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Número 02 — Fevereiro 2016

AMPL I TUDE

Poeta em Destaque:

Júlia Lemos

E MAIS: Cinema - Fotografia - Música - HQ

(2)

SUMÁRIO

Revista Amplitude - Número 02 - Fev 2016

Editorial . . . .. . . 03

Poesia . . . . . . .04

Conto: O canto do sabiá preto / Lindolfo Weingärtner . . . .05

Luminares / Joana Cristina . . . .10

Cinema: 3º Festival Nacional de Cinema Cristão . . . 08

Conto: A Morte da Encrenqueira / Judson Canto . . . .11

Jardim dos Clássicos / Eça de Queirós . . . .12

Crônica / Max Lucado . . . . . .17

Conto: O Poeta do Salmo Exilado / J.T.Parreira . . . 18

Poeta em Destaque / Julia Lemos . . . 21

Poesia . . . 23

Conto: A Troca / Joed Venturini . . . .24

Galeria / Lya Alves . . . .30

Conto: A Matilha Fantasma / Sammis Reachers . . . . . 32

Notas Culturais . . . . . . . .37

Cinema / 3º Festival Nacional de Cinema Cristão . . . 38

Conto: O Hóspede / Florbela Ribeiro . . . 39

Luminares / Helena Branco . . . .40

Conto: O Menino / Myrtes Mathias . . . .41

Hot Spots: Ramon Llull (Lúlio) . . . . . . .44

Poesia . . . 46

Especial / Estêvão para tempos de perseguição . . . 47

Resenhas . . . 50

Luminares / Camilo Borges Júnior . . . .52

Crônicas / Chris Amag & Rofa . . . .53

Álbum / William Rosa . . . . . .54

HQs . . . . . . 55

Parlatorium . . . .56

CAPA: He Qi, Calling Disciple (Jesus chamando os discípulos) - trecho. He Qi é um artis- ta cristão chinês que tem feito um trabalho assaz singular, e gentilmente cedeu sua obra para ilustrar a capa de AMPLITUDE. Conheça mais do trabalho do autor:

AMPLITUDE é uma revista de cultura evangélica, com foco principal em fic- ção e poesia. Mas nosso leitmotiv, nosso motivo de ser e de existir, é a arte cristã em geral: Transitamos por música, cinema, fotografia, artes plás- ticas e quadrinhos. Publicamos arti- gos, estudos literários, crônicas e rese- nhas.

Nossa intenção diz respeito àquela despretensiosa excelência dos humil- des. Nosso porto de partida e porto de chegada é Cristo. Nosso objetivo é fomentar a reflexão e a expressão, AMPLIAR visões, entreter com valores cristãos, comunicar a verdade e o belo e estimular o engajamento artístico/

intelectual entre nossos irmãos. Nosso preço é nenhum: a revista circula gra- tuitamente, no democrático formato pdf.

COLABORE:

Será uma felicidade ter você como um colaborador de AMPLITUDE. Envie-nos seu material para avaliação (conto, crônica, artigo, estudo literário, traba- lho em artes plásticas ou fotografia artística, resenha ou crítica de filmes, livros ficcionais ou poéticos e (boa, per favore) música cristã/evangélica, JUNTAMENTE com breve biografia.

Envie também notícias sobre eventos artísticos, lançamento de livros e quaisquer notas culturais envolvendo arte/artistas evangélicos que você julgar relevantes.

E escreva-nos ainda para prosear, in- dagar, criticar, elogiar...

Nossos e-mails:

revistaamplitude@gmail.com sammisreachers@ig.com.br

Facebook:

www.facebook.com/RevistaAmplitude

Blog:

www.revistaamplitude.blogspot.com.br

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Ed i tor i al

É com felicidade que apresentamos o segundo número de AMPLITUDE. Durante es-

tes seis meses de espera ou gestação desta segunda edição, pudemos auferir a boa recepção que a nossa primeira edição obteve entre autores e leitores. Isso nos incentiva a avançarmos na jorna- da, cientes da seriedade e importância da iniciativa de reunir em revista, o melhor da produção literária poética e ficcional, além de outras expressões artísticas levadas a cabo por cristãos pro- testantes e de outras filiações.

Vamos ao panorama da edição: Na seção Hot Spots, a sapiência de um dos maiores nomes da mística cristã, Ramon Llull (Raimundo Lúlio). Em Galeria, a obra da pastora, artista plástica, grafiteira, quadrinista e ativista cultural Lya Alves. Na seção Cinema, destacamos a realização da terceira edição do Festival Nacional de Cinema Cristão.

Esta edição chega inaugurando diversas novas seções. Uma delas é Poeta em Detaque, inician- do com a obra da pernambucana Júlia Lemos.

Inaugurando a nossa seção Especial, de enfoque temático, temos como mote Estêvão para tem- pos de perseguição, uma mini-antologia reunindo as percepções de seis excelentes poetas acerca de nosso protomártir, sobre quem nos é oportuno refletir em tempos de recrudescimento das perse- guições aos cristãos ao redor do globo.

E as artes visuais ganharam ainda mais destaque: além da já citada seção Galeria, e de HQ (História em Quadrinhos), inauguramos mais uma seção, Luminares, destacando, em singelas inser- ções, a pintura, ilustração ou desenho de nossos concidadãos de Reino. E a Fotografia chega com força na seção Álbum, abrindo as portas com a obra de William Rosa.

Os contos, como diria meu pai, estão de lascar: Iniciamos com Eça de Queiroz, na seção Jar- dim dos Clássicos, apresentando o conto O Suave Milagre. Seguimos com o humor e a precisão de Judson Canto (A Morte da Encrenqueira); a dramaticidade soberba de J.T.Parreira (O Poeta do Sal- mo Exilado); Florbela Ribeiro relatando (em O Hóspede) sobre o príncipe que tinha por norma se hospedar junto aos pobres; Lindolfo Weingärtner num conto terno e luminoso (O canto do sabiá preto); Joed Venturini com o impactante & metafísico A Troca; este vosso humilde escriba, num conto de terror(!?), A Matilha Fantasma; e concluímos com nossa saudosa e maravilhosa Myrtes Mathias, num conto com um toque arrebatador (O Menino).

Queridos trinta leitores, agora uma nota triste: havia idealizado a periodicidade da revista pa- ra semestral, mas percebo agora que infelizmente não poderei manter tal ritmo. Não que o traba- lho seja tanto (mesmo que seja! Rsrs), embora eu faça aqui tudo sozinho, mas o fato se dá em vir- tude de meu pouco tempo. Retomei estudos universitários, e, junto ao trabalho secular e minhas outras iniciativas, das quais não posso abrir mão, percebo que o tempo de seis meses não é sufici- ente, ao menos nesse momento de minha vida, para dar conta de uma publicação desta magnitu- de. Portanto, fica em aberto, até palavra em contrário, a periodicidade de AMPLITUDE. Lem- brando: a revista não acabará; apenas terá expandido seu período de gravidez. E aproveitando o ensejo, não deixem de orar por nosso bebê!

E, como sempre, paz e bem e uma boa leitura!

Sammis Reachers, editor

Nota: Tenho buscado, nas seções de contos e poesia, efetuar um rodízio de autores. Assim, temos nesta edição em

sua grande maioria autores não publicados na edição anterior. Com isso buscamos dar voz a tantos quanto possí-

vel, e apresentar aos leitores sempre um melhor panorama da grande e boa produção de nossos irmãos.

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OFEREÇO A MINHA MORTE J.T.Parreira

Ofereço a minha morte. Levanto O meu sangue no sile ncio das feridas.

As ma os abrem-se rasgadas, sa o duas Cartas abertas de amor.

Um horizonte, o meu lado esquerdo Abre-se para o voo do meu coraça o Abandonado por Deus, ofereço a minha morte

Serei retirado da cruz por ma os amorosas.

Prenda

Karla Waters Das entranhas

A s estranhas Dos meus la bios

Para os teus No ventre De minh'alma É que a poesia Se concebeu Das cortinas Dos meus ve us Da mate ria uterina

Ate os ce us Éis que a palavra surge Vindo de outra alma ruge Se encontra em minha casa

É dentro dela cria asa O poema enfim nasceu Vindo de gritos e dores Contudo, cheio de esplendores

NÔVO !

Helena Branco o som trazia

abs(traí do)...harpeando luz a la grimas na vidraça o ANO começa... perpassa...

rendilhando suspiros consumindo notas breves d alau de ritmo insonda vel batuta esgrimida d promessa comovida por STRAUSS !

danço em pontas e tules a esbelteza no espaço abraçada pela cintura o tempo escreve...a vida a rosa perfumada

e o AMOR que...murmura A VIDA!

Escuro vale

Patrícia Costa Éscuro vale este

onde o medo quer ser companhia

e o descre dito busca titubear

a fe Das Tuas ma os

o amparo a certeza e o cuidado

de ser refu gio e fortaleza

que ha de guiar meus olhos

meu corpo meus pe s

quando tudo parecer contra rio.

COM DEUS

Alfredo Pérez Alencart (Espanha) Aberto estou, Deus, ao teu rela mpago eterno,

pregado ao ch a o onde escuto um rouxinol que canta quando me estendo sobre a Cruz!

Nem ao crepu sculo se me quebra a esperança, tributa ria duma carne que rangeu t a o longe para nos amparar com a sua altí ssima ternura.

Assim, tu, eu, bem aventurados do milagre na chave profe tica, espelhos duma aliança

ha bil em redenço es sob so is escuros!

Su bita liberdade para voltar ao ponto de partida! Liberdade para desordenar-me

entre a luz onde decerto treme a sua Voz!

Rasga a noite, Deus, e muda-me de planeta!

Tradução: António Salvado

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O canto do sabiá preto

Lindolfo Weingärtner

O asilo ainda fora construí do no tempo em que se pensava que pessoas idosas, para se sentirem bem, antes de tudo precisavam de ar fresco e de natureza na o poluí da. So mais tarde se havia descoberto que o maior inimigo de gente velha era a soli-

da o.

Mas tal inimigo, como se sabe, na o poupa nem mes- mo os asilos situados em meio ao turbilha o dos centros urbanos. Éle na o olha classe social, rico ou pobre, gente cul- ta ou inculta. Tambe m na o olha homem ou mu- lher, apesar de que muitos (em sua maioria, homens) afirmem ser mais fa cil para as

mulheres lidar com a solida o do que pa- ra seus parceiros masculinos.

Infelizmente na o existe nenhum apare- lho com o qual se pudesse medir o grau de solida o sentido por uma pessoa, a na o ser que classifiquemos um coraça o grande e amoroso de aparelho, coisa de que Deus nos queira preservar.

O asilo que nestas pa ginas vamos apre- sentar ao leitor estava situado distante da cidade, em meio a montanhas e colinas co- bertas de matas, e com vista a verdes vales, pontilhados de campos e lavouras vicejan- tes. Viviam na instituiça o cerca de 120 ido- sos, e nenhum deles carecia de coisa algu- ma que se tem por essencial na vida das pessoas. A associaça o que administrava o asilo na o poupava esforços para que os seus velhinhos na o sofressem nenhuma care ncia e para que tambe m pudessem ser recebidos na casa na o poucos que eram incapazes de pagar as mensalidades vigentes.

Como era que os asilados conviviam com a solida o? Bem, essa e uma pergunta a par- te, que por enquanto ternos que deixar sem

resposta.

Ja que nosso asilo era uma instituiça o da igreja, vinha sendo dirigido por um pastor, que cuidava de seu rebanho tanto na a rea fí sica como na espiritual. Os velhos que adoeciam, na o precisavam ser deslocados para o distante hospital, eles eram tratados na pro pria casa, na proximidade de seu cu-

ra d'almas habitual; eles ficavam sob os cuidados de um me dico, que atendia o asilo uma vez por semana, e quando algue m falecia, era sepultado no cemite rio do asilo. O ce-

mite rio fazia parte do dia-a-dia dos inquilinos, e a maior parte deles ti- nha feito as pazes com o campo-santo. Sabiam que, quando eles pro prios mor- ressem, permaneceriam per- to do lugar onde tinham passa- do seus u ltimos anos de vida, e esse na o deixava de ser um pensamento confor- tante.

Todas as pessoas, ao chegarem a velhice, aprendem, de certo modo, a viver como vi- zinhos da morte. Alguns conseguem estabe- lecer uma vizinhança pací fica, outros na o gostam de ser lembrados do te rmino de seus dias, em especial, quando o fim se aproxima a olhos vistos. Ém nosso asilo na o era so a proximidade do cemite rio que constantemente lembrava os velhinhos da morte. Éra a situaça o elementar dos septua- gena rios e octogena rios que os lembrava dela, pois seguidamente viam algue m sendo arrancado de seu meio, que na o deixava na- da a na o ser um lugar vazio no refeito rio.

Raros eram os meses em que ao menos um

dos asilados na o viesse a ser carregado pa-

ra o campo-santo. É quando acontecia que

num perí odo de um ou dois meses na o fale-

cia ningue m, poderia ter a certeza de que o

sino da capela dobraria duas ou tre s vezes

seguidas no me s seguinte. Com batidas

compassadas e solenes ele revelaria que

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mais uma vez algue m tinha ido embora que por muito tempo convivera com a pequena comunidade. Provavelmente cada um dos velhinhos, bem no fundo do coraça o, se per- guntava: Quando chegara o dia em que o si- no vai dobrar para mim?

Ontem o sino anunciara a morte da ve- lha Irmingard. Aqui ainda vivia gente com nomes como o dela, nomes arcaicos e sole- nes, sem a marca de modismos modernos.

Havia mulheres chamadas de Irmingard, ou de Clotilde, havia homens chamados de Fri- dolino ou Teo filo, naturalmente ale m dos que, conforme uso da terra, se chamavam Maria, Jose , Dulce ou Giacomo, dependendo do lugar onde o destino colocara o seu ber- ço. Na o raras vezes, aqueles que tinham tais nomes antigos eram pessoas bem especiais, que liam livros de conteu do nada corriquei- ro, versadas em assuntos que na o costuma- vam aparecer nas pa ginas das revistas e nos programas de televisa o.

Irmingard tinha sido uma pessoa assim.

Tivera uma vida nada fa cil. Ém sua comuni- dade de origem, pela maior parte de sua vi- da adulta ela servira como organista, e ela na o so amara a mu sica e os cantos, mas tambe m as pessoas que tocavam e canta- vam, principalmente as crianças, que ela havia reunido ao seu redor para lhes ensi- nar a cantar e a tocar viola o e flauta doce. A na o poucos dos pequenos ela tambe m ensi- nara a viver. Sim, uma pessoa assim tinha sido a velha Irmingard.

Aos quarenta anos, ela casara com um viu vo, pai de quatro filhos. Na o tivera filhos pro prios, e quando o seu marido, poucos anos depois do casamento, chegara a fale- cer, ela educara os filhos dele com dedica- ça o e com amor, fato de que os filhos, agora adultos, jamais poderiam esquecer-se, co- mo na o deixavam de assegurar, sempre que a visitavam no asilo.

Mas na o esquecer e uma coisa, e retribu- ir amor com amor e outra. Acontecera o que em nossos tempos parece ser a coisa mais natural do mundo: os filhos tinham casado,

tinham ido para outras cidades, todo mun- do na famí lia trabalhava ou estudava, e em seus apartamentos simplesmente na o havia lugar para uma mulher velha e necessitada de cuidados, mesmo uma mulher como Ir- mingard, que com seu coraça o carinhoso era capaz de gerar e de repartir amor, na o so de retribuir o amor de outros.

Assim Irmingard afinal chegara ao asilo, depois de se convencer de que por causa de seu diabetes na o poderia mais ficar sozinha em sua pro pria casinha. Tinha sido real- mente a melhor soluça o para ela. Ja um ano antes de sua mudança para o ancionato lhe haviam amputado uma perna, e, anos mais tarde, os me dicos tiveram que cortar-lhe a outra tambe m.

Irmingard de começo se revoltara contra esta segunda amputaça o, dissera que prefe- ria antes morrer, do que aceitar ser mutila- da daquele jeito. Tinha passado por uma lu- ta dura antes de finalmente concordar com a operaça o.

Ja que na o podia mais sentar na cadeira de rodas, ela tivera de passar os u ltimos anos deitada em seu leito, totalmente de- pendente de outras pessoas. Sendo peque- na e de figura franzina, as atendentes a car- regavam nos braços como se fosse uma cri- ancinha, sempre que a tinham de mover do seu lugar. Ém seus u ltimos anos de vida ela na o deveria ter pesado mais de 35 quilos, um feixe de sofrimento e de mise ria huma- na.

Irmingard era uma mulher crente, por isso ela na o acusava a Deus por sua sorte.

Mas por vezes ela se admirava das ordenan- ças e dos caminhos do Senhor. Éla conhece- ra tempos de luta, tempos de du vidas fero- zes, em que sua fe parecera um mero pavio fumegante, ameaçado de se extinguir a cada momento. Mas ela na o acreditava em sua fe , ela cria no Deus que faz nascer fe e certeza, em meio a du vidas e desespero.

Irmingard tinha um segredo. Éla apren-

dera a extrair paz e alegria í ntimas na o da

pro pria situaça o e dos pro prios sentimen-

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tos, mas sim, das promisso es de Deus. É os outros velhinhos sentiam aquele segredo dela, e eles vinham ao seu leito, silenciavam com ela, ou conversavam com ela sobre a vida deles. Irmingard sabia ouvir, calada, e ela tambe m sabia falar no devido tempo, e havia muitos que tinham encontrado con- forto e novo a nimo junto ao leito dela.

Mesmo Fridolino, que conhecia a Bí blia como poucos, gostava de sentar junto a ca- ma de Irmingard, falando-lhe das descober- tas que fizera nos livros do Novo e do Anti- go Testamento. Irmingard gostava de ouvi- lo, se bem que ela nem sempre comparti- lhava suas opinio es e interpretaço es. Para ela, a Bí blia indicava a direça o em que an- dar, na o a considerava um caminho ladeado de indicaço es e prescriço es que mantinham o crista o na linha. A Éscritura era um curso de fe e de vida, que Deus mandara escrever, na o uma coleça o de dogmas e doutrinas in- falí veis. Mas a fundo os dois se entendiam muito bem, e o velho Fridolino, depois de uma de suas conversas com Irmingard, sempre costumava ser um pouco mais tra- ta vel e mais cordial.

O dirigente do asilo bem sabia que Ir- mingard era a confessora secreta da casa, e na o raras vezes encaminhava para ela ho- mens ou mulheres que tinham problemas com os familiares ou que tinham começado a retrair-se em si mesmos, acometidos de depresso es, coisa pro pria da velhice. Éle na o ignorava que em muitos casos a mu- lherzinha com aquele corpo mutilado sabia ajudar a s pessoas melhor do que ele pro - prio.

De começo constatamos que o maior ini- migo de gente idosa costuma ser a solida o.

Isso tambe m era o caso em nosso asilo, e na o era so pelo fato de ele estar situado dis- tante da cidade, e rodeado de lavouras e campos. As fontes amargas da solida o em realidade brotam dos abismos do coraça o humano, e quando neles sobe o lençol das a guas da tristeza, elas sa o capazes de aflo- rar a superfí cie, revelando um mar de soli-

da o, mesmo em meio a gente alegre. Éste mar, constantemente alimentado por fontes secretas, e capaz de afogar qualquer alegria com suas a guas amargas.

So depois da morte de Irmingard alguns dos velhinhos e do pessoal do asilo se de- ram conta de que na presença dela eles ja- mais se tinham sentido solita rios. Ningue m poderia dizer precisamente por que tinha sido assim. Devia ter sido o segredo dela. Ja que ela tinha Deus por fonte de vida e de esperança, ja que na o vivia de seus pro prios recursos, ela tinha recebido do seu Criador o dom de poder abrir seu coraça o para ou- tros, e com isto conseguia tambe m que os outros lhe abrissem o pro prio coraça o. Ate o fim de sua vida ela tivera a capacidade de amar as pessoas e de compartilhar da vida delas.

Agora Irmingard tinha falecido, e ela de- veria ser sepultada no cemite rio do asilo, a tarde do dia apo s a sua morte. Tudo que os humanos costumam fazer numa ocasia o destas, tinha sido feito. O corpo murcho e mutilado de Irmingard tinha sido lavado, seus cabelos ralos foram penteados e ajus- tados, e tinham lhe botado o melhor de seus vestidos. Assim ela estava deitada em seu esquife, seu rostinho estreito emoldura- do por flores multicoloridas, e mesmo os que viviam familiarizados com a morte, sentiam, mais que em outros casos, uma grande tristeza, e algo como uma incre dula estranhe s perante o fato de ela na o se en- contrar mais em seu meio.

Énfermeiras e atendentes tinham enchi-

do a parte inferior do esquife com crisa nte-

mos brancos, assim que na o caí a em vista

que no corpo da falecida, no lugar das per-

nas, havia um espaço vazio. No cemite rio o

coveiro tinha preparado para ela uma das

sepulturas ja escavadas de antema o, e havia

urna profusa o de flores e coroas destinadas

a enfeitar seu u ltimo lugar de repouso. Fi-

lhos e netos, mais alguns conhecidos de sua

cidade, tinham comparecido, e tudo deveria

seguir o ritual costumeiro.

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Mas Deus tinha resolvido dar um ar fes- tivo ao dia em que iria ser sepultada sua serva Irmingard. Por isso ele havia ordena- do que a hora do sepultamento se formasse urna tempestade sobre o vale, com rela m- pagos e estrondos de trova o, acompanha- dos de cortinas de chuva fustigadas pela ventania. Assim o fe retro, que seguiria da capela ao cemite rio, chegou a atrasar-se por um bom tempo.

Éra tradiça o no asilo, o pastor, por ocasi- a o de um sepultamento, fazer a alocuça o fu nebre no cemite rio, na o na capela, e os velhinhos apreciavam a pra tica, ja que lhes ajudava a suportar o sile ncio pesado do pa- radouro dos mortos.

Assim, jovens e velhos se haviam reuni- do na parte superior do cemite rio, enchen- do os estreitos espaços entre os jazigos, os olhares dirigidos para o vale, enquanto o pastor se tinha posicionado na parte inferi- or, com o rosto voltado para o distante cer- ro, atra s do qual o sol ja ia desaparecendo.

Quando, apo s o hino inicial e a leitura de um trecho da Bí blia, o pastor iniciou sua alocuça o, repentinamente toda a paisagem parecia mergulhar num brilho irreal. Ainda pairava um pareda o escuro de nuvens sobre o vale, mas do meio do pareda o ia surgindo um esplendor, que lentamente se transfor- mava num magní fico arco-í ris. Éra um arco festivo, cujo brilho aumentava a olhos vis- tos, assim que se vinha refletindo mais e mais nos rostos dos presentes.

O pregador estava de costas voltadas pa- ra o vale, portanto nada enxergava do mara- vilhoso esplendor. Verdade, ele via o brilho refletido nos rostos dos presentes, mas na o sabia como explica -lo. Assim ele continuou comentando a palavra do apo stolo Paulo constante no oitavo capí tulo da Épí stola aos Romanos - que os sofrimentos deste tempo na o sa o para comparar a glo ria que nos de- vera ser revelada no reino de Deus.

Para a comunidade, em sua maioria composta de idosos, poderia parecer coisa muito lo gica o pregador falar sobre os sofri-

mentos deste tempo. Cada um dos velhi- nhos tinha seu histo rico de sofrimentos que a vida lhe impusera. É muitos viviam de co- raça o machucado, e havia feridas do passa- do que continuavam sangrando secreta- mente. Na o, na o se podia varrer as coisas doí das da vida para debaixo do tapete, ao querer falar da glo ria a ser revelada.

Assim o pregador falou do sofrimento da falecida, descreveu sua vida, lembrou seu serviço e enalteceu sua fidelidade. Sim, ela tivera de provar os sofrimentos desta vida, fora obrigada a esvaziar ate o fundo o ca lice da dor. A vontade inescruta vel de Deus era essa: justamente as pessoas de fe eram marcadas por contratempos e sofrimentos.

Éla, cujos pe s por tantos anos tinham acio- nado os pedais do harmo nio e do o rga o de sua igreja, para dar glo ria a Deus, ela fora obrigada a amputar ambas as pernas. Justa- mente ela, que tanto gostara de lidar com crianças e jovens alegres, tivera de findar os seus dias enferma, em meio a outras pesso- as enfermas e idosas. Os caminhos de Deus para com os humanos eram verdadeira- mente inescruta veis.

No momento em que o pregador menci- onara as pernas amputadas de Irmingard, o arco-í ris tinha intensificado o seu brilho; e começara a espelhar-se nas nuvens, assim que aos poucos se ia formando um arco du- plo, feno meno como que sobrenatural, que poucas pessoas te m oportunidade de ver no decorrer de sua vida.

Ja que o sol acabara de desaparecer por detra s do cerro, o vale aos poucos mergu- lhara na sombra; mas agora a paisagem to- da começara a resplandecer com um brilho que na o parecia desta terra.

O pregador sentia a comoça o dos pre- sentes. Via como os rostos familiares havi- am mudado, assim como se diante deles ja na o se viesse desdobrando um ritual religi- oso, mas como se lhes estivesse ocorrendo algo de novo e maravilhoso, que os arreba- tava de seu dia-a-dia.

O pastor, pore m, continuava falando dos

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sofrimentos deste tempo. Éle na o poderia mudar o escopo de sua pregaça o, so porque os rostos do pessoal pareciam espelhar co- moça o e admiraça o. Éle parecia perturbado, sim, pelo fato de os presentes, pelo que pa- recia, ja terem antecipado a segunda parte de seu serma o, antes que ele tivesse falado uma palavra sequer da glo ria que em no s devera ser revelada.

Por alguns momentos, admirado da co- moça o refletida nos rostos dos velhinhos, o pregador chegou a silenciar. Foi aí que uma voz quebrou o sile ncio: "Pastor, olhe para suas costas, olhe para o ce u — O Sinal da Aliança!" Éra Fridolino, que ousara inter- romper o solene ritual, apontando para o espeta culo celeste. O pastor, em sua convi- ve ncia com os velhinhos, se acostumara a muitas esquisitices e atitudes exce ntricas pro prias de gente idosa, assim atendeu o pedido de Fridolino olhando na direça o in- dicada.

É enta o tambe m ele passou a ver a glo - ria. É se deu conta de que o pro prio Deus havia assumido a parte do seu serma o que tratava da glo ria a ser revelada em no s. As- sim ele limitou-se a dizer: "Sim, Fridolino tem raza o. O Sinal da Aliança."

É assim aconteceu que, na hora do se- pultamento de Irmingard, pastor e comuni- dade quedavam-se em sile ncio, ao lado da sepultura aberta, abrindo-se ao fulgor que irradiava do arco da aliança de Deus.

É enquanto paravam, silenciosos, bem de manso, do beirado da floresta pro xima, começou a trinar um sabia preto. Éle canta- va como que de voz contida, assim como os sabia s pretos costumam cantar ao lusco- fusco do dia. Cantou por uns dois minutos, e quando enfim silenciou, igualmente o arco- í ris foi perdendo o seu fulgor.

Ao fim, o pastor voltou a encarar a co- munidade. Falou da esperança dos que adormeceram em Cristo Jesus, falou da glo - ria da vida eterna — e tudo correu segundo a ordem costumeira. O esquife foi baixado a sepultura: Terra a terra, cinza a cinza e po

ao po . Semeia-se um corpo corruptí vel, res- suscitara um corpo espiritual. Juntos, final- mente, todos oraram a oraça o do Senhor, e depois foram despedidos com a costumeira be nça o.

A maior parte dos velhos voltara ao asi- lo, logo apo s a cerimo nia. So ao redor de Fridolino se havia formado um grupo que se envolvera numa discussa o com ele.

Fridolino insistia que o arco-í ris tinha sido um sinal de Deus; o pro prio pastor o tinha confirmado. É vinha escrito na Bí blia:

Deus havia colocado o arco no ce u, apo s o dilu vio, para que servisse de eterno sinal da aliança estabelecida entre Éle e os huma- nos.

Mas ele na o admitia que tambe m o canto do sabia era parte desta aliança. Nada se encontrava na Sagrada Éscritura a respeito de aves que tinham a tarefa de dar recados aos humanos atrave s de seu canto. A pomba que carregara no bico a folha de oliveira, na o havia arrulhado nada para Noe , o corvo que havia trazido pa o e carne a Élias, na margem do arroio de Querite, na o havia grasnado nenhuma mensagem para o pro- feta. Seu serviço fora mudo. Deus na o falava atrave s de passarinhos, e o canto deles na o tinha nenhum significado para no s.

Um dos circunstantes alegava que o galo, que, afinal, tambe m era ave, por certo tivera um recado a dar a Pedro, na noite em que este negara a seu Mestre. Mas Fridolino na o se deu por achado. O galo tinha cantado, mas era hora de ele cantar de qualquer jei- to, ele nem sabia porque estava cantando e que seu canto poderia ter um significado pala Pedro. A gente facilmente se tornava ví tima de fantasias, ao querer dar a s coisas da natureza uma interpretaça o espiritual.

Alguns do grupo na o concordavam com ele, mas ningue m costumava argumentar com o velho Fridolino sobre questo es que envolviam a Bí blia, e assim sua opinia o pre- valeceu.

Mas por ocasia o da janta, Fridolino se

mantivera calado, como que contrariado, e

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quando todos abandonaram o refeito rio, ele reteve alguns de seus amigos, com os quais havia discutido pouco antes no cemite rio, e humildemente lhes pediu perda o. Éle se ha- via enganado. O sabia fora mensageiro de Deus, sim. Éle havia conferido na Bí blia;

constava no Salmo 148, com toda clareza:

Éntre feras, gados e re pteis estavam tam- be m os vola teis, isto e , os passarinhos - to- dos sendo convocados para louvarem a Deus. É aí o sabia preto na o podia ficar de fora. É como ele poderia louvar a Deus, a na o ser com seu canto?

É talvez em realidade o canto do sabia tinha uma coisa a ver com o fato de a faleci- da Irmingard ter tocado e cantado para a glo ria de Deus, enquanto ainda fora capaz de faze -lo. É tambe m constava no Salmo 148 que os velhos junto com os jovens devi- am louvar a Deus, e que isto era uma coisa que Irmingard sempre havia falado, e por-

tanto era um recado bem pessoal de Deus para todos eles.

Éu penso que poderemos concordar com o velho Fridolino, aceitando sua interpreta- ça o da Éscritura tambe m em nossa pro pria vida. É talvez que nesta interpretaça o se re- vele o mais profundo segredo de Irmingard:

o louvor a Deus havia secado em seu cora- ça o aquela fonte amarga da qual se alimen- ta a solida o humana, fazendo nascer em seu lugar a vertente vivificante do amor. Com isso sua pro pria vida, e a vida de muitas ou- tras pessoas, tinham sido transformadas.

Lindolfo Weingärtner nasceu em 1923 em Águas Mornas - SC. É pastor luterano, pro- fessor, escritor e poeta. Possui 27 livros pu- blicados, dentre os quais O Canto do Sabiá e outros contos cristãos (Blumenau: Gráfi- ca e Editora Otto Kuhr, 2003), de onde retira- mos o presente texto.

L U M

I N A R

E S

“Aslam”, de Joana Cristina.

Conheça mais

AQUI.

(11)

A Morte da Encrenqueira Judson Canto

Sabe a irma encrenqueira, aquela infati- ga vel promotora de confuso es na igreja, que pode ser definida como o friozinho na espi- nha do pastor ou a dor de dente

da congregaça o? Éssa era Porfí - ria, talvez o equivalente a mui- tos tratamentos de canal.

— Mas ela era ta o terrí vel assim?

O dia cono Padilha, que re- passava a um novo convertido curioso a biografia da encren-

queira, balançou a cabeça confirmando. Éle pro prio fora uma das ví timas daquela lí n- gua muitas vezes comparada a uma ví bora, so que — todos concordavam — mais vene- nosa. Éla havia cismado que fora ele quem lhe dera o apelido de Morte na Panela, e na o poupava o coitado. Se ele se demorava um pouco mais no cumprimento a uma mulher, ela puxava algue m pelo braço e cochichava:

“Ja vi esse filme…”. Se ele abraçava um velho amigo com maior efusa o, ela comentava:

“Na o sei na o…”.

— Éla costumava encarar a pessoa bem

de perto, e enta o começava a falar mal de algue m, sempre repetindo: “Na o acha que eu tenho raza o?”. É a pessoa que na o con- cordasse! — acrescentou o dia cono Padilha, explicando o principal me todo da fofoquei- ra. — Depois ela procurava o irma o ou irma de quem havia falado mal e dizia quem in- ventara aquelas coisas fora a outra pessoa.

Porque, se voce concordava, e como se tambe m tivesse dito, na o e ?

— Na o posso imaginar nada pior.

— Pois imagine. Éla tinha mau ha lito.

O dia cono Padilha e o novo convertido estavam conversando no velo rio de Porfí ria.

Sim, ela adoecera meses antes. É, depois uma su bita melhora, ate voltara a frequen- tar os cultos, pore m morreu passados al- guns dias, de forma ta o repentina quanto fora a sua recuperaça o. Algue m, com certa

dose de maldade, comentou que ela havia morrido de ansiedade por na o conseguir colocar as fofocas e murmuraço es em dia.

A notí cia de sua morte se espalhou, e gente de toda a cidade, em nu mero suficien- te para encher a arca de Noe , ví timas de su- as intrigas, correu para a igreja, espremen- do-se nos bancos e corredores em silenciosa confraternizaça o.

Alguns, desconfiados da sorte, beliscavam disfarçadamente o cada ver, para ver se ela na o es- tava fingindo. Depois se belisca- vam para ver se na o estavam so- nhando.

***

No cemite rio, o pastor Rodolfo pi- garreou, ajeitou o no da gravata e começou:

— Irma os, estamos aqui neste culto de aça o de graças — todos fingiram na o perce- ber a gafe — pelo passamento da irma Por- fí ria…

Atra s dele, um coral de cochichos com- posto por irma os ansiosos para enterrar o passado instigava:

— Anda logo! Anda logo!

— Vamos ler uma passagem da Bí blia,

no Évangelho de Joa o, capí tulo onze…

É novamente o coral de cochichos, com expressa o de pavor:

— Le outra! Le outra!

Finalmente a sepultaram. Os irma os nem haviam ainda deixado o cemite rio quando o ce u enegreceu e um raio fendeu a escurida o de alto a baixo. Ém seguida, um trova o fez estremecer o lugar.

O dia cono Padilha olhou para o alto e ex- clamou:

— Ih! Éla ja chegou la .

Judson Canto é editor, escritor, revisor e tra- dutor. Mante m o blog O Balido.

Do autor, baixe em formato pdf o conto

ilustrado Ate os Confins da Terra. CLIQUÉ

AQUI.

(12)

Jardim dos Clássicos

O Suave Milagre

Eça de Queirós

NÉSSÉ tempo Jesus ainda se na o afastara da Galile ia e das doces, luminosas margens do Lago de Tiberí ades: - mas a nova dos seus milagres penetrara ja ate Énganim, ci- dade rica, de muralhas fortes, entre olivais e vinhedos, no paí s de Issacar.

Uma tarde um homem de olhos ardentes e deslumbrados passou no fresco vale, e anunciou que um novo profeta, um Rabi formoso, percorria os campos e as aldeias da Galile ia, predizendo a chegada do reino de Deus, curando todos os males humanos.

É enquanto descansava sentado a beira da Fonte dos Verge is, contou ainda que esse Rabi, na estrada de Magdala, sarara da lepra o servo De um decuria o romano so com es- tender sobre ele a sombra das suas ma os; e que noutra manha , atravessando numa bar- ca para a terra dos Gerasse nios, onde come- çava a colheita do ba lsamo, ressuscitara a filha de Jairo, homem considera vel e douto que comentava os Livros na Sinagoga. É co- mo em redor, assombrados, seareiros, pas- tores, e as mulheres trigueiras com a bilha no ombro, lhe perguntassem se esse era, em verdade, o Messias da Jude ia e se diante de- le refulgia a espada de fogo, e se o ladea- vam, caminhando como as sombras de duas torres, as sombras de Gogue e de Magogue - o homem, sem mesmo beber daquela a gua ta o fria de que bebera Josue , apanhou o ca-

jado, sacudiu os cabelos, e meteu pensativa- mente por sob o Aqueduto, logo sumido na espessura das amendoeiras em flor. Mas uma esperança, deliciosa como o orvalho nos meses em que canta a cigarra, refrescou as almas simples: logo, por toda a campina que verdeja ate A scalon, o arado pareceu mais brando de enterrar, mais leve de mo- ver a pedra do lagar; as crianças, colhendo ramos de ane monas, espreitavam pelos ca- minhos se ale m, da esquina do muro, ou de sob o sico moro, na o surgiria uma claridade;

e nos bancos de pedra, a s portas da cidade, os velhos, correndo os dedos pelos fios das barbas, ja na o desenrolavam, com ta o sapi- ente certeza, os ditames antigos.

Ora enta o vivia em Énganim um velho, por nome Obede, duma famí lia pontifical de Samaria, que sacrificara nas aras do Monte Ébal, senhor de fartos rebanhos e de fartas vinhas - e com o coraça o ta o cheio de orgu- lho como o seu celeiro de trigo. Mas um vento a rido e abrasador, esse vento de de- solaça o que ao mando do Senhor sopra das torvas terras de Assur, matara as reses mais gordas das suas manadas, e pelas encostas onde as suas vinhas se enroscavam no ol- mo, e se estiravam na latada airosa, so dei- xara, em torno dos olmos e pilares despi- dos, sarmentos, cepas mirradas, e a parra roí da de crespa ferrugem. É Obede, agacha- do a soleira da sua porta, com a ponta do manto sobre a face, palpava a poeira, la- mentava a velhice, ruminava queixumes contra Deus cruel.

E ça de Queirós (1845 - 1900) nasceu em Póvoa de Varzim, no norte de Portugal. Foi

um dos maiores prosadores de nossa língua, filiado ao Realismo português. Iniciou sua

carreira nas Letras publicando no Jornal Gazeta de Portugal. Autor de diversas obras, tais

como os romances A Ilustre Casa de Ramires , A Capital , O Crime do Padre Amaro , O Pri-

mo Basílio e A Relíquia , dentre outros. Suas obras estão traduzidas para mais de vinte idi-

omas. O presente conto foi publicado originalmente em 1898, na Revista Moderna.

(13)

Apenas ouvira falar desse novo Rabi da Galile ia, que alimentava as multido es, ame- drontava os demo nios, emendava todas as desventuras - Obede, homem lido, que via- jara na Fení cia, logo pensou que Jesus seria um desses feiticeiros ta o acostumados na Palestina, como Apolo nio, ou Rabi Ben- Dossa, ou Sima o, o Sutil. Ésses, mesmo nas noites tenebrosas, conversam com as estre- las, para eles sempre claras e fa ceis nos seus segredos: com uma vara afugentam de sobre as searas os moscardos gerados nos lodos do Égito: e agarram entre os dedos as sombras das arvores, que conduzem, como toldos bene ficos, para cima das eiras, a hora da sesta. Jesus da Galileia, mais novo, com magias mais viçosas decerto, se ele larga- mente o pagasse, sustaria a mortandade dos seus gados, reverdeceria os seus vinhe- dos. Énta o Obede ordenou aos seus servos que partissem, procurassem por toda a Ga- lileia o rabi novo, e com promessa de di- nheiros ou alfaias o trouxessem a Énganim, no paí s de Issacar.

Os servos apertaram os cinturo es de couro - e largaram pela estrada das Carava- nas, que, costeando o Lago, se estende ate Damasco. Uma tarde, avistaram sobre o po- ente, vermelho como uma roma muito ma- dura, as neves finas do monte Hermon. De- pois, na frescura duma manha macia, o lago de Tiberí ades resplandeceu diante deles, transparente, coberto de sile ncio, mais azul que o ce u, todo orlado de prados floridos, de densos verge is, de rochas de po rfiro, e de alvos terraços por entre os pomares, sob o voo das rolas.

Um pescador que desamarrava a sua barca duma ponta de relva, assombreada de aloendros, escutou, sorrindo, os servos. O Rabi de Nazare ? Oh, desde o me s de Ijar, o Rabi descera, com os seus discí pulos, para os lados para onde o Jorda o leva as a guas.

Os servos, correndo, seguiam pelas mar- gens do rio, ate adiante do vau, onde ele se estira num largo remanso, e descansa, e um instante dorme, imo vel e verde, a sombra

dos tamarindos. Um homem da tribo dos Ésse nios, todo vestido de linho branco, apa- nhava lentamente ervas salutares, pela bei- ra da a gua, com um cordeirinho branco ao colo. Os servos humildemente saudaram- no, porque o povo ama aqueles homens de coraça o ta o limpo, e claro, e ca ndido como as suas vestes cada manha lavadas em tan- ques purificados. É sabia ele da passagem do novo Rabi da Galile ia, que como os Ésse - nios ensinava a doçura, e curava as gentes e os gados? O esse nio murmurou que o Rabi atravessara o Oa sis de Éngaddi, depois se adiantara para ale m...

- Mas onde, "ale m"?

- Movendo um ramo de flores roxas que

colhera, o esse nio mostrou as terras de

ale m Jorda o, a planí cie de Moabe. Os servos

vadearam o rio - e debalde procuraram Je-

sus, arquejando pelos rudes trilhos, ate a s

fragas onde se ergue a cidadela sinistra de

Macaur... No Poço de Yakob repousava uma

larga caravana, que conduzia para o Égito

mirra, especiarias e ba lsamos de Gileade; e

os cameleiros, tirando a a gua com os baldes

de couro, contaram aos servos de Obede

que em Gadara, pela lua nova, um Rabi ma-

ravilhoso, maior que Davi ou Isaí as, arran-

cara sete demo nios do peito duma tecedei-

ra, e que, a sua voz, um homem degolado

pelo salteador Barraba s se erguera da sua

sepultura e recolhera ao seu horto. Os ser-

vos, esperançados, subiram logo açodada-

mente pelo caminho dos peregrinos ate Ga-

dara, de altas torres, e ainda mais longe ate

a s nascentes da Amalha... Mas Jesus, nessa

madrugada seguido por um povo que canta-

va e sacudia ramos de mimosa, embarcara

no Lago, num batel de pesca, e a vela nave-

gara para Magdala. É os servos de Obede,

descoroçoados, de novo passaram o Jorda o

na ponte da Filhas de Jaco . Um dia, ja com

as sanda lias rotas dos longos caminhos, pi-

sando ja as terras da Jude ia romana, cruza-

ram com um fariseu sombrio, que recolhia a

Éfraim, montado na sua mula. Com devota

revere ncia detiveram o homem da Lei. Én-

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contrara ele por acaso esse profeta novo da Galile ia que, como um Deus passeando na terra, semeava milagres? A adunca face do fariseu escureceu enrugada e a sua co lera retumbou como um tambor orgulhoso:

- Oh, escravos paga os! Oh, blasfemos!

Onde ouvistes que existissem profetas ou milagres fora de Jerusale m? So Jeova tem força no seu Templo. De Galile ia surgem os ne scios e os impostores...

É como os servos recuavam ante o seu punho erguido, todo enrodilhado de dí sti- cos sagrados - o furioso Doutor saltou da mula, e, com as pedras da estrada, apedre- jou os servos de Obede, uivando: Racca! Ra- cca! e todos os anátemas rituais. Os servos fugiram para Énganim. É grande foi a des- consolaça o de Obede, porque os seus gados morriam, as suas vinhas secavam – e, toda- via, radiantemente, como uma alvorada por detra s de serras, crescia, consoladora e cheia de promessas divinas, a fama de Jesus da Galile ia.

Por esse tempo, um centuria o romano, Publius Septimus, comandava o forte que domina o vale de Cesare ia, ate a cidade e ao mar. Publius, homem a spero, veterano da campanha de Tibe rio contra Partos, enri- quecera durante a revolta de Samaria com presas e saques, possuí a minas na A tica, e gozava, como favor supremo dos deuses, a amizade de Flaco, legado imperial da Sí ria.

Mas uma dor roí a a sua prosperidade muito poderosa, como um verme ro i um fruto muito suculento. Sua filha u nica, para ele mais amada que vida e bens, definhava com um mal sutil e lento, estranho mesmo ao sa- ber dos escula pios e ma gicos que ele man- dara consultar a Sidon e a Tiro. Branca e triste como a lua num cemite rio, sem um queixume, sorrindo palidamente a seu pai, definhava, sentada na alta esplanada do for- te, sob um vela rio, alongando saudosamen- te os negros olhos tristes pelo azul do mar de Tiro, por onde ela navegara de Ita lia, nu- ma opulenta galera. Ao seu lado, por vezes, um legiona rio entre as ameias apontava va-

garosamente ao alto a flecha, e varava uma grande a guia, voando de asa serena, no ce u rutilante. A filha de Septimus seguia um momento a ave, torneando ate bater morta sobre as rochas; - depois, com um suspiro, mais triste e mais pa lida, recomeçava a olhar para o mar.

Énta o Septimus, ouvindo contar, a mer-

cadores de Corazim, deste Rabi admira vel,

ta o potente sobre os espí ritos, que sarava

os males tenebrosos da alma, destacou tre s

decu rias de soldados para que o procuras-

sem pela Galile ia, e por todas as cidades da

Deca polis, ate a costa e ate A scalon. Os sol-

dados enfiaram os escudos nos sacos de lo-

na, espetaram nos elmos ramos de oliveira -

e as suas sanda lias ferradas apressadamen-

te se afastaram, ressoando sobre as lajes de

basalto da estrada romana, que desde Cesa-

re ia ate Lago corta toda a tetrarquia de He-

rodes. As suas armas, de noite, brilhavam

no topo das colinas, por entre a chama on-

deante dos archotes erguidos. De dia inva-

diam os casais, rebuscavam a espessura dos

pomares, esfuracavam com a ponta das lan-

ças a palha das medas; e as mulheres, as-

sustadas, para amansar logo acudiam com

bolos de mel, figos novos, e malgas cheias

de vinho, que eles bebiam dum trago, senta-

dos a sombra dos sico moros. Assim corre-

ram a Baixa Galile ia - e, do Rabi, so encon-

travam o sulco luminoso nos coraço es. Én-

fastiados com as inu teis marchas, desconfi-

ando que os judeus sonegassem o seu feiti-

ceiro para que Romanos na o aproveitassem

do superior feitiço, derramavam com tu-

multo a sua co lera, atrave s da piedosa terra

submissa. A entrada das pontes detinham

os peregrinos, gritando o nome do Rabi,

rasgando os ve us a s virgens: e, a hora em

que os ca ntaros se enchem nas cisternas in-

vadiam as ruas estreitas dos burgos, pene-

travam nas sinagogas e batiam, sacrilega-

mente com os punhos das espadas nas The-

bahs, os Santos Armários de cedro que conti-

nham os Livros Sagrados. Nas cercanias de

Hebron arrastaram os solita rios pelas bar-

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bas para fora das grutas, para lhes arrancar o nome do deserto ou do palmar em que se ocultava o Rabi - e dois mercadores fení cios que vinham de Jope com uma carga de ma- lo batro, e a quem nunca chegara o nome de Jesus, pagaram por esse delito cem dramas a cada centuria o. Ja as gentes dos campos, mesmo os bravios pastores de Idume ia, que levam as reses brancas para o Templo, fugi- am espavoridos para as serranias, apenas luziam, nalguma volta do caminho, as ar- mas do bando violento. É da beira dos eira- dos, as velhas sacudiam como taleigos a ponta dos cabelos desgrenhados, e arroja- vam sobre eles as Ma s-Sortes, invocando a vingança de Élias. Assim tumultuosamente erraram ate A scalon; na o encontraram Je- sus: e retrocederam ao longo da costa en- terrando as sanda lias nas areias ardentes.

Numa madrugada, perto de Cesare ia, marchando num vale, avistaram sobre um outeiro um verde-negro bosque de lourei- ros, onde alvejava, recolhidamente, o fino e claro po rtico dum templo. Um velho, de compridas barbas brancas, coroado de fo- lhas de louro, vestido com uma tu nica cor de açafra o, segurando uma curta lira de tre s cordas, esperava gravemente, sobre os de- graus de ma rmore, a apariça o do Sol. Debai- xo, agitando um ramo de oliveira, os solda- dos bradaram pelo sacerdote. Conhecia ele um novo profeta que surgira na Galile ia, e ta o destro em milagres que ressuscitava os mortos e mudava a a gua em vinho? Serena- mente, alargando os braços, o sereno velho exclamou por sobre a rociada verdura do vale:

- Oh romanos, pois acreditais que em Ga- lile ia ou Jude ia apareçam profetas consu- mando milagres? Como pode um ba rbaro alterar a ordem instituí da por Zeus?... Ma gi- cos e feiticeiros sa o vendilho es, que mur- muram palavras ocas, para arrebatar a es- po rtula dos simples... Sem a permissa o dos Imortais nem um galho seco pode tombar da a rvore, nem seca folha pode ser sacudida na a rvore. Na o ha profetas, na o ha mila-

gres... So Apolo De lfico conhece o segredo das coisas!

Énta o, devagar, com a cabeça derrubada, como numa tarde de derrota, os soldados recolheram a fortaleza de Cesare ia. É gran- de foi o desespero de Septimus, porque sua filha morria, sem um queixume, olhando o mar de Tiro - e todavia a fama de Jesus, cu- rador dos la nguidos males, crescia, sempre consoladora e fresca, como a margem da tarde que sopra do Hermon e, atrave s dos hortos, reanima e levanta os açucenas pen- didas.

Ora entre Énganim e Cesare ia, num case- bre desgarrado, sumido na prega dum cer- ro, vivia a esse tempo uma viu va, mais des- graçada mulher que todas as mulheres de Israel. O seu filhinho u nico, todo aleijado, passara do magro peito a que ela o criara para os farrapos da enxerga apodrecida, on- de jazera, sete anos passados, mirrando e gemendo. Tambe m a ela a doença a enge- lhara dentro dos trapos nunca mudados, mais escura e torcida que uma cepa arran- cada. É, sobre ambos, espessamente a mise - ria cresceu como o bolor sobre cacos perdi- dos num ermo. Ate na la mpada de barro vermelho secara ha muito o azeite. Dentro da arca pintada na o restava gra o ou co dea.

No Éstio, sem pasto, a cabra morrera. De- pois, no quinteiro, secara a figueira. Ta o longe do povoado, nunca esmola de pa o ou mel entrava o portal. É so ervas apanhadas nas fendas das rochas, cozidas sem sal, nu- triam aquelas criaturas de Deus na terra es- colhida, onde ate a s aves male ficas sobrava o sustento.

Um dia um mendigo entrou no casebre,

repartiu do seu farnel com a ma e amargura-

da, e um momento sentado na pedra da la-

reira, coçando as feridas das pernas, contou

dessa grande esperança dos tristes, esse

Rabi que aparecera na Galile ia, que de um

pa o no mesmo cesto fazia sete, e amava to-

das as criancinhas, e enxugava todos os

prantos, e prometia aos pobres um grande e

luminoso Reino, de abunda ncia maior que a

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corte de Saloma o. A mulher escutava, com olhos famintos. É esse doce Rabi, esperança dos tristes, onde se encontrava? O mendigo suspirou. Ah, esse doce Rabi! quantos o de- sejavam, que se desesperançavam! A sua fama andava por sobre toda a Jude ia como o Sol que ate por qualquer velho muro se estende e se goza; mas para enxergar a cla- ridade do seu rosto, so aqueles ditosos que o seu desejo escolhia. Obede, ta o rico, man- dara os seus servos por toda a Galile ia para que procurassem Jesus, o chamassem com promessa a Énganim; Septimus, ta o sobera- no, destacara os seus soldados ate a costa do mar, para que buscassem Jesus, o condu- zissem, por seu mando, a Cesare ia. Érrando, esmolando por tantas estradas, ele topara os servos de Obede, depois os legiona rios de Septimus. É todos voltavam como derro- tados, com as sanda lias rotas, sem terem descoberto em que mata ou cidade, em que toca ou pala cio, se escondia Jesus.

A tarde caí a. O mendigo apanhou o seu borda o, desceu pelo duro trilho, entre a ur- ze e a rocha. A ma e retomou o seu canto, mais vergada, mais abandonada. É enta o o filhinho, num murmu rio mais de bil que o roçar duma asa, pediu a ma e que lhe trou- xesse esse Rabi, que amava as criancinhas ainda as mais pobres, sarava os males ainda os mais antigos. A ma e apertou a cabeça es- guedelhada:

- Oh, filho! É como queres que te deixe, e me meta aos caminhos, a procura do Rabi da Galile ia? Obede e rico e tem servos, e de- balde buscaram Jesus, por areais e colinas, desde Corazim ate ao paí s de Moabe. Septi- mus e forte, e tem soldados, e debalde cor- reram por Jesus, desde o Hebron ate ao mar.

Como queres que te deixe? Jesus anda por muito longe e a nossa dor mora conosco, dentro destas paredes, e dentro delas nos prende. É mesmo que o encontrasse, como convenceria eu o Rabi ta o desejado, por quem ricos e fortes suspiram, a que desces- se atrave s das cidades ate este ermo, para sarar um entrevadinho ta o pobre, sobre en-

xerga ta o rota?

A criança, com duas la grimas na face magrinha, murmurou:

- Oh, ma e, Jesus ama todos os pequeni- nos. É eu ainda ta o pequeno, e com um mal ta o pesado, e que tanto queria sarar!

É a ma e, em soluços:

- Oh, meu filho, como te posso deixar?

Longe sa o as estradas da Galile ia, e curta a piedade dos homens. Ta o rota, ta o tro pega, ta o triste, ate os ca es me ladrariam da porta dos casais. Ningue m atenderia o meu reca- do, e me apontaria a morada do doce Rabi.

Oh, filho! Talvez Jesus morresse... Nem mes- mo os ricos e os fortes o encontram. O ce u o trouxe, o ce u o levou. É com ele para sem- pre morreu a esperança dos tristes.

De entre os negros trapos, erguendo as suas pobres ma ozinhas que tremiam, a cri- ança murmurou:

- Ma e, eu queria ver Jesus...

É logo, abrindo devagar a porta e sorrin- do, Jesus disse a criança:

- Aqui estou.

(17)

O jovem aspirante a escritor estava precisan- do de esperança. Muitas pessoas lhe haviam dito para desistir. “É quase impossí vel conseguir que seu trabalho seja publicado”, disse-lhe um orien- tador. “A menos que voce seja uma celebridade nacional, os editores nem sequer falara o com vo- ce ”. Outro avisou: “Éscrever toma muito tempo.

Ale m disso, voce na o vai querer colocar todos os seus pensamentos no papel”.

No iní cio ele ouviu. Concordou que escrever era um desperdí cio de esforço e voltou sua aten- ça o a outros projetos. Mas de alguma forma, a ca- neta e o bloco de notas eram como o cafe e a Coca -Cola para o viciado em palavras. Éle preferia es- crever a ler. Énta o escrevia.

Quantas noites ele passava naquele sofa , em um canto do seu apartamento, misturando sua coleça o de verbos e substantivos? É quantas ho- ras sua mulher lhe fez companhia? Éle fazendo artesanato com as palavras. Éla bordando em ponto de cruz. Por fim, ele terminou um manus- crito. Cru e cheio de erros, mas terminado.

Éla lhe deu o empurra o que faltava. — Por que voce na o o envia? Que mal ha nisso?

Énta o ele fez isso. Énviou o manuscrito a quin- ze diferentes editores. Énquanto o casal espera- va, ele escrevia. Énquanto ele escrevia, ela borda- va. Nenhum deles tinha muitas expectativas, mas

ambos esperavam. As respostas começaram a chegar. “Sentimos muito, mas na o aceitamos ma- nuscritos na o solicitados”. “Éstamos devolvendo o seu trabalho. Felicidades”. “Na o temos espaço em nosso cata logo para autores nunca dantes pu- blicados”.

Ainda tenho essas cartas. Ém uma pasta, em algum lugar. Éncontra -las levaria algum tempo.

No entanto, encontrar o bordado de Denalyn na o leva tempo algum. Para ve -lo, tudo o que tenho que fazer e levantar os olhos do meu monitor e olhar para a parede. “Éntre todas as artes nas quais os sa bios sa o proficientes, a maior obra- prima da natureza e escrever bem”.

Com isso ela me deu tempo para que a carta nu mero quinze chegasse. Um editor tinha dito sim. Aquela carta tambe m esta emoldurada. Qual dos dois quadros significa mais para mim? O pre- sente da minha esposa ou a carta do editor? O presente, claro. Ao dar-me o presente, Denalyn deu-me esperança.

O amor faz isso. O amor estende um ramo de oliveira a pessoa amada e diz: “Éu tenho esperan- ça em voce ”.

_________________________________________________________

Éxtraí do de “Quando a Sua Esperança é Peque- na” (do livro “Um Amor que Vale a Pena”, CPAD, 2003).

Arte de Escrever

Max Lucado

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O Poeta do Salmo exilado

J.T.Parreira

O rio na o parecia correr no seu leito natural, circulava pela

cidade, por entre as casas e dava a impressa o de estar ao ní vel das construço es mais rectangulares, reflectindo as faces dos edifí cios.

Gedalias, um ancia o de olhar ja acomodado, sentava-se ao lado de Quebar, um canal navega - vel, a jusante do Éufrates, e via subir e descer com o vento, ate arrastarem as folhas mais altas nas a guas, os juncos que se pareciam com saltadores no momento do mergu- lho.

Nas pedras, junto de si, tinha

pousada uma ta bua de barro com inscri- ço es da histo ria recente e um papiro enve- lhecido no qual se via que ja inscrevera al- gumas frases em aramaico. O velhinho olhava-as, e quando o fazia espaçadamente era com uma tristeza nos cantos da boca, como se alguma coisa tardasse em chegar.

É afirmava a si pro prio: «Éstes versos sera o feitos como se esculpisse o sentir da tristeza, a lamentaça o certa ha -de chegar perfeita, do meu estado de espí rito.»

Éra um velho que trajava um longo ves- tido gasto, com motivos sume rios, e abriga- va-se da humidade do ar com uma pele de carneiro surrada, «Apesar das apare ncias, sou um cativo muito bem tratado» – pensa- va, va rias vezes, com algum reconhecimen- to, e poucas vezes falava de vingança.

Fizera parte da primeira deportaça o, era um bom artí fice, a quem reconheceram a sua valia profissional para trabalhar em artes decorativas. Agora, pore m, ja na o tra- balhava.

Tinha as sanda lias cheias de lama, por- que costumava percorrer os montes de ter- ra que bordejavam as a guas do rio.

O rosto evidenciava, com rugas, que ha- via percorrido uma es- trada na vida que na o fora atapetada de lí rios.

Tinha, no entanto, uma boa figura, e as ma os, quando andava, pareciam imprimir calma a todo o corpo.

Vivia num lugar que as autoridades babilo ni- cas tinham destinado aos judeus deportados.

Éstes viviam em casas pro prias, alguns ate ha- viam enriquecido com o esforço da sua acultura- ça o e integraça o, viven- do na o como escravos, mas semi-livres, em pontos estrate gicos um pouco acima das margens do Quebar. A sua casa e a da famí lia estava ao lado de um grande salgueiro, que em fins de tarde sem vento dava bastante calma ao olhar, embo- ra na o acrescentasse nenhuma novidade, por isso nos olhos de Gedalias havia, por vezes, uma certa acomodaça o.

Mas, na maior parte do tempo em que estava sozinho, os olhos iam buscar ao fun- do do rio sentimentos tristes, e, no entanto, davam a impressa o de estarem a acompa- nhar o subtil curso das a guas.

Como quase sempre podia fazer, estava sentado ao lado do rio, e a luminosidade que vinha da a gua, compartilhava-a no seu rosto. Nesses momentos baixava a cabeça e olhava em direcça o do seu manuscrito.

Trouxeram-nos, um dia, por volta do anoitecer, das suas terras da Palestina, ao velhinho com uma dezena de milhar de outros judeus, e a partir de enta o aqueles canais da Babilo nia eram como uma praça onde juntavam os soluços e as palavras

Michele Myers

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castradas.

Lembrava-se perfeitamente do dia, Jeru- sale m apo s um cerco breve capitulou no dia 16 de Março de 597, sem resiste ncia digna de nota.

O rio possuí a recantos aprazí veis e os salgueiros quando se reflectiam no retrato criado no espelho das a guas, faziam-no de margem a margem em alguns pontos.

Uma parte do seu estado de espí rito quereria fazer caber esse sentimento este tico no que viesse a escrever, a outra, era mais drama tica, prendia-se com o aviltamento natural do seu estado de exilado judeu, prendia-se com a religia o.

— Se eu fosse o nosso grande rei David, o salmo ja arderia de beleza em todas as suas palavras. — Disse, um dia, a um moço que lhe perguntara o destino que daria ao manuscrito.

— Éu sou apenas um velho que quer deixar um pedaço de histo ria para la das nossas ruí nas. Mas talvez seja ja muito tarde. — Arrematou, voltando de novo a sua contemplaça o.

— Venha, meu pai. — Julgar-se-ia que a filha o teria acordado, quando o veio chamar. — Venha preparar o Shabat, que apesar de estarmos em terra estranha, temos aqui de perpetuar Sia o.

A noite caí a sobre o Éufrates e o Quebar como uma peça u nica, compacta, a pro pria sombra te nue dos salgueiros ja na o se dis- tinguia, mais tarde seria somente o murmu- rar das a guas que indicariam, no escuro, o volume espesso dos rios.

Émbora na o desse excessiva importa ncia a idade, como limite para produzir uma obra salmo dica, pensava com freque ncia que ja na o teria muito tempo, que talvez fosse ja muito tarde.

— Ainda quero sair daqui, regressar a minha terra. — Desejava sempre que a con- versa se metia por aí , embora la na o tivesse as margens de um rio como aquele onde se poderia sentar. Sentar-se-ia debaixo do al- pendre de uma casa. É pensava assim sem-

pre que se animava com uma possí vel lon- gevidade.

Havia rumores de que os persas, sob o mando de Ciro, poderiam estar perto de in- vadir Babilo nia. É esses na o eram propria- mente ba rbaros. É no que dizia respeito aos judeus, a sua relaça o com estes na o era as- sim ta o complicada politicamente.

Mas um poema sobre o exí lio obcecava-o e estava dentro das suas prioridades de an- cia o.

Pensava muito no assunto, e talvez por saber que o mesmo na o acontecia com ou- tros da sua idade, e, sobretudo, com alguns muito mais novos, que ja haviam nascido em terra estranha, muito mais pensava num retrato poe tico do exí lio, numa forma que sintetizasse a tristeza e o orgulho nacionais.

Foi nesse instante que um dos filhos, o mais velho, lhe interrompeu o que estava a pensar. Éle falava de um modo pacificado e parecia inquieto, mais no olhar do que na voz.

— Pai, queria que me desse uns momen- tos da sua atença o.

Ésse seu filho era o predilecto, na o por ser o primoge nito, mas por ser rigoroso com a sua vida secular, com ortodoxia de princí pios para com a comunidade, cumpri- dor da lei Mosaica e um excelente mu sico.

Tocava lira na perfeiça o.

— Ja decidi, ha muito tempo, que na o vou tocar lira para a festividade dos nossos opressores. No entanto, insistem. Vou deba- ter-me com problemas.

— Deus reservou-te uma tarefa, que na o sera certamente tocares o ca ntico do Senhor em terra estranha. — Anuiu o velho pai, enquanto com a cabeça procurava o exacto ponto cardeal para olhar, no vazio, rumo a Jerusale m.

— Na o sou o u nico a pensar desta

maneira — informou o filho — Ha muitos

judeus a pensarem o mesmo.

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É, no entanto, estavam todos aflitos com a situaça o. Éra uma honra que os babilo nios os considerassem muito bons mu sicos e se deliciassem a ouvir as liras dedilhadas por uns dedos que so sabiam, agora, contar salmos de angu stia e tristeza, mas sempre com aquele ritmo vivo que um dia fizera Miria executar uma remota dança ou David saltar a frente da Arca.

— Talvez. — Concordou o velho — Mas

sempre e o ca ntico do Senhor em terra es- tranha. Por muito que ambicionemos na o poderemos tirar desta terra um ca ntico pa- ra o Senhor. — Repetiu, enquanto um vento inesperado fez uma passagem ra pida pelos salgueiros, como uma mu sica agreste, de- frontando as ramagens. É entre as suas pa l- pebras, ja muito fla cidas, começaram a bri- lhar umas pequení ssimas pe rolas.

Uma nuvem mais branca, queria agora instalar-se entre as mais escuras que corri- am, ja havia um bocado, pelo ce u. Éra uma nuvem muito simples, que na o se parecia com nada, nem suscitava qualquer desenho a imaginaça o.

O velho talvez pudesse agora voltar para o seu sí tio ao lado do rio, e levar os seus ins- trumentos de escrita onde esperava ainda escrever alguma coisa a favor do mundo que lhe roubaram. A lua era uma quilha de um barco a subir e a descer na luminosida- de de espuma, quase alva, de algumas nu- vens. Nessa noite, cheia do rumor com que as a guas, a s vezes, substituem a ventania, sentia-se com pensamentos inspirados.

Junto dos rios da Babilónia nos assen-

tamos e choramos — disse em voz alta, e achou que este começo do poema condizia com a verdade, porque ja presumia a liça o de quanto mais poe tico mais verdadeiro.

Poderia ser mais narrativa que poesia, mas era a verdade sentida.

— Filho — olhou para o primoge nito —

Na o cre s que esta e a melhor posiça o que actualmente nos retrata, como um povo?

Havia no entanto, que meter dentro do para grafo, dissera-lhe o filho, a saudade, a

religiosidade e tambe m um sentido comuni- ta rio. Fizera bem em referi-lo, porque o ve- lho concluiu os versos com «lembrando-nos de Sião.»

Depois veio aquela refere ncia aos sal- gueiros. Havia inu meros, junto a s colo nias oferecidas aos judeus, nas margens do rio Quebar. «Nos salgueiros penduramos nos- sas harpas.»

Mas como uma centelha que sai do fundo da fogueira que parece extinta, e revigora todo o fogo, Gedalias recordou que nos pri- meiros anos de cativeiro, e mesmo muitos anos depois, os babilo nios insistiam para que cantassem as suas canço es. Éra verda- de, que tinham permissa o para celebrar as suas festas, embora so cultivassem uma, a Festa das Lamentaço es aliada ao novo cos- tume de orarem com os olhos voltados para Jerusale m, mas tocar para aqueles que os levaram ao exí lio, jamais.

É, assim, começou a escrever:

«Porquanto aqueles que nos levaram cati- vos, nos pediam uma canção; e os que nos destruíram, que os alegrássemos, dizendo:

Cantai-nos um dos cânticos de Sião.»

Mas como numa terra impura, o homem se guarda de contaminar o corpo, sem lugar de culto, sem refere ncias fí sicas para situar a sua religia o, a na o ser no plano dos costu- mes, dando maior importa ncia ao Sa bado e a Circuncisa o, o velho e todos os outros ju- deus que puderam, enfim, regressar a Jeru- sale m, tinham imenso orgulho em poder afirmar, como as palavras desse poema, a sua recusa: «Mas como entoaremos o ca nti- co do Senhor em terra estranha?».

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J.T.Parreira é poeta, escritor e ensaísta português.

Autor de seis livros de poesia e diversos e-books.

Éscreve desde 1964 na revista Novas de Alegria.

Mante m o blog Poeta Salutor.

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