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OS DOIS CONFLITOS MUNDIAIS COMO ILUSTRAÇÃO DA AUSÊNCIA DE ANARQUIA INTERNACIONAL António Horta Fernandes

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Vol. 6, n.º 1 (Maio-Outubro 2015), pp. 21-32

OS DOI S CON FLI TOS MUN DI AI S COMO I LUSTRAÇÃO

DA AUSÊN CI A DE AN ARQUI A I N TERN ACI ON AL

Ant ónio Hort a Fernandes

Docent e do Depart am ent o de Est udos Polít cos da Faculdade de Ciências Sociais e Hum anas ( FCSH) , I nvest igador do Cent ro de Histót ia d'Aquém e d'Além - Mar ( CHAM/ FCSH) da Universidade Nova de Lisboa. Est rat egist a da Escola Est rat égica Port uguesa.

Resum o

A Grande Guerra, as décadas cont urbadas que se lhe seguem , nom eadam ent e a década de t rint a do século XX, culm inando na Segunda Guerra Mundial, e, post eriorm ent e, a Guerra Fria, a seu m odo, são m om ent os históricos privilegiados para se com provar da im possibilidade de sust entar um a das im agens m ais fam osas das Relações I nt ernacionais, a de anarquia int ernacional. A ideia de um est ado de guerra ont ologicam ent e perm anent e, que não fenom enologicam ent e, é incom pat ível com um m undo pej ado de soberanias. Ora, est as soberanias nunca perderam o cont rolo polít ico- est ratégico das guerras, nem m esm o no caso dos principais conflit os do século XX. Todos esses conflitos foram est rat egicam ent e m ediados e nunca deram lugar ao reinado da guerra absolut a.

Palavras chave:

Anarquia; Guerra, Est rat égia; Soberania

Com o cit ar est e art igo

Fernandes, Ant ónio Hort a ( 2015) . "Os dois conflitos m undiais com o ilust ração da ausência de anarquia int ernacional". JANUS.NET e- j ournal of I nt ernat ional Relat ions, Vol. 6, N.º 1, Maio- Out ubro 2015. Consult ado [ online] em dat a da últ im a consult a,

observare.ual.pt / j anus.net / pt _vol6_n1_art 2

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OS DOI S CON FLI TOS MUN DI AI S COMO I LUSTRAÇÃO

DA AUSÊN CI A DE AN ARQUI A I N TERN ACI ON AL

Ant ónio Hort a Fernandes

A Grande Guerra, as décadas cont urbadas que se lhe seguem , nom eadam ent e a década de t rint a do século XX, culm inando na Segunda Guerra Mundial, e post eriorm ent e a Guerra Fria, a seu m odo, são m om ent os hist óricos privilegiados para se com provar a im possibilidade de sust ent ar um a das im agens m ais fam osas das Relações I nt ernacionais. Referim o- nos à ideia de anarquia int ernacional.

Nat uralm ent e é m ist er colocar de ant em ão os t erm os da quest ão. Obviam ent e que não nos irem os debruçar aqui, num espaço t ão curt o, sobre t odas as nuances acerca dos conceit os de guerra e de anarquia int ernacional, nem escorar pont o a pont o as j ust ificações para a apresent ação definit ória dos conceit os que fazem os. As respect ivas definições servem apenas para m oldar o discurso, para que o leitor saiba do que est am os a falar quando argum ent am os em t orno da guerra e da anarquia int ernacional.

1 . Guerra e Soberania: a norm alização soberana da guerra e a guerra

absolut a

Assim , abrindo com o conceit o de guerra, o m esm o pode ser definido com o “ violência ( enquant o lut a, duelo em escala) ent re grupos políticos ( ou grupos com obj ect ivos político- sacrais) , em que o recurso à lut a arm ada const it ui, pelo m enos, um a possibilidade pot encial, visando um det erm inado fim nos lim it es ( de preferência ext eriores) da política ( ou fins políticos em grande part e, m as não na t ot alidade, a part ir da m odernidade) , dirigida cont ra as font es do poder adversário e desenrolando-se desenrolando-segundo um j ogo contínuo de probabilidades e acasos”1

Nat uralm ent e que aqui os parênt eses são fundam ent ais, pois a int ernalização de j ure da guerra na acção polít ica, na const it uição do próprio ser da política, é algo que se vai firm ando apenas na I dade Moderna, e paulat inam ent e, por int erm édio de um a força t odo- poderosa que irá adquirir m eios para isso, a saber: a soberania. Deve- se ao soberano, esse poder absolut o, perpét uo e indivisível, definido pela excepção, pela faculdade de proclam ar o est ado de excepção, a norm alização da guerra.

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1 Para quem está fam iliarizado com os m eios da estratégia, terá verificado que a presente definição é

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Ent endendo- se por norm alização da guerra a dessacralização, a secularização operada pelo soberano nessa força at é aí m itificada, sacralizada de form a dist ópica e post a fora do com ércio norm al dos hom ens. Aquilo que o soberano faz é concat enar os m undos da paz e da guerra apart ados at é à m odernidade, encaixar ordem e desordem um a na out ra num novo est ado, que exprim e a possibilidade, a event ualidade ont ológica e fenom enológica da guerra perm anent e, porque doravant e a guerra é considerada com o acção política ordinária. Um est ado que, à falt a de m elhor designação, se poderia denom inar um est ado de paz m ediant e condicionalidades soberanas.

Com o est á bom de ver, é essencial ao soberano, ou se quiserm os concret izar, aos vários soberanos da cena int ernacional, um a quot a- part e de cont rolo últ im a de que não podem abdicar, porquant o alguém só se pode ser suserano daquilo que não se lhe escapa. É que o est ado de excepção não é o caos que precede a ordem ou sucede ao seu fim , m as aquele onde a ordem vigora sob a form a ( peculiar) de suspensão dos com andos legais propriam ent e dit os, onde a inform ulabilidade da lei, e a dificuldade em saber se est am os a observar ou a t ransgredir, a norm a é m áxim a; um est ado em que se est á com plet am ent e dependent e da discricionariedade do soberano, ou dos m ecanism os soberano- governam ent ais, que não da sua arbit rariedade, em sent ido próprio, j á que isso rem et eria para o anárquico, na qualidade de puro desordenado2

Acont ece que se a guerra é, em part e, um est ado de excepção, em que se pode m at ar sem que t al sej a considerado hom icídio, é igualm ent e um a excepção que excede esse m esm o est ado de excepção, por assim dizer. Não podem os esquecer que o valor de utilidade m arginal, aquele núcleo que est abelece o “ preço” , o sent ido ou des- sent ido últim o da guerra enquant o fenóm eno com consist ência int erna, aut ónom a, quer dizer, com a sua própria gram át ica, é aquilo que Clausewit z designou por guerra absolut a. I st o é, o cerne irredent o da guerra, a caót ica abissal, o cilindro est anque da pura violência, o núcleo m ais íntim o do conflit o bélico, que em bora não perfazendo t odas as m anifest ações de guerra, est á present e e m unicia cada um a das guerras que deflagram , prom ovendo sem pre a ascensão aos ext rem os, porque o que é próprio do ext rem o é ext rem ar- se, m at erializar- se por com plet o. Significa ist o que um a guerra alim ent ada no essencial pelas suas próprias font es perfaz um est ado politicam ent e incont rolável, at é para um poder soberano. Dit o de out ro m odo: t endo a guerra sua própria gram ática, a sua própria consist ência int erna, ou para dizê- lo com m aior propriedade, o seu próprio m ot or de corrosão, de dissim et rias abism ais, de desagregação, há nela um núcleo que nunca se rende, nem à m ão- de- ferro do soberano. I nfelizm ent e, é esse núcleo que lhe dá vida, que abala t odos os alicerces da norm alidade, inclusive dessa t em ível “ norm alidade” em form a de suspensão caract eríst ica da lógica soberana. Por m ais que sej a cont rolada, a guerra com port a em si esse caos que const ant em ent e elide a ordem e se desenfia, inclusive da discricionariedade soberana. Deixá- lo à solt a é arriscar a perdição, e é verdade que a lógica soberana criou condições, m ais que nenhum out ro aparat o polít ico, para que a guerra se aproxim asse da ascensão aos ext rem os, com o bem viu Clausewit z

.

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2 Acerca das características do estado de excepção, tal com o as apresentam os, som os devedores de

Agam ben (Agam ben, 2006: 105-106).

.

3 (Clausewitz, 1986: livro VI I I , cap.I I I B, 593 e livro VI I I , cap.VI B, 606), respectivam ente, para a

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2 . Anarquia I nternacional com o Est ado de Guerra: a im possibilida de da

guerra perm anent e num m undo pej ado de soberanias

I m port a agora debruçar- nos sobre o conceit o de anarquia int ernacional, indo de im ediat o à linha definidora que subj az à est rut ura do pensam ent o realist a, aquela que caucionou a im agem de anarquia int ernacional. Ora, a nosso ver, o m ais consequent e dos pensadores realistas sobre o t em a é Kennet h Walt z, porque é aquele que verdadeiram ent e coloca o problem a de form a franca, em bora de m aneira m ais ou m enos t ácit a, em t odos os out ros int ernacionalist as de pender realist a se possa depreender o sent ido que est á claro na sua form ulação:

am ong m en as am ong st at es, anarchy , or t he absence of

governm ent , is asociat ed w it h occur rence of violence” ( Walt z, 1979: 102) .

Quer ent ão dizer que o conceit o de anarquia ( no senso de desordem ) pressupõe um a unidade inext rincável com o conceit o de guerra. Obviam ent e, não há sequer um único int ernacionalist a afim ao conceit o de anarquia int ernacional a int erpret ar a anarquia int ernacional com o um perm anent e e generalizado est ado fáct ico de guerra ou de desordem . A guerra não t em , na vida int ernacional corrent e, um caráct er de necessidade fáct ica. O conceit o de anarquia int ernacional significa ant es que, em últim a análise, cada act or internacional não pode depender senão das suas capacidades im positivas, do seu poder sem m ais. Ou sej a, m esm o não havendo guerra nem desordem efect iva ( fenom enologia) , est a pende perm anent em ent e sobre os act ores, m ais que com o possibilidade, com o a razão de ser últ im a ( ontologia) do seu com port am ent o. Daí poder afirm ar- se ser a anarquia um est ado de desordem inapelavelm ent e ligado à violência bélica, o m esm o é dizer, que o sent ido ou (des) -sent ido da violência fundam ent a a política int ernacional, é o seu pano de fundo, a sua seiva ont ológica, a sua alm a nut riz. Em sum a, o est ado de guerra é ont ologicam ent e pat ent e e, por vezes, t am bém fenom enologicam ent e efect ivo.

A distinção é franca e Hobbes j á percebera m uito bem no Leviat ã quando afirm a que

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incert o,; consequent em ent e não há cult ivo da t erra, nem navegação, nem uso de m ercadorias[ …] ”,

e por aí fora, cont inua Hobbes. Curiosam ent e, argui pouco depois que, em bora os soberanos vivam em const ant e rivalidade, de arm as assest adas, quais gladiadores vigiando- se m ut uam ent e, o que para ele const itui um a atit ude de guerra, conclui, no ent ant o, que

“ com o at rav és disso pr ot egem a indúst ria dos seus súbdit os, daí não v em com o consequência aquela m iséria que acom panha a liberdade dos indivíduos isolados” ( Hobbes, 2002: cap.XI I I , 111-112) .

Aquilo para que Hobbes nos est á a cham ar a at enção é que a at itude dos soberanos configura um a predisposição est rut ural para a guerra, m as não m ais do que isso ( o que j á não é pouco, saliente- se) , porque se fosse m ais do que isso, nem sequer indúst ria haveria para prot eger, t udo se resum iria à indigência que acim a o próprio descreveu. Bast ava som ent e a est a precisa argum ent ação de Hobbes para confut ar qualquer t ent at iva apressada de firm ar no filósofo inglês a ideia de anarquia int ernacional. Cont udo, isso j á são cont as de out ro rosário4

Porém , se a anarquia int ernacional concerne a um est ado endém ico de violência bélica, t em os um verdadeiro problem a de incom pat ibilidade de raiz para encarar. Um est ado de guerra est rut ural relat ivo t ant o à pré- com preensão com o à com preensão ont ológicas dos act ores políticos do seu próprio ser não é de t odo com pat ível com a vigência do m odo de ser ordenador da soberania. O problem a não est á na passagem de host is a

inim icus, porque o soberano franqueia com facilidade as port as. O grau qualit ativo com

que os adversários se encaram não é a est e propósit o decisivo, porque os soberanos, frut o da sua necessidade ordenadora, m esm o só brigando sob det erm inados eixos, podem m uit o bem diabolizar o oponent e, m esm o que essa escolha sej a m ais arriscada, porquant o facilit a ( não im plica necessariam ent e) a ascensão aos ext rem os e o possível governo da guerra. O problem a reside na ext ensão da desordem , ou na sua “ est abilização” nuclear, precisam ent e no governo da guerra com o pano de fundo, enquant o princípio ontológico que balize os com port am ent os e na qualidade de princípio epist em ológico de explicação dos m esm os, pois isso sim seria a m ort e do soberano, porque, por definição, o que se subt rai à ordem escapa à suserania do poder absolut o de dar e quebrar a lei. O est ado de guerra t ornado regra liquidaria as pret ensões soberanas. Se o fundo operat ivo das relações int ernacionais fosse a guerra a soberania nunca t eria exist ido, e com o a soberania exist e e os racionais soberanos ainda são dom inant es, o est ado de guerra não pode ser det erm inant e. O lorde prot ect or de Hobbes não prot egeria nada, o leviat ã não seria t al, o que parece um a cont radição nos t erm os, j á que é aos soberanos que se fica a dever essa predisposição ( norm alizada) para a guerra, dado o enorm e pot encial de conflit o gerado pela presença cont ígua de poderes por nat ureza excludent es. Além do m ais, não se t rat a som ent e da

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4 A confutação da escora da ideia de anarquia internacional em Hobbes, bem com o um a crítica radical aos

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consist ência lógica do ser da soberania ser afect ada radicalm ent e pelos abism os ent rópicos da guerra em si feit os m ot or da política int ernacional, m as da realidade prim eiríssim a da sororidade, incont ornável at é para os soberanos, o ficar igualm ent e, com o se procurou m ost rar nout ro lugar ( Fernandes, 2012: 93- 97) . Onde grassam os soberanos a anarquia pura e sim ples não faz sent ido, a guerra não é a palavra prim eira, apenas a sua possibilidade o é. Cont udo, com o est am os a falar do dom ínio ont ológico e não apenas fenom enológico, a diferença ent re a event ualidade de ser e o regist o de ser é abissal.

Dit o de out ra form a, at endo à secularização da guerra de que j á fizem os m enção. Se a guerra fosse fundo ont ológico perm anent e, não apenas ninguém aguent aria um tal est ado de coisas por m uit o t em po, m as sobret udo seria rem itificada, ressacralizada com o pot ência dem oníaca, e, desse m odo, post a fora do alcance do soberano, que é, na m elhor das hipót eses, um deus m ort al, para parafrasear Hobbes – referim o- nos à figura da soberania e não só à condição m ort al de cada hom em que a encarna. Pior, com o a soberania j á tinha dest ruído ant es a dicot om ia ont ológica ent re a paz e a guerra, est a presença sacral, incont rolada, da guerra far- se- ia sent ir agora m uit o m ais próxim a da vida com um , e, por consequência, ainda m enos m anej ável e m onit orizável pelo hom em , com inclusão da m áxim a figura de poder que est e ent ret ant o criara, a soberania, t ão absolut a quant o o absolut o que é perm itido ao hom em alcançar nos lim it es do pensável do seu ser criat ural.

Com a m odernidade a guerra passou a pender, por dent ro, sobre a cabeça dos hom ens, com o perm anent e possibilidade, e por isso se t ornou t ão fácil acionar o m ecanism o de abert ura da Caixa de Pandora. Mas não com o perm anent e força de ser, passiva ou act iva, porque o ser em pot ência t am bém é ser. Se a guerra fosse essa perm anent e força de ser, im plicaria revalorizar em alt a a guerra absolut a, ist o é, pôr a guerra a dit ar as regras, t ornar a política a continuação da guerra por out ros m eios, o que, com o é sabido, nunca se verificou. Em bora, na aparência, nada obst e a que se possa vir a verificar5

Sej a com o for, bast a haver soberania enraizada para a conj ugação de um est ado de anarquia int ernacional com essa m esm a soberania ser um oxim oro. Quando se j ulgaria precisam ent e o cont rário: a dinâm ica soberana t eria cat alisado a anarquia. Maior erro de análise não exist e, m as t am bém não é est e o lugar para buscar as razões do erro.

.

3 . Polít ica e Est rat égia nas Duas Prim eiras Guerras Mundiais: a

ausência de anarquia

Afinal, com o servem as duas conflagrações m undiais de com provação do nosso argum ent o, quando aparent em ent e at é nos deveríam os livrar delas com o escolhos pont uais?

Um a prim eira respost a não é difícil. A guerra foi feit a por soberanos e est es cont inuaram a existir, logo não há lugar sust ent ado para anarquia – no caso vert ent e pouco im port a a configuração concret a que a soberania foi t om ando desde do dealbar

5 Em bom rigor, tem os dúvidas face a certas prevenções antropológicas em fundo m etafísico. Todavia, não

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27 da I dade Moderna at é hoj e6

O prim eiro conflit o m undial vê erguer- se com puj ança um int erm ediário, de que ainda não falám os, na divisão social do t rabalho político, int egrada que foi a guerra na arquit ect ura da política: referim o- nos à est rat égia.

. Todavia, poder- se- ia cont rapor que durant e a guerra t alvez os soberanos t ivessem perdido o cont rolo e post eriorm ent e o reganhassem . Coisa est ranha, dada a virulência das duas guerras e as alt erações hist óricas ocorridas por via delas. De qualquer m aneira não seguirem os por essa senda, ant es int roduzindo um elem ent o adicional.

Ant es de cont inuar, e t al com o para os conceit os de guerra e de anarquia int ernacional, não desenvolverem os aqui os pressupost os j ust ificat órios da definição de est rat égia que apresent arem os de seguida. Tom am os a liberdade de regist ar um a definição branda, o m esm o é dizer, consensual e de acordo com os m elhores cânones clássicos da t eoria da est rat égia desde há 50 anos, no m undo cont inent al, aquele onde a disciplina t em sido cultivada sem as insuficiências que a caract erizam no m undo anglo-saxónico. Assim , podem os definir a est rat égia com o a sabedoria prát ica desenvolvida pelos act ores políticos, com expressão colect iva, a fim de preparem e conduzirem a conflitualidade host il uns face aos out ros.

Pois bem , ret om ando o evolver, quando se desencadeia a Grande Guerra, em bora a est rat égia cont inue a ser, no essencial, est rat égia m ilit ar ( e irá cont inuar a sê- lo at é ao fim da Segunda Guerra Mundial)7

6 Se atentarm os à im portante obra de Christopher Clark sobre as origens da Grande Guerra, facilm ente se

pode depreender que, em bora nos anos im ediatam ente antecedentes à conflagração houvesse cada vez m ais vozes disponíveis para aceitar um a possível guerra, a concebê-la com o um a certeza im posta pela índole das relações internacionais, que poderia até ser terapêutica, (279-281), distava de ser geral a ideia de que a cena internacional era no essencial e em si m esm a um a arena. Era sim um terreiro de possível confrontação, fruto do choque de interesses das soberanias e das lutas pelo poder em que estas se im plicavam (Clark, 2013: 237-239). O que obviam ente aponta para as lógicas soberanas, no lim ite, para o frenesim sem pre díscolo da cinética soberana (difícil de controlar até para os próprios soberanos que iniciam o m ovim ento, com o se pôde verificar com o desenlace da Grande Guerra), e não para o vazio soberano e da sua peculiar ordem .

, e apesar de se not ar j á o desabrochar dos alicerces para out ras est rat égias, ent ão recolhidos no conceit o em voga, o de defesa, um a espécie de albergue espanhol que acolhe t udo o que ainda não possui um lugar concept ual preciso, o cert o é que, frut o das novas condições da guerra indust rial e da noção de nação em guerra, se percebe que à est rat égia não é possível acant oná- la m ais enquant o condut a operat iva da guerra, de algum a form a nest a im ersa. À est rat égia é requerida a preparação do conflit o e o vislum brar obj ect ivos de saída dele. Na prát ica, a t opologização horizont al da est rat égia em relação à política e à t áct ica, ist o é a sua diferenciação das m esm as pela nat ureza social das acções e dos prot agonist as, t ende a ser subst it uída por um crit ério vert ical, em que o que int eressa

7 Na verdade, para utilizar um a m etáfora cara ao refundador da escola estratégica portuguesa, Abel Cabral

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j á não é t ant o o que se faz adent ro e im erso no conflit o m as a relação do agir com o poder político direct or e as consequências integrais da acção. Significa ist o que as racionalidades sociais est rat égicas - a condut a específica de um a dada sociedade face ao conflit o host il) , que pela sua nat ureza excepcional, gera fins int erm édios próprios em correlação com os fins políticos direct ores - ganham um a espessura que at é aí não t inham tido.

Qual é a im port ância dest e fact o? A respost a não é difícil de ant ever, pelo m enos para os est rat egist as. É que as conflagrações bélicas do t ipo das duas guerras m undiais t endem a invert er a pirâm ide est rat égica, a subordinar, ou, pelo m enos, a reduzir os obj ect ivos políticos àqueles que t êm a ver com a host ilidade e caem debaixo da alçada da est rat égia. É um a sit uação negat iva, que põe em causa o próprio cerne da est rat égia, a assunção prudent e ( no sent ido dianoét ico) do conflit o, e que a est rat égia t ent a cont rapor com o pode, ret roagindo sobre um a dinâm ica m ais violent a da própria política, para evit ar a delapidação desbragada de recursos hum anos e m at eriais, m as nem sem pre o conseguindo com êxit o. De qualquer form a, para os nossos propósit os, o essencial est á em assinalar que nessas ocasiões, que não são m eram ent e pont uais t ant o na Grande Guerra com o na Segunda Guerra Mundial, não é a política que claudica face à guerra, ant es é a política que claudica, ou m elhor, se est reit a à gest ão da violência. Gest ão essa que, m esm o ao percutir as m em branas m ais violent as da est rat égia, fazendo da est rat égia um a função sobre- est rat égica, est á longe, e est e pont o é decisivo, de ser a violência desalm ada que configura o olho da guerra. Pelo cont rário, e em bora a prudência est rat égica sej a aí t ransfigurada em m ero cálculo m alicioso para apurar capacidades de infligir danos ao adversário, correndo o risco de increm ent ar a violência at é ao descont role, desvirt uando a própria nat ureza da est rat égia, que é o apaziguar do conflit o, o cont rafogo por dent ro do incêndio, ainda assim , nessa gest ão ( senão não era gest ão) , cont inua present e um ir ao lem e, um a ponderação m at erializada, um não est ar desfeit o pela procela da violência, m esm o nos casos m ais ext rem os de afunilam ent o político, de inversão da pirâm ide, de subordinação da política à est rat égia.

Por que razão assim é? Por que é que a est rat égia, dom inant e, quer dizer, em processo ultim am ent e aut ofágico - j á que o que t orna est rat égica a est rat égia é assum ir o seu lugar piram idal enquant o disciplina de fins interm édios, o querer- se enquadrada pela política num espaço organizado em t orno de um cont rolo firm e da violência - pura e sim plesm ent e não at eia o fogo que rest a at ear? Porque a nat ureza visceral da est rat égia, m esm o quando era apenas condut a da guerra, foi sem pre a de ser esse cont rapont o personalista ao descam bar da violência, m ais do que isso, quint a- coluna no seio do inaudit o para t ent ar aj udar a apagar de vez t odas as ínferas cham as, criar condições para um a paz definitiva.

Rest am , não obst ant e, duas obj ecções. A prim eira, t em a ver com o desenvolvim ent o do conceit o de guerra t ot al e a sua aplicação prát ica. Todavia, o conceit o de guerra t ot al, int roduzido pelo político e j ornalist a francês Léon Daudet , em 19188

8 Daudet define a guerra total com o a “ extensão da luta nas fases m ais agudas e crónicas aos dom ínios

político, económ ico, com ercial, industrial, intelectual, j urídico e financeiro. Não são só os exércitos que se batem , são as tradições, costum es, códigos, espíritos e sobretudo os bancos” (Daudet, 1918: 8).

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últim as consequências. A obra de Ludendorff não vai nesse sent ido, pelo cont rário, a guerra t ot al, pressupondo um a política t ot al, onde o político deve ceder ao com andant e- em - chefe, deve ser o com andant e- em - chefe, subm et endo, por conseguint e, a política à est rat égia, exact am ent e por ser t ot alizant e nos m eios e no em penho, exige que sej a fort em ent e cont rolada. As operações devem cessar rapidam ent e após a realização possível do obj ect ivo para evit ar a desagregação int erna da sociedade. ( Ludendorff, 1941, 36, 113, 233 e ss)9

Na realidade, o conceit o de guerra t ot al é a expressão hist órica de um a era que se abre com o fim da Grande Guerra e cessa com o culm inar da Segunda Guerra Mundial, dom inado pela ideia da utilização de t odas as form as de lut a, sim ult aneam ent e e com a m áxim a int ensidade, e caract erizando- se ainda pela redução da política aos obj ect ivos de host ilidade, aqueles que caem debaixo da alçada da est rat égia, se não m esm o pela subordinação da política à est rat égia ( que não à guerra) em razão da aut o-neut ralização prudencial dest a; ou m elhor, t ransform ando o seu regist o dianoét ico, em m ero calculism o, m anha, sofist icada ponderação art eira, ainda que nunca expulsando de si, apesar da deriva, o senso prim eiro de cont enção.

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Na prát ica, verificou- se que a inversão da pirâm ide não era só um a possibilidade séria, m as foi um fact o hist órico. É cert o que, em t eoria, o est reit am ent o da política aos obj ect ivos políticos de host ilidade pode ainda configurar um a sit uação de sobredet erm inação política em relação à est rat égia, reduzindo a sínt ese política a esses obj ect ivos, ou t ornando- os ancilares para a definição de conj unt o do que se quer ser enquant o act or político. Todavia, não deixa de ser verdade que esse est reit am ent o da política t ende a acicat ar a est rat égia, ao concent rar a sua força no espaço que é por excelência o dest a, com isso deform ando a lógica prudencial do exercício est rat égico. A est rat égia vê- se assim levada a lim it ar radicalm ent e a sua função prudencial e a alcandorar- se ao pont o da política se confundir com ela, e de se enfeudar a ela, pois os âm bit os parecem sobrepor- se, e nessa caso a est rat égia parece t ecnicam ent e m ais t alhada para a t arefa, com as consequências at rás m encionadas. Escusado será dizer que no concret o histórico rapidam ent e se passou à solução m ais fácil, a do enquist am ent o da est rat égia10

9 Jean-I ves Guiom ar, historiador francês da guerra total, na obra atrás citada, acredita que a em ergência

da guerra total se deu com as guerras levadas a cabo pela França revolucionária, em bora reconheça que essa m esm a guerra total não se plasm a na íntegra senão no século XX (Guiom ar, 2004: 25, 102-105, 120, 151). Todavia, parece-nos que o historiador francês sobrepõe várias vezes guerra total e guerra absoluta. Ainda que afirm e (I dem : 302) que não pretende resolver a questão - para ele um a questão em aberto - de saber se o conceito de guerra total designa a m esm a coisa que o conceito de guerra absoluta. Na verdade, o autor defende (I dem : 19-20) que a guerra total é um a guerra que não pode ser parada nem interrom pida por quem a declara, alargando-se constantem ente no espaço e estendendo-se incessantem ente no tem po. Todavia, essa é um a característica m ais consonante com a guerra absoluta, isto é, a guerra obedecendo no essencial à sua gram ática específica, que propriam ente com a guerra total.

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10 Na realidade, a estratégia não é m era disciplina técnica, instrum ento, ferram enta. O abaixam ento da

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A segunda obj ecção parece de m aior vult o. Porque não obst ant e aquilo que dissem os, não é m enos verdade que cert as passagens dos dois conflit os m undiais pronunciam , ou realizam m esm o um ir além da inversão piram idal, um m ergulho em cheio da política e da est rat égia na guerra, um ir de si da guerra. A hecat om be alsaciana de Verdun na Grande Guerra, ou m uit os dos episódios ( provavelm ent e m ais do que isso) na Frent e Orient al, na Segunda Guerra, para j á não falar dos genocídios, apont am nesse sent ido. Parece- nos inegável. E ent ão? A única lição que podem os ext rair do sucedido é o reconhecim ent o de quão fácil é hoj e ascender aos ext rem os. Porque, por cont rast e, o que se const at a é a diferença ent re esses t ram os da guerra e os rest ant es, e, por m aioria de razão, a diferença face aos out ros t ram os da hist ória, em que a guerra é fenom enologicam ent e lat ent e, m as em que seria supost o est arm os ont ologicam ent e em est ado de guerra. Se a guerra fosse ont ologicam ent e act iva, a sit uação norm al assem elhar- se- ia m ais a esses m om ent os negros que ao rest o; ou m elhor, ao fim de t ant o t em po j á não se assem elharia a nada.

4 . A Anarquia I nt ernacional: um a im age m fora- de- j ogo

Por fim , a Guerra Fria. Nest e caso seria m elhor nem sequer t ent ar obj ect ar por aí. A Guerra Fria corresponde à idade adult a da est rat égia com o disciplina de fins int erm édios e incom plet os, a com plet ar na sínt ese política superior. Preparada, port ant o, com o nunca, para um a perfeit a ( ou quase) coabit ação com a política, debaixo da am eaça nuclear, a prim eira am eaça a poder verdadeiram ent e concret izar num ápice

o arm agedom. O advent o da arm a nuclear e o surgim ent o das dout rinas subversivas e

de cont ra- subversão alcandoram a est rat égia a um a nova época, aquela em que nós est rat egicam ent e ainda vivem os.

O advent o da era at óm ica, ou m ais propriam ent e, o surgim ent o das arm as t erm onucleares e a corrida aos arm am ent os, t ornou claro que som ent e a dissuasão poderia evit ar a cat ást rofe. O est ilo est rat égico direct o não era rem unerador. Doravant e j á não se podia canalizar o esforço bélico e est rat égico para o m ilit ar, as out ras est rat égias adquiriam assim a aut onom ia desej ada. O que seria um pat am ar m ais na escalada, de acordo com a prát ica da guerra t ot al, t orna- se um a oport unidade de a t ravar, de escolher j udiciosam ent e e prudent em ent e as m elhores est rat égias. Poderia a est rat égia fazê- lo se não fosse int rinsecam ent e port adora de fins específicos? Se é verdade que só com o surgim ent o do nuclear, e depois com a possibilidade de guerra intestina, através da guerra de subversão, im plicando a necessidade de m aior coordenação ent re a est rat égia e a política e m esm o a subordinação com pleta daquela à política, é perm itido à estratégia, enquant o estratégia integral, evidenciar na íntegra as suas capacidades prudenciais, não é m enos verdade que a escalada possível de patam ares de violência, oferecida pelas novas m odalidades de guerra, só não levou à

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guerra absoluta, porque a estratégia fez valer os seus recursos prudenciais. E não devem os olvidar que, com t oda a probabilidade, estaria em causa a guerra absoluta na sua plenitude, avocada à libertação integral da sua húbris destruidora, Aquele est ado em que se a guerra fosse senhora não precisaria de t ant o t em po assim para revolver as ent ranhas da t erra, o que sem pre t raz t ranst ornos, porque hom ens se podem cansar de t ant o frenesim .

Mas não cont inuam os nós vivos? A pergunt a é nat uralm ent e a própria respost a.

Onde a política e, acim a de t udo, no cam po da host ilidade, a est rat égia, vicej am , não pode a guerra por si, a guerra ent regue a si m esm a, a anarquia int ernacional vicej ar. O esforço m origerador daquelas, se é efect ivo, com prom et e a anarquia, porque a guerra, por sua cont a, t ende ao solipsism o, a m archar em direcção ao nada. Cont udo, nem a política nem a est rat égia, só por si, t êm força para esvair a caót ica bélica, para isso é preciso um a out ra razão, um a m et ánoia oriunda dos lados da paz pura, que, aliás, insufla a est rat égia no seu percurso. Porém , se virm os bem , j á só essa insuficiência da est rat égia e da política dizem m uit o da im possibilidade de um a anarquia int ernacional, de um est ado de guerra ont ologicam ent e m at erializado. É insuficient e aquele que não é suficient em ent e capaz, que não é capaz só por si. Mas porvent ura ainda est aríam os a falar de capacidade se a guerra reinasse, ou est aríam os t ão- só acabrunhados, m ovidos apenas pela m esm a ( hipot ética) sussurrant e esperança que preside ao final da narração t rágica de A Est rada, de Corm ac McCart hy:

“ nos fundos vales onde as t rut as viviam , t odas as coisas eram m ais ant igas de que o hom em e nelas r essoava um m ist ério” ? ( McCart hy, 2007: 187) .

Varrida - não se sabe com o, at é porque não est am os a falar de um acident e ocorrido, ou de um efeit o absolut am ent e inesperado result ant e de um a qualquer guerra - a indest rutível e prim acial inclinação para o bem . E se a coisa fosse ainda m ais obscura, não est aríam os, se é que est aríam os, t ão- som ent e pendent es do m ais serôdio m ilagre m ilagreiro?

Felizm ent e não est am os. Ent ão por que razão nos quererão levar ao absurdo os proponent es da t ese da anarquia int ernacional?

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Referências

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