servos da Morrigan finalmente a encontraram.

Sam se voltou para o píer, girando no salto de suas botas.

— Quer dizer que aqueles passageiros são...?

— Caçadores de almas. Não tá vendo?

Sam estreitou os olhos, desconfiado. A primeira balsa já tinha liberado a descida dos passageiros. Eles atravessaram o píer correndo como siris, homens e mulheres vestidos com cachecóis, casacos, chapéus e ternos, todos indo na mesma direção, um após o outro.

— Eles nem piscam — disse Sam, estremecendo. — Só ficam olhando fixamente.

— Eu avisei que tinha algo a caminho da ilha. — O estômago de Fionn estava se revirando. — Estou dizendo há semanas, já.

Tique-taque, tique-taque, tique-taque.

Morrigan não estava blefando. Ela estava se gabando.

— Isso é hora do discurso de “eu avisei”? — disse Sam, inquieto.

— Acho que não. — Fionn trouxe a mochila para a frente e tirou seu caderno de dentro dela. — Vamos. Não temos muito tempo.

Vamos dar o fora daqui antes que a praia fique cheia.

Ele enfiou o caderno debaixo do braço e fez um gesto para Sam o seguir, se afastando da praia e passando direto pelo portão na escola.

Deixaram o sino badalando para os céus.

— A sra. Cannon vai levar tortinhas de frutas hoje — disse Sam, olhando desapontado por sobre o ombro e apressando o passo para acompanhar o andar determinado de Fionn. — São minhas preferidas.

Fionn entregou o caderno para o amigo.

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— Se me ajudar a salvar a ilha do esquecimento, eu asso uma fornada inteira pra você — prometeu ele.

— Olha que eu vou cobrar — respondeu Sam, desacelerando para abrir o caderno. — E quero bonequinhos de gengibre, também.

Com botões.

— Tá bom. Lê logo, por favor.

Na primeira página, Fionn havia enumerado e anotado as cinco dádivas de Arranmore, em seu garrancho. Sam foi lendo em voz alta enquanto caminhavam.

1. Guardião da Tempestade de Arranmore: comandar os elementos em nome de Dagda.

Também conhecido como eu. Leia-se: inútil.

2. Caverna do Mar (terra): para o que está fora de alcance. Já usei com a Tara. Mto ingrata.

3. Árvore Sussurrante (fogo): para o que ainda está por vir. Acho melhor eu lidar com o presente antes de me meter no futuro.

4. Aonbharr, o cavalo voador (ar): para perigos inescapáveis. Será que eu vou acabar encrencado se voar pra longe da ilha e deixar ela pra morrer?

5. As merrows (água): para possíveis invasores. Essa parece ser a única opção que vai nos ajudar.

Após um momento de contemplação, ambos subindo o promontório em silêncio, Sam fechou o caderno.

— Certo — disse ele, consertando a lapela de seu casaco azul.

— As merrows, então.

Fionn percebeu a voz trêmula do amigo.

Merrows. Fionn já tinha ouvido dezenas de histórias sobre o exército de pele azul e barbatanas que patrulhava as profundezas do mar de Arranmore. Segundo sua mãe, à noite, depois de algumas rodadas, as conversas nos pubs frequentemente se voltavam para as criaturas marinhas, sua infame barbaridade e suas bocas com dentes de tubarão. Havia sempre relatos, floreados com novos detalhes, de merrows avistadas ao longo da costa, focas perdidas ou golfinhos simpáticos. Os habitantes locais cambiavam histórias como dinheiro falso. Fionn podia jurar que tinha visto uma, certa vez, no leito do mar. Tinha sentido algo no peito, um fio de

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magia conectando os dois, mas ela havia sumido antes que ele pudesse se aproximar.

— Acha uma péssima ideia?

— Não necessariamente — concluiu Sam. — Elas certamente ajudariam nessa... situação. São tenebrosas, apavorantes e garantia de que vamos ter pesadelos por anos, mas sem dúvida ajudariam.

Só tem um probleminha...

— A gente não faz ideia de como achá-las?

— Basicamente — disse Sam, encolhendo os ombros.

Fionn pressionou a mandíbula. Ele já esperava por isso.

— Acho que sei por onde começar.

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F

CAPÍTULO TRÊS

A CONCHA DO FEITICEIRO

ionn guiou Sam até o topo do promontório, onde passaram por Tír na nÓg, o chalé do avô de Fionn, e prosseguiram para o norte. O mar desapareceu atrás deles, e as árvores os receberam de braços abertos. Os pinheiros, sempre verdes, iam curvando seus galhos para trás e salpicando folhas dentro do capuz de Fionn.

Depois de certo tempo, chegaram ao coração indomado de Arranmore. Aproximaram-se da beirada de um lago, suas águas calmas esparramadas entre os morros da ilha, com cristas prateadas formando dobras que lembravam um edredom amarrotado.

— Aqui estamos — disse Fionn, triunfante.

— Hmm. — Sam olhou para o lago com ceticismo. A cor parecia água de lavar louça misturada com sabão. — Sinceramente, eu esperava um plano um pouquinho melhor.

— O lago Cowan foi onde Dagda criou a primeira merrow — disse Fionn, apontando desnecessariamente para a vastidão de água. — É uma lenda da ilha.

— Confia em mim, eu sei tudo sobre esse lugar — disse Sam, encostando sua mochila em uma pedra e apoiando o estojo da flauta em cima dela, com cuidado. — Minha irmã me empurrou aí dentro no inverno passado. Uma parte do meu dedo mindinho necrosou, com certeza, mas minha mãe disse que ele sempre foi meio curtinho e que não se pode processar um parente. Além do mais, a Una tem quinze anos, então eu acabaria processando meus pais, e aí qual seria o sentido? Eles já estão meio duros com a

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reforma da cozinha e meu pai não tá tendo um ano criativo — disse Sam, fazendo aspas com os dedos. — Ele só escreveu quatro poemas, e são todos sobre o nosso gato. Enfim, o que eu quero dizer é: esse lago é congelante.

— Mas também é mágico — retrucou Fionn. — Meu avô conta que, quando o Dagda criou a primeira merrow, o lago estava tão repleto de magia pura que ficou iluminado de todas as cores imagináveis.

— É por isso que os peixes são tão estilosos — disse Sam, abrindo um sorriso. — Eles ganharam escamas coloridas por causa do Dagda.

— E aí, ele simplesmente se ajoelhou na água e puxou a merrow, como se ela estivesse ali o tempo todo, esperando por ele — prosseguiu Fionn, balançando a cabeça, incrédulo. Ficou imaginando o nível de poder que Dagda possuía para conceber uma criatura do nada, a partir da água. — Ele a chamou de Lír. Significa

“do mar”.

É... — disse Sam, devagar. — E aí o Dagda jogou nossa amiga Lír no Oceano Atlântico e ela nadou pra longe de Arranmore para se reproduzir no fundo do mar. Isso tudo aconteceu mais de mil anos atrás... — Ele ergueu uma das sobrancelhas com precisão perfeita. — Você não tá achando que vai encontrar outra escondida aí, tá?

Fionn largou sua mochila na grama com um baque cerimonioso.

— Não sei — respondeu ele, francamente. — Acho que não custa nada dar uma olhada.

Não foi franco quanto à segunda parte, no entanto: aquele era o melhor e, crucialmente, único plano no qual havia pensado em todos esses meses de magia extinta.

Os dois observaram as águas do lago Cowan. Diferentemente de Sam, Fionn nunca o havia visitado, embora o conhecesse das histórias da mãe. Fora cenário de dias de verão raros de piquenique com a família durante a infância dela, de empinar pipas e lançar

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bolas de rúgbi, de mergulhar e pular no lago, muito antes de seus irmãos se mudarem para Chicago e se esquecerem dela. Era o lugar onde ela e o pai de Fionn namoravam escondidos quando adolescentes, passeando juntos, em segredo, em meio à vegetação juncosa, seus uniformes da escola dobrados até o joelho.

Foi nesse lugar onde, anos depois, seu pai ajoelhou-se com o anel de rubi da avó e pediu a mãe de Fionn em casamento. Era a Arranmore das fotos das núpcias, de sua mãe com um vestido que parecia um merengue flutuante, do pai de olhos tão azuis quanto o lago ao fundo.

— Sem ofensas, mas se tivesse uma criatura marinha anciã escondida nesse lago, acho que alguém já teria percebido — disse Sam, interrompendo os devaneios do amigo. — Acho que teremos mais sorte procurando no mar.

— Elas não aparecem quando eu fico parado na praia e as chamo — disse Fionn, dando um suspiro de frustração. — Já tentei, elas não respondem. São tão...

— Tímidas? Egocêntricas?

— Negligentes.

Ainda assim, Fionn recusava-se a acreditar que as merrows haviam desaparecido de vez. Podia aceitar que sua magia fosse inútil, mas as outras dádivas de Arranmore o abandonarem era outra história. Ele não se renderia tão facilmente.

— Meu avô diz que o lago às vezes mostra visões, se você tiver paciência. — Fionn se agachou. — Diz que ele se lembra de coisas.

Coisas mágicas.

— É, tipo Guardiões da Tempestade — disse Sam, com certo entusiasmo. Ele se ajoelhou do lado de Fionn. — No penúltimo verão, eu vi Ferdia, a Domadora de Golfinhos, e Patrick, o Tecelão de Histórias, no mesmo dia. — Ele se apoiou na grama molhada com os dois punhos. — Você devia abotoar seu casaco direito.

Ajeitar seu cabelo. Você pode estar sendo filmado nesse instante.

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— O Patrick é o Guardião da Tempestade preferido da minha mãe — disse Fionn. — Ele fundou a biblioteca de Arranmore.

— O meu é Lorcan, o Sábio. Ou, talvez, Maggie, a Regente de Ondas. A melhor lenda com certeza é a da baleia-fin. — Sam abriu um sorriso. — Os dois são Patton, obviamente.

Fionn olhou de soslaio para o amigo.

— E Bridget, a Sagaz?

— Não fala besteira — desdenhou Sam. — Ela é uma Beasley!

Fionn deu uma risadinha e se curvou para o lago.

— Meu pai acha que Róisín, a Primeira e Destemida, era uma Beasley, acredita? Imagina só! A Guardiã da Tempestade original.

Uma Beasley! O cabelo todo preto e aqueles olhos de esmeralda — disse Sam, sonhando acordado. — Ele já escreveu vários poemas sobre ela.

— Sei — respondeu Fionn, um pouco distraído. Ele sondava o lago procurando um par de olhos diferente. Olhos amarelos e arregalados, mais precisamente. Não uma Guardiã da Tempestade, mas sim uma merrow escondida em algum lugar naquelas marolas antigas. Qualquer indício que pudesse orientá-lo na direção certa. — Róisín é a preferida do meu avô, também.

O lago lambia a ponta dos tênis de Fionn, mas não havia sinal de qualquer criatura em suas águas turvas.

— Não tem nada aqui além de lembranças, cara — disse Sam, após algum tempo. — Acho que não vamos encontrar nossa merrow.

— Era meio difícil mesmo.

Fionn molhou os dedos na água gelada. Sua mão ficou dormente na mesma hora, mas o peito se aqueceu. Sua magia estava despertando. Abaixo da superfície, manchas de várias cores começaram a piscar, e as barrigas de peixes coloridos apareceram para saudá-los.

Olha — disse Sam, surpreso. — As trutas-arco-íris nunca sobem até a superfície. Elas devem gostar de você!

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A magia de Fionn acendeu, reconhecendo as impressões digitais de Dagda — ainda ali, depois de tanto tempo.

Ficou observando as barbatanas brilhantes até elas saírem de foco e o garoto passar a ver a si mesmo: pele cinzenta e olhos avermelhados. A água tremeluziu, seu reflexo sumindo e voltando, até que de repente surgiu um rosto diferente no lago. Era pálido como um céu invernal e parecia encolhido perto de sua juba vermelha desgrenhada. Fionn teve um medo súbito de que fosse Ivan emergindo das profundezas do tempo, mas não era possível.

Ele não tinha barba, nem tatuagens pretas, só um nariz pequeno e redondo e uma boca grande curvada.

— Hughie Rua, o caçador de piratas! — disse Sam, entusiasmado. — Temos um retrato dele em casa! É um dos seus.

Um McCauley, igual sua mãe! Deve ser por isso que ele apareceu.

Fionn encarou o Guardião da Tempestade ruivo. O homem abriu a boca e deu uma risada exibindo os dentes, a língua e até a amídala, seus ombros se mexendo em harmonia com as marolas.

A magia de Fionn deu um salto dentro de seu corpo, o calor em seu peito emanando para toda parte. Mergulhou o braço inteiro dentro da água e o fogo subiu até sua garganta. Mais um minuto disso, e ele sentia que poderia abrir a boca e cuspir fogo por todo o lago, como um dragão.

— Cuidado! — alertou Sam. — Você pode cair.

A água piscou e um novo reflexo apareceu, bem maior do que o primeiro, pintado por toda a superfície.

Houve um grande suspiro. Fionn não sabia dizer se havia sido ele próprio ou Sam; apenas que, em algum lugar, em algum outro mundo, Dagda estava à beira do mesmo lago. Ele era tão alto quanto Fionn lembrava, seus cabelos brancos como a neve caídos sobre os ombros. A seus pés brilhava uma esmeralda, sua parte inferior encravada em um cajado de madeira retorcido. Em seus braços havia um corpo azul se contorcendo: mãos e pés com

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membranas, um pescoço longo com guelras e olhos amarelos arregalados.

— Lír!

Fionn mergulhou o outro braço dentro da visão, até ficar com o queixo colado no lago.

Dagda repousou a merrow e se inclinou sobre a água, franzindo a testa enquanto procurava por algo sob a superfície do lago. Estava tão próximo que Fionn podia ver o reflexo das trutas brilhantes em seus olhos e os pelos finos de sua barba branca.

O feiticeiro recuou com uma expressão triunfal, puxando algo duro e brilhante de dentro do lago. Segurou na palma de sua mão, e, daquele outro mundo, as bordas do objeto piscaram para Fionn.

Era uma concha, impregnada de magia. Fionn podia sentir o gosto na parte de trás da língua, forte e azedo como uma fruta cítrica.

Sentiu um puxão súbito e violento em seu peito.

Meu.

O garoto foi impulsionado para a frente, tentando alcançar o reflexo, quando Dagda ficou novamente de pé e levou a concha até os lábios. Os joelhos de Fionn enfim cederam, seu peso pendendo demais para a frente. Sam tentou alcançá-lo, mas perdeu o equilíbrio, e ambos gritaram enquanto caíam de cabeça dentro do espelho d’água, estilhaçando-o em milhares de bolhas.

Foram puxados para trás, salvos do batismo completo graças aos seus capuzes. Fionn tossiu e cuspiu um bocado de água do lago, que escorreu pelo seu queixo. Sam desabotoou seu casaco no pescoço, ofegando.

Havia um novo rosto no lago os encarando. Olharam por cima do ombro e viram uma mulher idosa em pé nas margens, atrás deles.

Os dedos dela continuavam segurando seus capuzes.

— De nada — disse, soltando os dois.

O cabelo de Fionn estava escorrido em seu rosto, a metade superior de seu casaco manchada de quatro tons mais escuros, e as mangas, coladas à sua pele. O reflexo de Dagda havia sumido,

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junto com qualquer resquício da magia que tinha incendiado seu corpo. Fionn estava tão frio e cinza quanto o lago.

Deu um suspiro, sentindo-se novamente vazio.

— Obrigado.

A mulher olhou para ele aborrecida.

— Seu tempo está acabando.

Fionn e Sam trocaram olhares confusos.

A senhora apontou para o sol, que brilhava fraco.

— O solstício de inverno lança a noite por toda a terra como uma sombra. Quando a luz estiver mais fraca, a magia negra estará mais forte.

Fionn levantou-se.

— Que solstício? — perguntou, cauteloso. — Do que você tá falando?

— O tempo é tudo. — Ela já caminhava para longe dos dois, na direção das árvores, com o rosto coberto pelo xale. — Não existem merrows aqui, somente memórias. E não são do tipo que podem ajudar. — Suas últimas palavras foram carregadas por uma fria brisa de inverno por cima de seu ombro: — Tique-taque, Guardião da Tempestade.

A senhora desapareceu em meio à mata, deixando Fionn para trás, pasmo.

— Quem raios é essa mulher?

Sam tirou seus cachos encharcados da frente dos olhos.

— Essa é a Rose, do outro lado da colina — respondeu ele, aproximando-se de Fionn. — Ela é meio biruta. Joga baralho com a minha avó todo domingo.

Rose. Fionn já tinha ouvido esse nome antes, mas não conseguia resgatar a memória à qual ele pertencia. Era como um vagalume, girando em um jarro cheio de pensamentos.

O tempo é tudo.

— Preciso ir pra casa e conversar com meu avô — disse Fionn.

Sam assentiu cordialmente.

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— Sendo sincero, você devia ter feito isso antes. É um lago, não o bat-sinal. A gente não ia conseguir resolver esse caos só vindo aqui.

— Valeu pela força — respondeu Fionn, sarcástico.

Sam só retribuiu um sorriso, sua covinha se exibindo na bochecha direita.

— De nada.

O AVÔ DE FIONN estava sentado à mesa da cozinha quando o garoto voltou para o chalé, molhado da cabeça até a cintura.

— Ora, ora... Se não é o Aquaman.

Fionn fechou a porta lentamente.

— Por favor, não conta pra minha mãe que eu faltei à aula — disse ele, pulando de um pé para o outro, tentando se aquecer. — Ela vai me matar.

O avô ergueu as sobrancelhas sobre a borda de sua caneca.

— Calma, Procurando Nemo. Eu não sou dedo-duro.

— Valeu — agradeceu Fionn, tirando sua jaqueta encharcada.

— Foi caçar golfinhos?

O garoto jogou a mochila em um canto do cômodo.

— Merrows, na verdade. Temos um... problema.

O avô repousou a caneca na mesa.

Fionn sentou-se em uma cadeira na cozinha e contou tudo o que havia acontecido naquela manhã, desde a chegada em massa de caçadores de almas com olhares mortos até o motivo de haver cristais de gelo nas pontas de seu cabelo. O avô ouviu tudo impassível, mas sua mandíbula se contraiu quando Fionn mencionou Rose e a advertência dela.

O tempo é tudo.

— O solstício de inverno... — murmurou o avô. — É no dia 21 de dezembro. A noite mais longa do ano.

Fionn congelou na cadeira.

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— Vinte e um. Mas então só faltam três dias!

Tique-taque, o ruir do despenhadeiro.

Três dias, atenção para o ponteiro.

— A contagem regressiva! — Fionn levantou com um salto. — Eles vão trazer ela de volta, vô. É por isso que estão aqui. Agora que a Morrigan finalmente despertou, vão ressuscitar ela no solstício de inverno!

O avô de Fionn levou as mãos ao rosto.

— O solstício de inverno é um dia de escuridão e ritual. A magia da Morrigan estará mais forte. — Balançou a cabeça, angustiado. — Você está certo, rapaz. Não é coincidência os caçadores de almas estarem aqui.

Fionn permaneceu em silêncio. Ainda esperava uma faísca do otimismo característico do avô, uma piada ou um comentário espertinho, ou ao menos um sorriso contido para aliviar a tensão.

— Desculpe, rapaz. Eu deveria ter imaginado isso. — O avô fechou os olhos e inclinou a cabeça para trás, dando um suspiro que parecia interminável. — Infelizmente, você tinha razão. Nosso tempo está acabando.

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O

CAPÍTULO QUATRO

A BALEIA ENCALHADA

avô de Fionn estava esperando na sala de estar quando o garoto saiu do chuveiro, trajando um casaco de inverno marrom, um cachecol verde listrado e sua boina preferida na cabeça. Saudou Fionn com seu sorriso mais travesso, como se a conversa de antes nunca tivesse ocorrido.

Fionn ainda estava enxugando o cabelo com a toalha.

— O que houve?

— Sua mãe vai chegar em casa da biblioteca daqui a pouco. Se arrume logo. Tive uma ideia genial enquanto você estava no banho.

Marchou na direção do quarto com a determinação de um sargento, batendo palma no caminho.

— Anda logo, rapaz! O tempo não espera por ninguém.

Ele deu uma risadinha contida, antes de acrescentar:

— Exceto por mim, é claro.

Fionn se vestiu na velocidade da luz, correndo para o quarto do avô, apenas para descobri-lo com a cabeça enfiada no guarda- roupa.

— Só um segundo, rapaz — disse ele, com a voz abafada. — Sei que está aqui, em algum lugar.

O quarto do avô estava caótico como sempre. O guarda-roupa, escancarado, com camisas caindo dos cabides e gravatas para fora das gavetas. Suas pilhas de livros haviam dobrado de tamanho, desde a última vez que Fionn tinha entrado no cômodo. As mesmas cortinas florais estavam amarradas com pequenos nós e, abaixo

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delas, a coleção particular de velas do avô se encontrava enfileirada como soldados retardatários, poucos e especiais.

Só restavam quatro delas. Com a ausência de Menor registro de maré baixa 1959, que fizera Fionn quase se espatifar em uma rocha durante o verão, e Cormac, que havia aberto uma rachadura em seu coração, a prateleira parecia particularmente vazia. Ao lado de Maior registro de maré alta 1982 encontrava-se a cintilante Chuva de meteoros Perseidas. Do lado dessa, Lua de sangue, que tinha a forma de uma laranja e coloração vermelha vívida. A última vela era verde fluorescente, formando uma espiral intrincada que culminava em um pavio pontudo prateado: Aurora boreal.

Fionn apanhou a vela e a rolou em suas mãos. Seu peito se aqueceu imediatamente, as bochechas formigando com o semidespertar de sua magia.

— Essa aqui deve ser repleta de magia — murmurou Fionn.

O avô voltou-se para ele, deixando de revirar o guarda-roupa por um instante.

— Não tem nenhuma vela nesse chalé que eu esconderia de você, rapaz. Exceto essa.

Ao ver a expressão confusa do neto, explicou:

— Essa foi a noite em que sua avó morreu.

— Ah. Desculpa. Eu não sabia — disse Fionn, entregando a vela para o avô.

Ele deslizou o dedo indicador pelas espirais verdes da vela, esquecendo momentaneamente sua busca no guarda-roupa.

— O céu estava pintado de roxo e verde. As cores pareciam tão vívidas, era como se estivessem dançando pela Via Láctea — murmurou ele. — Eu cheguei em casa tarde do barco salva-vidas, e Winnie estava sentada em sua cadeira do lado de fora, seu lindo rosto voltado para aquele lindo céu. Era de tirar o fôlego de qualquer um... — Ele fez uma pausa, olhando fixamente para a cera. — Pensei que ela estivesse dormindo.

Fionn engoliu em seco.

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— Ah — disse ele novamente, baixinho.

O avô ergueu a cabeça.

— Quando for a minha hora de partir, vou queimar esta vela e encontrá-la. — Seu sorriso era discreto, mas havia uma dose de certeza por trás dele. — Se a ilha permitir, vou me sentar do lado dela sob aquele mesmo céu cintilante e vamos partir juntos.

Fionn lembrou de algo que o avô lhe dissera uma vez, fadó fadó, há muito, muito tempo. É possível morrer em qualquer camada de Arranmore. Cada uma delas é tão real quanto as demais.

O avô colocou a vela de volta na prateleira.

— Não seria útil pra você mesmo, rapaz... É só a outra metade do coração deste velho.

— Ele deve ser muito grande — disse Fionn. — Porque eu nunca reparei que estava pela metade.

— É porque você fica distraído com o meu charme natural. — Ele deu uma piscadela para Fionn por sobre o ombro, recolheu todos os cacos de seu luto e se recompôs, até subitamente parecer muito mais alto do que antes. — Agora vamos, não viemos aqui para nos lamentar de coisas que não podemos mudar. Viemos aqui para resolver um problema.

Ele virou-se novamente para o guarda-roupa e mergulhou de cabeça, pendurando camisas velhas no ombro e assobiando sozinho enquanto revistava cada prateleira. Enfim, retirou uma pequena caixa de sapato dos fundos da gaveta de meias e tombou o conteúdo na cama. Nove velas, de cores que variavam de azul- escuro até lavanda, rolaram no edredom.

— Quando eu acho que já vi todas... esse lugar aparece com mais — murmurou Fionn.

— Dias de golfinhos e coisas do gênero! — disse o avô, triunfante. — Essas memórias têm alegrias aquáticas particulares...

Ele cutucou as velas com o dedo, girando-as para conferir seus rótulos.

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— Eu recebi a maioria delas como herança — contou a Fionn. — Winnie e eu costumávamos queimá-las nos aniversários do seu pai, quando ele era pequeno. O Cormac adorava ver os golfinhos... Acho que parou de ligar pra essas, depois que cresceu. — Ele deu um sorriso triste. — É uma pena quando as crianças crescem. Ficam tão sérias e temperamentais.

Fionn examinou as velas, e seus dedos foram atraídos para uma cinza mais gorda, com marcações brancas e profundas. Ele a apanhou no meio das outras e levou até o nariz.

— Eca.

A vela era surpreendentemente pungente, com cheiro e sabor ao mesmo tempo. Tinha um odor distinto de peixe — salmão, cavala e truta mergulhados em ácido e bile, fermentados em uma única panela. Por fim, a gordura, oleosa e inchada de sal.

— Essa aqui não tem cheiro de golfinho — disse Fionn, como se fizesse a mínima ideia do cheiro de um golfinho.

Os olhos do avô brilharam quando ele pegou a vela das mãos do neto.

— Aí está! — Levantou a vela perto da janela, para verificar novamente o rótulo. — Míol Mór — disse ele, ficando de pé com um salto e marchando para fora do quarto. — Vamos nessa, rapaz.

Fionn correu atrás do avô.

— Pra onde?

— Para o dia em que a baleia ficou encalhada! — O avô pegou um casaco impermeável no cabideiro ao lado da porta e o jogou para o neto. — Essa vela contém a última aparição conhecida de uma merrow, Fionn. Muiris Beasley contou a todo mundo que quisesse ouvir que viu uma merrow na praia olhando para ele, nesse dia. Anos depois, a Emily Patton escreveu um conto sobre isso e vendeu para o Times, mas não deu o crédito ao Muiris. Isso causou a maior confusão na época — disse ele, saindo do chalé. — Minha mãe passou semanas só falando disso. Ela dizia que os Beasley encrencariam até com o próprio reflexo, se ficassem

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sozinhos por tempo o bastante. E aí os Patton dariam no pé e escreveriam sobre isso. Enfim, o que acha de irmos até a praia para tentar encontrar essa merrow?

— Acho que é o melhor plano que temos — respondeu Fionn, vestindo o casaco velho do avô e seguindo-o para fora.

Os dois deram as mãos sob o céu aberto. A porta da casa se fechou atrás deles e o portão se abriu. O avô segurou a vela, enquanto Fionn sacou um isqueiro do bolso e o acendeu. O garoto parou abruptamente, sentindo o bom senso puxar seu entusiasmo pelo rabo.

— Espera aí — disse, com a mão pairando sobre o pavio. — Tem certeza de que é uma boa ideia?

Fionn já não gostava da ideia de mergulhar no passado sozinho, mas tinha visto em primeira mão como era perigoso ancorar o avô a uma memória diferente. Especialmente uma que pudesse acabar de modo repentino.

— Quer dizer, você ir junto comigo — acrescentou ele, sem jeito.

O avô olhou nos olhos dele.

— Bom, é óbvio que não — disse, espetando o pavio na chama.

— Mas quando foi que isso me impediu de sair numa aventura?

Num instante, o vento soprou em suas costas, beijou suas bochechas e puxou as mangas de suas roupas. A ilha se dissolveu, e uma nova começou a brotar rapidamente. O céu azul da tarde deu lugar ao vermelho da manhã e o promontório se estendeu diante deles. Os dois caminhavam, aceleraram e enfim correram em disparada. Fionn lembrou como era a sensação de estar em uma ilha girando em um eixo mágico a toda velocidade.

— Que saudade disso — gritou o avô, balançando a vela de um lado para o outro, apontada para o céu em metamorfose.

Um lençol infinito cor de safira se encaixou em sua posição e um sol escaldante costurou-se no lugar. Fionn desabotoou o casaco enquanto corria.

— Só acho que viemos agasalhados demais!

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A grama era verde-esmeralda novamente, repleta de violetas — as mesmas que haviam piscado para ele em seus primeiros dias na ilha.

— Olha! — disse Fionn, conforme elas desapareciam sob seus pés e brotavam novamente na beira da estrada, acenando. — Estão dizendo oi!

— São bem-me-queres — disse o avô, desacelerando para acariciar uma das flores. A flor virou-se para ele, suas pétalas se abrindo em plumas violeta. — Elas vêm e voltam quando querem, igual a nós!

Fionn curvou-se para fazer o mesmo, mas a flor se esquivou e sumiu.

— Espertinhas. — O avô deu uma risada. — Tá vendo por que era a flor favorita da sua avó?

A ilha começou a desacelerar. As folhagens de verão explodiram nas árvores, enquanto sabiás mergulhavam do céu e cantavam em saudação. Carruagens e cavalos galopavam, e moradores de camisa aberta e bermuda trabalhavam ao lado deles sem qualquer desconfiança.

A praia movimentada surgiu diante deles. Havia uma multidão reunida na beira do mar, mulheres de vestido de algodão e homens de chapéu de palha conversando animados na areia. Algumas crianças corriam por entre os adultos, dando risadas e saltitando, enquanto outras tinham enfiado a cara na saia de suas mães, assustadas demais para olhar.

Fionn e o avô pularam a mureta. O vento foi junto, impulsionando-os ainda mais adentro da memória.

Por aqui. Aqui.

Eles mantiveram distância da multidão e entraram no mar de sapato e meia, a água morna enroscando conchinhas em seus cadarços. A espuma marinha chegou até a canela de Fionn, mas seu olhar não desgrudou do espetáculo diante deles. Sem o muro de ombros e pescoços esticados, a cena parecia ter saído de um

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