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PARTE UM O liberalismo político: elementos fundamentais

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Academic year: 2021

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PARTE UM

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Conferência I

Ideias fundamentais

O liberalismo político, o título destas conferências, soa familiar. Mas por essa expressão entendo algo em certo sen-tido distinto, acredito, daquilo que o leitor provavelmente supõe. Talvez por isso eu devesse começar com uma defini-ção de liberalismo político, explicando por que o denomino “político”. Mas nenhuma definição poderia ser útil já de início. Em vez disso, começo pela discussão de uma primei-ra questão fundamental sobre a justiça política em uma so-ciedade democrática, a saber: que concepção de justiça é mais apropriada para especificar os termos equitativos de cooperação social entre cidadãos considerados livres e iguais e membros plenamente cooperativos da sociedade, de uma geração às seguintes?

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li-vres? Combinando ambas as questões, temos: como é pos-sível existir, ao longo do tempo, uma sociedade justa e es-tável de cidadãos livres e iguais que permanecem profunda-mente divididos por doutrinas religiosas, filosóficas e mo-rais razoáveis?

O liberalismo político supõe que as disputas mais in-tratáveis são assumidamente travadas em nome dos objeti-vos mais elevados: da religião, de visões filosóficas do mun-do e de diferentes concepções morais mun-do bem. Deveríamos considerar surpreendente que, com oposições tão profun-das como essas, a cooperação justa entre cidadãos livres e iguais seja possível. De fato, a experiência histórica mostra que só raramente isso é possível. Se o problema levantado parece demasiado familiar, o liberalismo político propõe uma solução que, a meu juízo, não é das mais familiares. Para formulá-la, teremos de nos valer de certo conjunto de ideias afins. Nesta conferência, exponho aquelas que são mais centrais e proponho uma definição no final (§ 8).

§ 1. Duas questões fundamentais

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confe-re peso maior àquilo que Constant denominou “liberdade dos modernos”, as liberdades de pensamento e de cons-ciência, certos direitos fundamentais da pessoa e de pro-priedade e o Estado de direito – e a tradição associada a Rousseau, que dá mais peso àquilo que Constant denomi-nou “liberdade dos antigos”, as liberdades políticas iguais e os valores da vida pública1. Esse contraste familiar e

estili-zado pode servir para pôr ordem nas ideias.

Como uma forma de responder à nossa primeira ques-tão, a “justiça como equidade”2procura arbitrar essas duas

tradições conflitantes propondo, primeiro, dois princípios de justiça que sirvam de orientação para a forma como as instituições básicas devem realizar os valores da liberdade e da igualdade e, em segundo lugar, especificando um pon-to de vista a partir do qual esses princípios possam ser con-siderados mais apropriados do que outros princípios co-nhecidos de justiça à ideia de cidadãos democráticos, en-tendidos como pessoas livres e iguais. O que é preciso de-monstrar é que, quando os cidadãos são concebidos desse modo, certa disposição das instituições sociais e políticas básicas é mais adequada à realização dos valores da liber-dade e da igualliber-dade. Os dois princípios de justiça mencio-nados se formulam da seguinte maneira3:

1. Ver “Liberty of the Ancients Compared with that of the Moderns” (1819), in Benjamin Constant, Political Writings, volume traduzido e organiza-do por Biancamaria Fontana (Cambridge: Cambridge University Press, 1988). A discussão sobre a diferença entre o problema da filosofia política nos mundos antigo e moderno, na Introdução desse livro, ilustra a importância da distin-ção de Constant.

2. A concepção de justiça formulada em Teoria.

3. A formulação desses princípios difere daquela que aparece em Teoria e segue a formulação de “The Basic Liberties and Their Priority”, Tanner

Lec-tures on Human Values, vol. III (Salt Lake City: University of Utah Press, 1982),

p. 5. Os motivos dessas alterações são discutidos nas pp. 46-55 daquela Con-ferência. Essas são alterações importantes para as revisões na interpretação das liberdades fundamentais em Teoria e foram realizadas na tentativa de res-ponder às fortes objeções feitas por H. L. A. Hart em sua resenha crítica de

Teoria publicada em University of Chicago Law Review 40 (primavera de 1973):

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a. Cada pessoa tem um direito igual a um sistema ple-namente adequado de direitos e liberdades iguais, sistema esse que deve ser compatível com um siste-ma similar para todos. E, neste sistesiste-ma, as liberdades políticas, e somente estas liberdades, devem ter seu valor equitativo garantido.

b. As desigualdades sociais e econômicas devem satis-fazer duas exigências: em primeiro lugar, devem es-tar vinculadas a posições e cargos abertos a todos em condições de igualdade equitativa de oportunidades; em segundo lugar, devem se estabelecer para o maior benefício possível dos membros menos privilegia-dos da sociedade.

Cada um desses princípios regula instituições de um âmbito específico, não apenas em relação a direitos, liber-dades e oportuniliber-dades básicas, mas também no que diz res-peito às demandas de igualdade; a segunda parte do segun-do princípio, por sua vez, enfatiza o valor dessas garantias institucionais4. Em conjunto, e conferindo-se prioridade ao

primeiro sobre o segundo, os dois princípios regulam as instituições básicas que realizam esses valores.

2. Uma longa exposição seria necessária para esclare-cer o significado e a aplicação desses princípios. Como este não constitui o tema destas conferências, faço somente al-guns comentários. O primeiro é que entendo esses princí-pios como uma exemplificação do conteúdo de uma con-cepção política de justiça de natureza liberal. O conteúdo de tal concepção é definido por três características princi-pais: a) a especificação de determinados direitos, liberdades e oportunidades fundamentais (de um tipo que nos é fami-liar dos regimes democráticos constitucionais); b) a atribui-ção de uma prioridade especial a esses direitos, liberdades

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e oportunidades, sobretudo no que se refere às exigências do bem geral e de valores perfeccionistas; e c) a proposição de medidas que propiciem a todos os cidadãos os meios po-livalentes apropriados que lhes permitam fazer uso efetivo de suas liberdades e oportunidades. Esses componentes po-dem ser compreendidos de maneiras distintas, de modo que existem diferentes variantes de liberalismo.

Em segundo lugar, os dois princípios expressam uma variante igualitária de liberalismo em virtude de três ele-mentos. São eles: a) a garantia do valor equitativo das li-berdades políticas, de modo que não se tornem puramente formais; b) a igualdade equitativa (e, de novo, não mera-mente formal) de oportunidades; e c) o denominado princí-pio de diferença, segundo o qual as desigualdades sociais e econômicas associadas a cargos e posições devem ser ajus-tadas de tal modo que, seja qual for o nível dessas desi-gualdades, grande ou pequeno, devem redundar no maior benefício possível para os membros menos privilegiados da sociedade5. Todos esses elementos continuam ocupando o

mesmo lugar que ocupavam em Teoria, e isto também se pode dizer da argumentação que os justificam. Em virtude disso, ao longo destas conferências, pressuponho a mesma concepção de justiça de antes e, a despeito de por vezes

5. Uma variedade de questões se apresentam sobre a interpretação que aqui se tem em vista do princípio de diferença. Por exemplo, os membros me-nos privilegiados da sociedade são identificados por uma descrição e não por um designador rígido (para se valer do termo de Saul Kripke em Naming and

Necessity [Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1972]). Além disso, o

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mencionar alterações, nenhuma delas afeta essa sua carac-terística igualitária6. Nosso foco, no entanto, é o liberalismo

político e as ideias que lhe são constitutivas, de modo que grande parte de nossa discussão diz respeito a concepções liberais de forma mais geral, abrindo espaço para todas as suas variantes, como fazemos, por exemplo, ao examinar a ideia de razão pública (em IV).

Por fim, como seria de esperar, alguns aspectos impor-tantes dos dois princípios são deixados de lado na formu-lação sucinta apresentada. Em particular, o primeiro princí-pio, que trata dos direitos e liberdades fundamentais, pode sem muitos problemas ser precedido de um princípio lexi-camente anterior que prescreva a satisfação das necessida-des básicas dos cidadãos, ao menos na medida em que sa-tisfazê-las seja necessário para que eles entendam e tenham condições de exercer esses direitos e liberdades de forma efetiva. Não há dúvida de que algum princípio desse tipo tem de estar pressuposto na aplicação do primeiro princí-pio7. Mas aqui não vou me estender sobre essas e outras

questões.

3. Em vez disso, retomo nossa primeira questão e per-gunto: como a filosofia política poderia descobrir um fun-damento comum para solucionar uma questão tão

funda-6. Faço esse comentário porque alguns supuseram que minha formula-ção das ideias do liberalismo político significava renunciar à concepformula-ção igua-litária de Teoria. Não tenho conhecimento de nenhuma alteração que pudes-se ter tal implicação e penso que essa conjectura não tem nenhum funda-mento.

7. No que se refere à formulação de um princípio como esse, assim como em relação à formulação mais completa – em quatro partes – dos dois princí-pios, com alterações importantes, ver Rodney Peffer, Marxism, Morality, and

So-cial Justice (Princeton: Princeton University Press, 1989), p. 14. Posso aceitar a

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mental como é a de especificar a família de instituições mais apropriada para garantir a liberdade e a igualdade demo-cráticas? Talvez o máximo que se possa fazer seja reduzir o leque de discordâncias. No entanto, até mesmo convicções profundamente arraigadas mudam ao longo do tempo: a tolerância religiosa é aceita hoje, e não mais se defendem abertamente argumentos a favor da perseguição religiosa; da mesma forma, a escravidão, que levou à Guerra Civil nos Estados Unidos, é repudiada como inerentemente injusta e, ainda que muito da herança da escravidão persista nas políticas sociais e em atitudes inconfessáveis, não há nin-guém que esteja disposto a defendê-la. Reunimos convic-ções firmemente estabelecidas, como a crença na tolerância religiosa e o repúdio à escravidão, e procuramos articular as ideias e os princípios fundamentais que estão implícitos nessas convicções em uma concepção política coerente de justiça. Essas convicções são pontos fixos provisórios, os quais espera-se que qualquer concepção razoável deva le-var em conta. Nosso ponto de partida, então, consiste em examinar a própria cultura pública como o repositório co-mum de princípios e ideias fundamentais que são implici-tamente reconhecidos. Esperamos formular essas ideias de forma clara o bastante para articulá-las em uma concepção política de justiça condizente com nossas convicções mais firmemente estabelecidas. Expressamos isso ao dizer que, para ser aceitável, uma concepção política de justiça deve, após cuidadosa reflexão, mostrar-se consistente com nos-sos juízos ponderados, em todos os níveis de generalida-de, ou em um estado que em outra obra denominei “equi-líbrio reflexivo”8.

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A cultura pública política pode se mostrar dividida em um nível muito profundo. Na verdade, não há como ser de outra forma quando se trata de uma controvérsia tão per-sistente como aquela sobre o entendimento mais correto da liberdade e da igualdade. Isso sugere que, se quisermos encontrar um fundamento para o acordo público, teremos de descobrir uma maneira de articular ideias e princípios familiares numa concepção de justiça política que os ex-presse de um modo que, em certo sentido, terá de diferir da forma conhecida. A justiça como equidade procura fazer isso se valendo de uma ideia organizadora fundamental sob a qual todas as ideias e princípios possam ser sistema-ticamente conectados e relacionados. Essa ideia organiza-dora é a da sociedade concebida como um sistema equita-tivo de cooperação social entre pessoas livres e iguais, vis-tas como membros plenamente cooperativos da sociedade ao longo de toda a vida. Tal ideia, que será retomada adian-te, em § 3, fornece a base para responder à primeira ques-tão fundamental.

4. Vamos supor que a justiça como equidade tenha al-cançado seus objetivos e que uma concepção política pu-blicamente aceitável tenha sido encontrada. Nesse caso, essa concepção proporciona um ponto de vista publicamente reconhecido, com base no qual todos os cidadãos podem inquirir, uns perante os outros, se suas instituições políticas e sociais são justas. Tal concepção lhes possibilita fazer isso apelando para o que é publicamente reconhecido entre eles como razões válidas e suficientes e que são fornecidas por essa mesma concepção. As principais instituições da socie-dade e a maneira como se organizam em um sistema úni-co de úni-cooperação social podem ser examinadas da mesma forma por qualquer cidadão, sejam quais forem sua posição social ou seus interesses mais particulares.

de Teoria (embora os termos não sejam empregados). Os termos restrito e amplo foram utilizados primeiramente no § 1 de “Independence of Moral Theory”,

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O objetivo da justiça como equidade é, por conseguin-te, prático: ela se apresenta como uma concepção de justi-ça que pode ser compartilhada pelos cidadãos como a base de um acordo político refletido, bem informado e voluntá-rio. Expressa a razão política pública e compartilhada dos cidadãos. Mas para se alçar a tal razão compartilhada, a concepção de justiça tem de ser, tanto quanto possível, in-dependente das doutrinas filosóficas e religiosas incomen-suráveis e conflitantes que os cidadãos professam. Ao for-mular uma concepção dessa natureza, o liberalismo políti-co aplica o princípio da tolerância à própria filosofia. As doutrinas religiosas que nos séculos passados constituíam o fundamento reconhecido da sociedade foram gradual-mente cedendo lugar aos princípios do Estado constitucio-nal que todos os cidadãos, qualquer que seja sua visão reli-giosa, podem endossar. Da mesma forma, doutrinas filosó-ficas e morais abrangentes tampouco podem ser endossa-das pelos cidadãos em geral, e já não podem mais, se é que alguma vez isso foi possível, constituir-se na base reconhe-cida da sociedade.

Desse modo, o liberalismo político está em busca de uma concepção política de justiça que, esperamos, possa conquistar o apoio de um consenso sobreposto de doutri-nas religiosas, filosóficas e morais razoáveis em uma socie-dade que seja regulada por tal concepção9. A obtenção

des-se apoio de doutrinas razoáveis estabelece as bades-ses para responder à nossa segunda questão fundamental, que diz respeito a como cidadãos que permanecem profundamen-te divididos pelas doutrinas religiosas, filosóficas e morais que professam podem, a despeito disso, dar sustentação a uma sociedade democrática justa e estável. Para essa finali-dade, é em geral desejável que as doutrinas filosóficas e morais abrangentes às quais estamos habituados a recorrer para debater questões políticas fundamentais sejam

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das de lado na vida pública. A razão pública – a argumen-tação dos cidadãos no fórum público sobre elementos cons-titucionais essenciais e questões de justiça básica – é agora mais bem guiada por uma concepção política cujos princí-pios e valores todos os cidadãos podem endossar (VI). Essa concepção política deve ser, por assim dizer, política, e não metafísica10.

O liberalismo político, então, aspira a uma concepção política de justiça entendida como uma visão que se sus-tenta por si própria. Ele não propõe nenhuma doutrina me-tafísica ou epistemológica específica que vá além daquilo que está envolvido na própria concepção política. Como uma interpretação de valores políticos, uma concepção po-lítica que se sustenta por si própria não nega a existência de outros valores que se aplicam, digamos, aos âmbitos do pessoal, do familiar ou da vida associativa; tampouco afir-ma que os valores políticos são separados de outros valores ou que estão em descontinuidade com outros valores. Um objetivo, como afirmei antes, é o de especificar o domínio do político e sua concepção de justiça de tal forma que suas instituições possam conquistar o apoio de um consenso so-breposto. Nesse caso, são os próprios cidadãos que, como parte do exercício de sua liberdade de pensamento e de consciência, e voltando-se para suas doutrinas abrangen-tes, veem a concepção política como derivada de outros va-lores seus, ou congruente com eles, ou pelo menos não con-traditória em relação a esses outros valores.

§ 2. A ideia de uma concepção política de justiça

1. Até agora utilizei a ideia de uma concepção política de justiça sem explicar seu significado. Talvez seja possível deduzir, do que já foi dito, o que quero dizer com esse

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mo e por que o liberalismo político se vale dessa ideia. No entanto, precisamos de uma formulação explícita, qual seja: uma concepção política de justiça tem três características distintivas, cada uma delas exemplificada pela justiça como equidade. Pressuponho certa familiaridade, mas não de-masiada, com essa teoria.

A primeira característica diz respeito ao objetivo de uma concepção política. Embora tal concepção seja, como não poderia deixar de ser, uma concepção moral11, trata-se

de uma concepção moral que se aplica a um tipo específi-co de objeto, a saber, as instituições políticas, sociais e eespecífi-co- eco-nômicas. Ela se aplica, em particular, ao que denominarei a “estrutura básica” da sociedade, que, para os nossos propó-sitos no momento, estou supondo ser uma democracia cons-titucional contemporânea (emprego expressões tais como “democracia constitucional” e “regime democrático” como termos equivalentes, especificando quando não o são). Por estrutura básica entendo as principais instituições políticas, sociais e econômicas de uma sociedade e o modo como se combinam em um sistema único de cooperação social de uma geração às seguintes12. O foco inicial de uma

concep-ção política de justiça é a estrutura de instituições básicas e os princípios, padrões e preceitos que a ela se aplicam, bem como a forma como essas normas devem se expressar no caráter e nas atitudes dos membros da sociedade que rea-lizam os ideais dessa concepção.

Suponho, além disso, que a estrutura básica seja a de uma sociedade fechada, isto é, devemos considerá-la como se fosse autossuficiente e como se não tivesse relações com outras sociedades. Seus membros só entram nela ao nascer e só saem dela ao morrer. Isso nos permite referirmo-nos a eles como membros nascidos em uma sociedade na qual

11. Ao dizer que uma concepção é moral, quero dizer, entre outras coi-sas, que seu conteúdo é determinado por certos ideais, princípios e critérios e que essas normas articulam certos valores que, nesse caso, são políticos.

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irão passar a vida inteira. A suposição de uma sociedade fe-chada é uma abstração considerável, que só se justifica por-que possibilita por-que nos concentremos em certas por-questões centrais, sem nos prendermos a detalhes que desviariam nossa atenção. Em algum momento, uma concepção polí-tica de justiça deve tratar das relações justas entre os povos, ou do direito dos povos, como prefiro dizer. Nestas confe-rências, não discuto como seria possível formular um direi-to dos povos direi-tomando como pondirei-to de partida a justiça como equidade, tal como inicialmente se aplica a socieda-des fechadas13.

2. A segunda característica diz respeito ao modo de apresentação: uma concepção política de justiça é formula-da como uma visão que se sustenta por si própria. Embora queiramos que uma concepção política encontre uma justi-ficação com referência a uma ou mais doutrinas abrangen-tes, ela não é formulada como tal nem deriva de uma dou-trina desse tipo aplicada à estrutura básica da sociedade, como se esta estrutura fosse simplesmente outro objeto ao qual a doutrina em questão é aplicada. É importante enfa-tizar esse ponto: isso significa que devemos distinguir en-tre o modo como uma concepção política é formulada e ela ser parte ou poder ser derivada de uma doutrina abrangen-te. Pressuponho que todos os cidadãos preferem uma dou-trina abrangente à qual a concepção política que aceitam esteja relacionada de alguma forma. Mas um traço distinti-vo de uma concepção política está no fato de ser formula-da de maneira que se sustente por si mesma e de ser ex-posta à parte de tal estrutura normativa mais ampla ou sem que se faça qualquer referência a ela. Para se valer de uma expressão em voga, a concepção política é um módulo, ou uma parte constituinte essencial, que se encaixa em dife-rentes doutrinas abrangentes razoáveis que subsistem na

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sociedade por ela regulada e pode conquistar seu apoio. Isto significa que essa concepção pode ser formulada sem que se saiba, conheça ou arrisque uma conjectura sobre as doutri-nas desse tipo das quais possa ser parte ou receber apoio.

Nesse sentido, uma concepção política de justiça dife-re de inúmeras doutrinas morais, pois estas são comumen-te consideradas visões gerais e abrangencomumen-tes. O utilitarismo é um exemplo conhecido: o princípio de utilidade, como quer que seja entendido, costuma ter sua aplicação esten-dida a todos os tipos de objeto, da conduta dos indivíduos e das relações pessoais à organização da sociedade como um todo, bem como ao direito dos povos14. Uma concepção

política, ao contrário, tenta elaborar uma concepção razoá-vel somente para a estrutura básica e tanto quanto possírazoá-vel não envolve nenhum compromisso mais profundo com qualquer outra doutrina.

Esse contraste fica mais nítido quando observamos que a distinção entre uma concepção política de justiça e outras concepções morais é uma questão de alcance: o leque de objetos aos quais uma concepção se aplica e o conteúdo que um leque mais amplo de objetos requer. Uma concep-ção moral é geral caso se aplique a um leque amplo de ob-jetos – no limite, a todos os obob-jetos, de uma forma geral. É abrangente quando inclui concepções sobre o que tem va-lor na vida humana e ideais de caráter pessoal, bem como ideais de amizade e de relações familiares e associativas e tudo o mais que deve orientar nossa conduta no limite em nossa vida como um todo. Uma concepção é inteiramente abrangente quando abarca todos os valores e virtudes re-conhecidos dentro de um sistema articulado de forma pre-cisa, ao passo que é parcialmente abrangente quando com-preende determinados valores e virtudes não políticos, mas de modo algum todos, e quando é articulada de forma me-nos rígida. Muitas doutrinas religiosas e filosóficas aspiram a ser tanto gerais como abrangentes.

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3. A terceira característica de uma concepção política de justiça é que seu conteúdo se expressa por meio de cer-tas ideias fundamentais percebidas como implícicer-tas na cul-tura pública política de uma sociedade democrática. Esta cultura compreende as instituições políticas de um regime constitucional e as tradições públicas de sua interpretação (incluinse as do Judiciário), bem como os textos e do-cumentos históricos que constituem um acervo comum. As doutrinas abrangentes de todos os tipos – religiosas, fi-losóficas e morais – fazem parte do que podemos deno-minar “cultura de fundo” da sociedade civil. É a cultura do social, não do político. É a cultura da vida cotidiana, de suas diversas associações: igrejas e universidades, socie-dades científicas e profissionais, clubes e times, para citar somente algumas. Em uma sociedade democrática, há uma tradição de pensamento democrático, cuja substân-cia é pelo menos familiar e inteligível ao senso comum educado dos cidadãos em geral. As principais instituições da sociedade e as formas aceitas de interpretá-las são vis-tas como um acervo de ideias e princípios implicitamente compartilhados.

Dessa forma, a justiça como equidade tem como pon-to de partida certa tradição política e pon-toma como ideia fun-damental15dessa tradição a de sociedade como um

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ma equitativo de cooperação ao longo do tempo, de uma geração às seguintes (§ 3). Essa ideia organizadora central é formulada junto com duas outras ideias fundamentais que são inseparáveis dela: uma é a de cidadãos (aqueles que estão engajados na cooperação), entendidos como pessoas livres e iguais (§§ 3.3 e 5), e a outra, de sociedade bem-or-denada, entendida como aquela que é efetivamente regu-lada por uma concepção política de justiça (§ 6)16. Também

supomos que essas ideias se prestem à elaboração de uma concepção política de justiça capaz de conquistar o apoio de um consenso sobreposto (IV). Um consenso como este consiste de todas as doutrinas religiosas, filosóficas e mo-rais que são tanto razoáveis como conflitantes e que pro-vavelmente persistirão ao longo de gerações e conseguirão conquistar um número considerável de adeptos em um re-gime constitucional mais ou menos justo, no qual o crité-rio de justiça é aquela concepção política ela própria17. Em

que medida a justiça como equidade (ou alguma concep-ção similar) pode conquistar o apoio de um consenso so-breposto entendido dessa forma é uma questão aberta à especulação. Só é possível chegar a uma conjectura funda-mentada sobre isso formulando e mostrando de que modo esse apoio poderia ser obtido.

exemplo, em § 4.3 examino o conceito de pessoa no Direito e na filosofia po-lítica, enquanto em § 5.1 elaboro os demais elementos que são necessários a uma concepção de pessoa na condição de cidadão democrático. Tomei essa distinção de H. L. A. Hart, The Concept of Law (Oxford: Clarendon Press, 1961), pp. 155-9.

16. As duas outras ideias fundamentais são as de estrutura básica, dis-cutida em § 2.1, e a de posição original, disdis-cutida em § 4. Essas duas ideias não são consideradas familiares ao senso comum educado; são introduzidas com o propósito de expor a justiça como equidade de forma clara e siste-mática.

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§ 3. A ideia de sociedade como um sistema equitativo de cooperação

1. Como observei antes, a ideia organizadora funda-mental da justiça como equidade, a partir da qual as demais ideias fundamentais se articulam de forma sistemática, é a de sociedade entendida como um sistema equitativo de cooperação ao longo do tempo, de uma geração às seguin-tes. Começamos a exposição por essa ideia, que considera-mos estar implícita na cultura pública de uma sociedade de-mocrática. Os cidadãos, em seu pensamento político e na discussão das questões políticas, não veem a ordem social como uma ordem natural fixa, ou como uma hierarquia ins-titucional justificada por valores religiosos ou aristocráticos. Aqui é importante enfatizar que, de outros pontos de vista, como o da moralidade pessoal, ou o dos membros de uma associação, ou ainda aquele de uma doutrina religiosa ou filosófica, diferentes aspectos do mundo e da relação que se tem com ele podem ser avaliados de forma distinta. Em geral, esses outros pontos de vista não devem entrar na discussão política sobre os fundamentos constitucionais e as questões básicas de justiça.

2. Podemos especificar melhor a ideia de cooperação social destacando três de seus elementos:

a. A cooperação é distinta da mera atividade social-mente coordenada, como a atividade que é coorde-nada pelos comandos produzidos por uma autori-dade central. A cooperação é guiada por normas e procedimentos publicamente reconhecidos, que aque-les que cooperam não só aceitam, como também consideram como reguladores efetivos da própria conduta.

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especificam uma ideia de reciprocidade: todos os que estão envolvidos na cooperação e que fazem sua parte, como as normas e os procedimentos exigem, devem beneficiar-se de uma forma apropriada, ava-liando-se isso por um padrão adequado de compa-ração. Uma concepção política de justiça identifica termos equitativos de cooperação. Como o objeto fundamental da justiça é a estrutura básica da socie-dade, esses termos equitativos são expressos pelos princípios que especificam os direitos e deveres fun-damentais no âmbito das principais instituições da sociedade e que regulam as disposições da justiça de fundo ao longo do tempo, de modo que os benefí-cios produzidos pelos esforços de todos sejam distri-buídos equitativamente e compartilhados de uma geração às seguintes.

c. A ideia de cooperação social requer uma noção de vantagem racional ou do bem de cada participante. Essa concepção do bem especifica o que aqueles en-volvidos na cooperação, sejam indivíduos, famílias, associações ou até mesmo governos de povos dife-rentes, estão tentando conseguir quando o esquema de cooperação é considerado de seu próprio ponto de vista.

Vários aspectos relativos à ideia de reciprocidade in-troduzida em (b), acima, precisam ser comentados. Um de-les é que a ideia de reciprocidade situa-se entre a ideia de imparcialidade, que é de natureza altruísta (ser motivado pelo bem geral), e a ideia de benefício mútuo, entendendo--a no sentido de que cada um deve se beneficiar em relação à situação atual ou em relação à situação futura esperada, considerando-se as coisas como são18. Da forma como essa

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noção é entendida na justiça como equidade, a reciprocida-de é uma relação entre os cidadãos expressa pelos princí-pios de justiça que regulam um mundo social no qual todos se beneficiam, quando se avalia isso em relação a um pa-drão de referência apropriado de igualdade que seja defini-do para esse mundefini-do. Isso traz à tona a consideração ulte-rior de que a reciprocidade é uma relação entre cidadãos em uma sociedade bem-ordenada (§ 6), que se expressa pela concepção política e pública de justiça dessa sociedade. Daí que os dois princípios de justiça, incluindo o princípio de diferença, com sua referência implícita a uma divisão igual como padrão de comparação, expressam uma ideia de re-ciprocidade entre os cidadãos.

Por fim, essas observações deixam claro que a ideia de reciprocidade não é a de benefício mútuo. Suponha-se que transportássemos pessoas de uma sociedade na qual a dis-tribuição de propriedade, em grande medida resultante da sorte e do acaso, é muito desigual para uma sociedade bem--ordenada, regulada pelos dois princípios de justiça. Nada garante que todos ganhariam com a mudança, caso a jul-gassem de acordo com suas atitudes anteriores. Aqueles que possuem vastas propriedades perderiam muito e, his-toricamente, sempre resistiram a mudanças desse tipo. Ne-nhuma concepção razoável de justiça poderia passar pelo teste do benefício mútuo assim interpretado. Mas o proble-ma não é esse. O objetivo é especificar uproble-ma ideia de reci-procidade entre cidadãos livres e iguais de uma sociedade bem-ordenada. As chamadas exigências do comprometi-mento* são tensões que, em tal sociedade, surgem entre seus requisitos de justiça e os interesses legítimos dos cida-dãos que as instituições justas admitem. No que se refere a essas tensões, merecem destaque as que se dão entre a

con-a impcon-arcicon-alidcon-ade e o benefício mútuo, enqucon-anto Gibbcon-ard con-achcon-a que elcon-a se en-contra entre essas duas concepções, na ideia de reciprocidade. Acredito que Gibbard está correto.Ver seu “Constructing Justice”, Philosophy and Public

Af-fairs 20, 1991, pp. 266 ss.

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cepção política de justiça e as doutrinas abrangentes per-missíveis. Essas tensões não surgem de um desejo de pre-servar os benefícios da injustiça previamente existente. Ten-sões como essas fazem parte do processo de transição, mas as questões relacionadas a isso são abarcadas pela teoria não ideal da justiça, e não pelos princípios de justiça de uma sociedade bem-ordenada19.

3. Considere-se agora a ideia fundamental de pessoa20.

É claro que existem muitos aspectos da natureza humana que podem ser escolhidos como especialmente significati-vos, dependendo de nosso ponto de vista. Expressões como

Homo politicus e Homo oeconomicus, Homo ludens e Homo faber

oferecem exemplos disso. Uma vez que nossa teoria da jus-tiça como equidade toma como ponto de partida a ideia se-gundo a qual a sociedade deve ser concebida como um sis-tema de cooperação ao longo do tempo entre as gerações, adotamos uma concepção de pessoa condizente com esse ideal. Desde o mundo antigo, o conceito de pessoa foi en-tendido, tanto pela filosofia como pelo Direito, como se re-ferindo àquele que é capaz de participar ou de desempe-nhar um papel na vida social e, por conseguinte, de exercer e respeitar seus diferentes direitos e deveres. Assim, dize-mos que uma pessoa é alguém que é capaz de ser um cida-dão, isto é, um membro normal e plenamente cooperativo

19. Allen Buchanan faz um exame elucidativo dessas questões em seu

Marx and Justice (Totowa, NJ: Rowman and Littlefield, 1982), pp. 145-9.

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da sociedade ao longo da vida inteira. Acrescentamos “ao longo da vida inteira” porque a sociedade é entendida não só como fechada (§ 2.1), mas também como um sistema de cooperação mais ou menos completo e autossuficiente, abrindo espaço em seu interior para todas as necessidades e atividades da vida, do nascimento até a morte. A socieda-de também é concebida como tendo uma existência perpé-tua: ela produz e reproduz a si própria e a suas instituições e cultura ao longo das gerações, não havendo nenhum mo-mento em que se espere que ela deixe de existir.

Como partimos da tradição do pensamento democrá-tico, também consideramos os cidadãos como pessoas li-vres e iguais. A ideia básica é que, em virtude de suas duas faculdades morais (a capacidade de ter um senso de justiça e a capacidade de ter uma concepção do bem) e das facul-dades da razão (de julgamento, pensamento e inferência, que são parte dessas faculdades), as pessoas são livres. O fato de terem essas faculdades no grau mínimo necessário para serem membros plenamente cooperativos da socieda-de é o que torna as pessoas iguais21.

Para elaborar mais a ideia: como as pessoas são capa-zes de participar plenamente de um sistema equitativo de cooperação social, atribuímos a elas as duas faculdades mo-rais associadas aos elementos da ideia de cooperação social mencionadas, a saber, a capacidade de ter um senso de jus-tiça e uma concepção do bem. Senso de jusjus-tiça é a capaci-dade de entender a concepção pública de justiça que carac-teriza os termos equitativos de cooperação social, de apli-cá-la e agir em conformidade com ela. Dada a natureza da concepção política de especificar uma base pública de jus-tificação, o senso de justiça também expressa uma disposi-ção, quando não o desejo, de agir em relação a outros em termos que eles também possam endossar publicamente (II, § 1). A capacidade de ter uma concepção do bem é a fa-culdade de constituir, revisar e se empenhar de modo

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cional na realização de uma concepção do próprio benefício racional ou do bem.

Além dessas duas faculdades morais, as pessoas tam-bém têm, em qualquer momento, uma concepção específi-ca do bem que procuram realizar. Não se deve entender essa concepção de forma estreita, e sim como abarcando uma concepção do que é valioso na vida humana. Desse modo, uma concepção do bem normalmente consiste em um sistema mais ou menos articulado de fins últimos, isto é, fins que queremos realizar por eles mesmos, assim como os vínculos com outras pessoas e os compromissos com di-ferentes grupos e associações. Esses vínculos e compromis-sos dão origem a devoções e afetos, e por isso o floresci-mento das pessoas e associações que são objeto desses sen-timentos também faz parte de nossa concepção do bem. Também vinculamos a uma concepção dessa natureza uma visão de nossa relação com o mundo – religiosa, filosófica e moral –, com referência à qual o valor e o sentido de nos-sos objetivos e vínculos são compreendidos. Finalmente, as concepções do bem das pessoas não são imutáveis: elas se constituem e se desenvolvem à medida que as pessoas ama-durecem, e podem se alterar de forma mais ou menos radi-cal ao longo da vida.

4. Como partimos da ideia de sociedade entendida como um sistema equitativo de cooperação, estamos su-pondo que os indivíduos, na condição de cidadãos, têm to-das as capacidades que lhes possibilitam ser membros coo-perativos da sociedade. Essa suposição tem por finalidade chegar a uma visão clara e ordenada daquela que, para nós, é a questão fundamental da justiça política: que concepção de justiça é mais apropriada para especificar os termos da cooperação social entre cidadãos concebidos como livres e iguais e como membros normal e plenamente cooperativos da sociedade ao longo de toda a vida?

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esses infortúnios ocorram no curso normal da vida, e é ne-cessário tomar as devidas providências para enfrentar essas contingências. Mas em vista de nosso objetivo, deixo de lado, por enquanto, essas incapacitações temporárias e também aquelas permanentes, assim como os distúrbios mentais que são severos a ponto de impedir as pessoas de serem membros cooperativos da sociedade no sentido usual. As-sim, embora nosso ponto de partida seja uma ideia de pes-soa implícita na cultura pública política, idealizamos e sim-plificamos essa ideia de várias maneiras, de modo que nos concentremos primeiramente na questão central.

Podemos examinar outras questões adiante, e a forma como as enfrentarmos pode exigir que revisemos respostas já dadas. É de esperar que esse procedimento de vaivém seja necessário. Podemos considerar essas outras questões como problemas de extensão. Assim, há o problema de es-tender a justiça como equidade para dar conta de nossos deveres para com as gerações futuras, que é a rubrica sob a qual se encontra o problema da poupança justa22. Outro

problema é como estender a justiça como equidade para abranger o direito dos povos, isto é, os conceitos e princí-pios que se aplicam ao direito internacional e às relações entre as sociedades políticas23. Além disso, como supomos

(conforme foi dito antes) que as pessoas são membros nor-mal e plenamente cooperativos da sociedade ao longo da vida e, portanto, têm as capacidades necessárias para assu-mir esse papel, apresenta-se a questão do que é devido àqueles que não conseguem satisfazer essa condição, quer de modo temporário (em virtude de doença ou acidente),

22. O tratamento dessa questão em Teoria tem deficiências. Uma abor-dagem melhor é aquela baseada em uma ideia que me foi sugerida por Tho-mas Nagel e Derek Parfit, acredito que em fevereiro de 1972. A mesma ideia foi proposta independentemente, mais tarde, por Jane English, em “Justice Between Generations”, Philosophical Studies 31 (1977), p. 98. Essa abordagem aprimorada é apresentada em “A estrutura básica como objeto”, neste volu-me, Conferência VII.Ver VII, § 6 e nota 12. Simplesmente me escapou essa so-lução melhor, que deixa inalterada a suposição motivacional.

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quer permanente; ambas as situações abrangem grande va-riedade de casos24. Por fim, há o problema do que é devido

aos animais e ao resto da natureza.

Embora pudéssemos querer tratar de todas essas ques-tões, duvido muito que isso seja possível no âmbito da jus-tiça como equidade entendida como uma concepção polí-tica. Acredito que essa concepção propõe respostas razoá-veis aos dois primeiros problemas de extensão: às gerações futuras e ao direito dos povos, e a uma parte do terceiro: o problema de prover aquilo que podemos denominar um atendimento básico à saúde. Com relação aos problemas para os quais a justiça como equidade talvez não tenha uma resposta, há várias possibilidades. Uma delas é que a ideia de justiça política não pode abranger tudo, nem é de espe-rar que o faça. Ou o problema pode ser realmente de justi-ça política, mas a justijusti-ça como equidade não é apropriada nesse caso, por mais que possa sê-lo em outros. A gravida-de gravida-dessa gravida-deficiência é algo que só pogravida-deremos avaliar quan-do o caso específico for examinaquan-do. Talvez simplesmente nos falte perspicácia para descobrir de que modo a extensão pode ser realizada. Seja como for, não devemos esperar que a justiça como equidade, ou qualquer concepção de justiça, abranja todos os casos que envolvam julgamentos de certo e errado. Será sempre preciso que a justiça política seja complementada por outras virtudes.

Nestas conferências, deixo de lado esses problemas de extensão para me concentrar naquilo que denominei a ques-tão fundamental da justiça política. Faço isso porque a fa-lha de Teoria, que é objeto destas conferências (conforme foi mencionado na Introdução), encontra-se na resposta que foi dada a essa questão fundamental. Que tal questão é realmente fundamental, comprova-o o fato de ter sido o foco da crítica liberal à aristocracia nos séculos XVII e XVIII, da crítica socialista à democracia constitucional liberal nos séculos XIX e XX e, na época atual, do conflito entre

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lismo e conservantismo a respeito do direito à propriedade privada e da legitimidade (em contraposição à eficiência) das políticas sociais associadas ao que passou a ser deno-minado “Estado de bem-estar social”. É essa questão que determina os limites iniciais de nossa discussão.

§ 4. A ideia de posição original

1. Retomo agora a ideia de posição original25. Esta ideia

é introduzida com a finalidade de descobrirmos qual con-cepção tradicional de justiça ou qual variante de uma des-sas concepções especifica os princípios mais adequados para realizar a liberdade e a igualdade, uma vez que se con-ceba a sociedade como um sistema equitativo de coopera-ção entre cidadãos livres e iguais. Supondo que queremos saber qual concepção é capaz de fazer isso, por que intro-duzir a ideia da posição original e de que maneira ela nos ajuda a responder a essa questão?

Considere-se novamente a ideia de cooperação social. Como devem ser determinados os termos equitativos de cooperação? São simplesmente formulados por uma auto-ridade externa, distinta das pessoas que cooperam? São, por exemplo, estabelecidos pela lei de Deus? Ou esses termos devem ser reconhecidos pelas pessoas como equitativos por referência ao conhecimento que elas têm de uma ordem moral independente? Por exemplo: são reconhecidos como termos exigidos pelo direito natural, ou por um reino de va-lores que pode ser conhecido por intuição racional? Ou es-ses termos são estabelecidos por um compromisso entre as próprias pessoas à luz do que consideram como seu benefí-cio recíproco? Dependendo da resposta que damos, chega-mos a uma concepção diferente de cooperação social.

A justiça como equidade retoma a doutrina do contra-to social e adota uma variante da última resposta: os termos equitativos da cooperação social são concebidos como um

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acordo entre as pessoas envolvidas, isto é, entre cidadãos li-vres e iguais, nascidos em uma sociedade na qual passam suas vidas. Mas esse acordo, como é o caso de qualquer acordo válido, deve ser estabelecido em condições apro-priadas. Em particular, essas condições devem situar equi-tativamente pessoas livres e iguais e não deve permitir que algumas delas tenham poder superior de barganha. Além disso, deve ser excluído o recurso à ameaça de uso da força e da coerção, ao engodo e à fraude.

2. Até aqui, não há controvérsias. Mas os acordos da vida cotidiana são feitos em uma situação especificada de forma mais ou menos clara e que está inserida nas institui-ções de fundo da estrutura básica. Nossa tarefa, no entan-to, é estender a ideia de acordo com essa estrutura de fun-do própria. Enfrentamos aqui uma dificuldade comum a toda concepção política de justiça que se vale da ideia de contrato, tanto social quanto de outra natureza: precisamos encontrar um ponto de vista apartado dessa estrutura de fundo abrangente que não seja distorcido por suas caracte-rísticas e circunstâncias particulares – um ponto de vista a partir do qual um acordo equitativo entre pessoas concebi-das como livres e iguais possa ser alcançado.

A posição original, com as características do que deno-minei “véu de ignorância”, é esse ponto de vista26. A razão

pela qual essa posição deve abstrair as contingências do mundo social e não ser afetada por elas é que as condições de um acordo equitativo sobre princípios de justiça política entre pessoas livres e iguais deve eliminar as vantagens de barganha que inevitavelmente surgem sob as instituições de fundo de qualquer sociedade, em virtude de tendências sociais, históricas e naturais cumulativas. Tais vantagens e influências contingentes que se acumularam no passado não devem afetar um acordo sobre os princípios que deve-rão regular as instituições da própria estrutura básica do presente para o futuro.

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3. Nesse ponto enfrentamos uma segunda dificuldade, que, no entanto, é só aparente: a partir do que afirmamos, fica claro que a posição original deve ser entendida como um artifício de representação, daí que todo acordo estabele-cido pelas partes deve ser visto como hipotético e a-históri-co. Mas se é assim, considerando que acordos hipotéticos não criam obrigações, qual é a importância da posição ori-ginal? A resposta encontra-se implícita no que já foi dito: sua importância reside no papel das diferentes característi-cas da posição original enquanto artifício de representação. Que as partes estejam simetricamente situadas é uma exigência que decorre de serem entendidas como represen-tantes de cidadãos livres e iguais que devem alcançar um acordo sob condições que são equitativas. Além disso, um de nossos juízos ponderados, estou supondo, é o seguinte: o fato de ocuparmos dada posição social não é uma boa ra-zão para propor ou esperar que outros aceitem uma con-cepção de justiça que favoreça os que se encontram nessa mesma posição. Da mesma forma, o fato de professarmos determinada doutrina religiosa, filosófica ou moral abran-gente, com a concepção do bem a ela associada, não é uma boa razão para propor ou para esperar que outros aceitem uma concepção de justiça que favoreça as pessoas que são adeptas dessa mesma doutrina. Para modelar essa convic-ção na posiconvic-ção original, não se permite às partes que co-nheçam a posição social daqueles a quem representam, ou a doutrina abrangente específica da pessoa que cada uma delas representa27. A mesma ideia é aplicada às informações

sobre raça e grupo étnico, gênero e diferentes talentos

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turais, tais como força física e inteligência, tudo isso dentro de um leque normal de variação. Expressamos essas restri-ções à informação de maneira figurada ao dizer que as par-tes se encontram por trás de um véu de ignorância. Assim, a posição original é apenas um artifício de representação: ela se presta a descrever as partes, cada uma das quais é responsável pelos interesses essenciais de um cidadão livre e igual, situadas de forma equitativa e devendo alcançar um acordo, sujeitas a condições que limitam de modo apropria-do o que podem apresentar como boas razões28.

formulado no início. Estamos em busca de uma concepção política de justiça para uma sociedade democrática entendida como um sistema equitativo de cooperação entre cidadãos livres e iguais que, em sua condição de autonomia política (II, § 6), aceitam de modo voluntário os princípios de justiça publica-mente reconhecidos que especificam os termos equitativos de cooperação. No entanto, a sociedade em questão é uma sociedade na qual há uma diversida-de diversida-de doutrinas abrangentes, todas perfeitamente razoáveis. Este é o fato do pluralismo razoável, em contraposição ao fato do pluralismo como tal (§ 6.2 e II, § 3). Ora, se todos os cidadãos devem endossar livremente a concepção po-lítica de justiça, esta concepção deve ter condições de conquistar o apoio dos cidadãos que professam doutrinas que, mesmo razoáveis, são distintas e con-flitantes, e, neste caso, temos um consenso sobreposto de doutrinas razoáveis. Isto sugere que deixemos de lado a forma como as doutrinas abrangentes das pessoas se relacionam com o conteúdo da concepção política de justiça e que consideremos esse conteúdo como resultante de várias ideias fundamentais retiradas da cultura pública política de uma sociedade democrática. Modela-mos isso na posição original colocando as doutrinas abrangentes das pessoas por trás de um véu de ignorância. Isto nos possibilita especificar uma concep-ção política de justiça que pode constituir o objeto de um consenso sobrepos-to e, desse modo, servir de base pública de justificação numa sociedade ca-racterizada pelo fato do pluralismo razoável. Nada disso põe em questão a in-terpretação de uma concepção política de justiça entendida como uma visão que se sustenta por si própria (§§ 1.4 e 2.2), mas de fato significa que, ao for-mular a argumentação a favor de um véu de ignorância espesso, invocamos o fato do pluralismo razoável e a ideia de um consenso sobreposto de doutrinas abrangentes razoáveis. Sou grato a Wilfried Hinsch por ter percebido a neces-sidade de discutir explicitamente essa questão. Aqui estou seguindo a ideia geral de seu elucidativo paper (ainda não publicado) sobre esse tópico, “The Veil of Ignorance and the Idea of an Overlapping Consensus”, Bad Homburg, julho de 1992.

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4. Ambas as dificuldades mencionadas, portanto, po-dem ser superadas quando entenpo-demos a posição original como um artifício de representação. Ela representa o que consideramos – aqui e agora – condições equitativas sob as quais os representantes de cidadãos livres e iguais devem especificar termos da cooperação social que se apliquem ao caso da estrutura básica da sociedade. E como a posição ori-ginal também modela, para esse caso, o que consideramos como restrições aceitáveis às razões de que as partes podem se valer para favorecer uma concepção política em detri-mento de outra, a concepção de justiça que as partes esco-lheriam identifica a concepção de justiça que consideramos, aqui e agora, equitativa e justificada pelas melhores razões. A ideia é utilizar a posição original para representar tanto a liberdade e a igualdade como as restrições às razões apresentadas, para se tornar inteiramente evidente que es-pécie de acordo seria alcançado pelas partes na condição de representantes dos cidadãos. Mesmo que existam, como sem dúvida existem, razões a favor e contra cada uma das con-cepções de justiça a serem consideradas, ainda assim pode haver um equilíbrio global de razões que favoreça clara-mente uma concepção, ao ser comparada às demais. Como um artifício de representação que é, a ideia da posição ori-ginal serve como um meio de reflexão e autoesclarecimento públicos. Ela nos ajuda a elaborar o que pensamos agora, desde que sejamos capazes de ter uma visão clara e ordena-da do que a justiça requer quando a socieordena-dade é concebiordena-da como um empreendimento cooperativo entre cidadãos li-vres e iguais, de uma geração às seguintes. A posição

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nal serve como uma ideia mediadora graças à qual nos-sos juízos ponderados, em todos os níveis de generalidade, quer se refiram a condições equitativas para situar as par-tes, quer a restrições razoáveis a razões, princípios e preceitos fundamentais, ou a julgamentos sobre instituições e ações es-pecíficas, podem ser conectados entre si. Isso nos possibilita estabelecer uma coerência maior entre todos os nossos julga-mentos e, com esta autocompreensão mais profunda, pode-mos chegar a um acordo mais amplo uns com os outros.

5. Introduzimos uma ideia como a da posição original porque não parece haver forma melhor de elaborar uma concepção política de justiça para a estrutura básica a par-tir da ideia fundamental de sociedade como um sistema permanente e equitativo de cooperação entre cidadãos con-siderados livres e iguais. Isto parece particularmente evi-dente quando concebemos a sociedade como algo que se estende por gerações e que herda sua cultura pública e as instituições políticas e sociais (juntamente com seu capital físico e estoque de recursos naturais) daqueles que vieram antes. No entanto, o emprego dessa ideia apresenta certos riscos. Como um artifício de representação que é, seu nível de abstração provoca mal-entendidos. Em particular, a des-crição das partes pode passar a impressão de pressupor uma concepção metafísica específica de pessoa, por exem-plo, a ideia de que a natureza essencial das pessoas é inde-pendente e anterior a seus atributos contingentes, nisso se incluindo seus fins últimos e vínculos e até mesmo sua concepção do bem e seu caráter como um todo29.

Acredito que essa suposição é um equívoco causado por não se ver a posição original como um artifício de

re-29. Ver o importante trabalho de Michael Sandel, Liberalism and the

Li-mits of Justice (Cambridge: Cambridge University Press, 1982). Essa concepção

metafísica de pessoa é atribuída à Teoria na Introdução e criticada de vários pontos de vista na maior parte do livro. Acredito que a resposta que se en-contra no capítulo 4 da obra de Will Kymlicka, Liberalism, Community, and

Cul-ture (Oxford: Clarendon Press, 1989), é como um todo satisfatória, a não ser

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compatibi-presentação. O véu de ignorância, para mencionar uma ca-racterística importante dessa posição, não tem nenhuma im-plicação metafísica a respeito da natureza do eu; essa ideia não tem a implicação de que o eu é ontologicamente ante-rior aos fatos sobre as pessoas que as partes são impedidas de levar em conta. Podemos, por assim dizer, entrar nessa posição a qualquer momento simplesmente argumentando a favor de princípios de justiça em consonância com as res-trições à informação que foram especificadas. Quando, des-sa forma, simulamos estar na posição original, a argumen-tação que apresentamos não nos compromete com uma doutrina metafísica específica sobre a natureza do eu, as-sim como o fato de fazermos um papel em uma peça de teatro, digamos o de Macbeth ou o de Lady Macbeth, não nos leva a pensar que realmente somos um rei ou uma rai-nha envolvidos em uma luta desesperada por poder polí-tico. O mesmo se aplica à representação de um papel em termos gerais. Devemos ter em mente que estamos ten-tando mostrar como a ideia de sociedade, entendida como um sistema equitativo de cooperação social, pode ser de-senvolvida para identificar princípios que especifiquem os direitos e liberdades fundamentais e as formas de igualda-de que são mais apropriadas àqueles que cooperam, uma vez que sejam concebidos como cidadãos e como pessoas livres e iguais.

6. Tendo examinado a ideia da posição original, acres-cento mais um comentário a fim de evitar mal-entendidos. É importante distinguir três pontos de vista: o das partes na posição original, o dos cidadãos em uma sociedade bem--ordenada e, finalmente, o nosso – o seu e o meu, que es-tamos formulando a ideia de justiça como equidade e exa-minando-a como uma concepção política de justiça.

Os dois primeiros pontos de vista fazem parte da con-cepção da justiça como equidade e são especificados por

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referência a suas ideias fundamentais. Mas se as concep-ções de uma sociedade bem-ordenada e dos cidadãos como pessoas livres e iguais podem muito bem ser realizadas em nosso mundo social, as partes, entendidas como represen-tantes racionais que especificam os termos equitativos da cooperação social ao alcançar um acordo sobre princípios de justiça, são simplesmente partes da posição original. Esta posição é estabelecida por você e por mim para desenvol-ver a concepção da justiça como equidade, de modo que a natureza das partes cabe somente a nós: elas são apenas as criaturas artificiais que habitam nosso dispositivo de repre-sentação. A justiça como equidade é muito mal-entendida quando as deliberações das partes e as motivações que lhes atribuímos são confundidas com uma interpretação da psi-cologia moral, quer de pessoas reais, quer de cidadãos de uma sociedade bem-ordenada30. A autonomia racional (II,

§ 5) não deve ser confundida com a autonomia plena (II, § 6). Esta última é um ideal político e um componente do ideal mais abrangente de sociedade bem-ordenada. A autono-mia racional em si não é de modo algum um ideal, e sim uma forma de modelar a ideia do racional (em contraposi-ção ao razoável) na posicontraposi-ção original.

O terceiro ponto de vista – o seu e o meu – é aquele a partir do qual a justiça como equidade, bem como qualquer outra concepção política, deve ser avaliada. Aqui o teste é o do equilíbrio reflexivo: trata-se de saber em que medida a visão como um todo articula nossas convicções ponderadas mais firmes acerca da justiça política, em todos os níveis de generalidade, depois de cuidadosa ponderação e depois de feitos todos os ajustes e revisões que se mostraram neces-sários. Uma concepção de justiça que satisfaça esse critério é, tanto quanto podemos atestar agora, a mais razoável para nós.

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§ 5. A concepção política de pessoa

1. Observei antes que a ideia da posição original e a descrição das partes podem nos levar a supor que se pres-supõe uma doutrina metafísica de pessoa. Embora eu tenha dito que essa interpretação é equivocada, não basta sim-plesmente repudiar a crença em doutrinas metafísicas, pois, a despeito de nossas próprias intenções, mesmo assim elas podem se fazer presentes. Só é possível refutar afirmações dessa natureza discutindo-as de forma minuciosa e de-monstrando que são destituídas de fundamento. Não pos-so fazer ispos-so aqui31.

No entanto, posso esboçar uma interpretação da con-cepção política de pessoa à qual é preciso recorrer para ela-borar a posição original (§ 3.3). Para entender o que signi-fica descrever uma concepção de pessoa como política, con-sidere-se de que forma os cidadãos são representados na-quela posição como pessoas livres. A representação de sua

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liberdade parece ser uma das fontes da ideia de que se está pressupondo uma doutrina metafísica. Os cidadãos são concebidos como pessoas que se veem como livres em três aspectos, por isso examino a seguir cada um deles e mos-tro em que sentido a concepção de pessoa é política.

2. Em primeiro lugar, os cidadãos são livres no sentido de conceberem a si próprios e aos outros como indivíduos que possuem a faculdade moral de ter uma concepção do bem. Como parte de sua concepção política, isso não signi-fica que se considerem inelutavelmente vinculados ao es-forço de colocar em prática a concepção específica do bem que professam em um dado momento. Ao contrário, na condição de cidadãos, entende-se que são capazes de rever e alterar essa concepção por motivos razoáveis ou racionais e que podem fazê-lo se assim o desejarem. Como pessoas livres, os cidadãos reivindicam o direito de considerar sua própria pessoa independente de – e não identificada com – qualquer concepção específica desse tipo e do sistema de fins últimos a ela associado. Dada a faculdade moral que pessoas livres têm de formular, revisar e de racionalmente se empenhar na realização de uma concepção do bem, a identidade pública delas não é alterada por mudanças que possam ocorrer ao longo do tempo na concepção específi-ca que afirmam.

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reconhecidas de justiça são condicionados por filiação reli-giosa e classe social. Tal sociedade tem uma concepção po-lítica de pessoa distinta. Tal sociedade não tem uma con-cepção de cidadania igual, pois esta concon-cepção é insepará-vel daquela de uma sociedade democrática de cidadãos li-vres e iguais.

Há uma segunda forma de identidade que é especifica-da por referência aos fins e compromissos mais profundos dos cidadãos. Vamos nos referir a ela como a identidade moral ou não institucional32. Os cidadãos em geral têm fins

e compromissos políticos e não políticos. Eles afirmam os valores da justiça política e querem vê-los expressos nas instituições políticas e nas políticas públicas. Mas também trabalham em prol de outros valores da vida não pública e em prol dos objetivos das associações das quais são mem-bros. Os cidadãos precisam ajustar e reconciliar esses dois aspectos de sua identidade moral. Em seus assuntos pes-soais ou na vida interna de associações das quais são mem-bros, pode ocorrer de verem seus compromissos e fins últi-mos de um modo muito diferente daquele que resulta da concepção política. É possível que tenham, e muitas vezes de fato têm, afetos, devoções e lealdades dos quais acredi-tam que não podem ou não devem se distanciar e dos quais, na verdade, não conseguem se distanciar para avaliá-los objetivamente. É possível que julguem simplesmente im-pensável se conceberem à parte de certas convicções reli-giosas, filosóficas e morais, ou de certos vínculos e compro-missos duradouros.

Esses dois tipos de compromissos e vínculos – políticos e não políticos – especificam a identidade moral e dão for-ma ao modo de vida de ufor-ma pessoa, àquilo que ela própria julga que está fazendo e tentando realizar no mundo social. Se repentinamente nos víssemos privados deles, nos senti-ríamos perdidos e incapazes de seguir em frente. Na

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dade, poderíamos mesmo supor que não haveria motivo para seguir em frente33. Mas nossas concepções do bem

po-dem mudar, e de fato mudam ao longo do tempo, em geral de modo lento, mas por vezes de forma abrupta. Quando essas mudanças são abruptas, podemos dizer que não so-mos mais a mesma pessoa. Sabeso-mos o que isso significa: referimo-nos a uma mudança profunda e geral em nossos compromissos e fins últimos; referimo-nos a uma identida-de moral (o que inclui nossa iidentida-dentidaidentida-de religiosa) diferen-te. No caminho para Damasco, Saulo de Tarso transforma-se em Paulo, o Apóstolo. No entanto, tal conversão não im-plica nenhuma mudança em nossa identidade pública ou institucional, nem em nossa identidade pessoal, do modo como este conceito é entendido por alguns autores na área da filosofia da mente34. No entanto, em uma sociedade

bem-33. Esse papel dos compromissos é frequentemente enfatizado por Ber-nard Willliams. Ver, por exemplo, “Persons, Character and Morality”, Moral

Luck (Cambridge: Cambridge University Press, 1981), pp. 10-4.

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bá--ordenada que se apoie em um consenso sobreposto, os com-promissos e valores políticos (mais gerais) dos cidadãos, na medida em que se integram à sua identidade não institu-cional ou moral, são aproximadamente os mesmos.

3. Um segundo aspecto em relação ao qual os cidadãos se veem como livres é o fato de que se consideram fontes autoautenticativas de demandas válidas. Isto é, conside-ram-se no direito de fazer demandas a suas instituições de modo que promovam suas concepções do bem (desde que estas concepções se encontrem dentro do leque permitido pela concepção pública de justiça). Os cidadãos julgam que essas reivindicações têm um peso próprio, que não deriva dos deveres e das obrigações especificados por uma con-cepção política de justiça, por exemplo, os deveres e as obri-gações que têm para com a sociedade. As demandas que os cidadãos veem como fundamentadas em deveres e obriga-ções, que têm por base a concepção do bem e a doutrina moral que professam em suas vidas, também devem contar, para nossos propósitos, como autoautenticativas. Isso é ra-zoável quando se trata de uma concepção política de justi-ça para uma democracia constitucional, pois, desde que as concepções do bem e as doutrinas morais abraçadas pelos cidadãos sejam compatíveis com a concepção pública de jus-tiça, aqueles deveres e obrigações autenticam-se a si pró-prios de um ponto de vista político.

Ao descrever o modo como os cidadãos se percebem como livres, estamos descrevendo o modo como concebem

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a si próprios, em uma sociedade democrática, quando ques-tões de justiça política se apresentam. Este aspecto perten-ce a uma conperten-cepção específica de justiça política, o que fica claro fazendo-se o contraste com uma concepção política distinta, que não entende as pessoas como fontes autoau-tenticativas de demandas válidas. Nesse caso, as demandas que elas apresentam não têm nenhum peso, exceto na me-dida em que possam ser derivadas dos deveres e obriga-ções devidos à sociedade, ou dos papéis que lhe são atri-buídos em uma hierarquia social justificada por valores re-ligiosos ou aristocráticos.

Para se valer de um exemplo extremo: os escravos são seres humanos que não são considerados fontes de reivin-dicações, nem mesmo de reivindicações baseadas em de-veres e obrigações sociais, pois não se considera que sejam capazes de ter deveres ou obrigações. As leis que proíbem os maus-tratos a escravos não se baseiam em reivindica-ções deles próprios, mas em demandas que são provenien-tes dos interesses de seus senhores ou dos interesses gerais da sociedade, que não incluem os interesses dos escravos. Estes são, por assim dizer, socialmente mortos: simples-mente não são reconhecidos como pessoas35. Esse

contras-te com a escravidão deixa claro por que conceber os cida-dãos como pessoas livres em virtude de suas faculdades morais é inseparável de uma concepção específica de justi-ça política.

4. O terceiro aspecto segundo o qual os cidadãos são vistos como livres é que são considerados capazes de as-sumir a responsabilidade por seus próprios fins, e consi-derá-los desse modo importa para avaliar as diferentes de-mandas que apresentam36. Formulando a ideia de modo

muito genérico, dadas instituições de fundo justas, e uma

35. Sobre a ideia de morte social, ver Orlando Patterson, Slavery and

So-cial Death (Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1982), em espeSo-cial pp.

5-9, 38-45, 337.

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vez que se assegure a cada pessoa um quinhão equitativo de bens primários (da forma requerida pelos princípios de justiça), pode-se considerar os cidadãos como capazes de ajustar seus objetivos e suas aspirações àquilo que é razoá-vel esperar que possam fazer. Ademais, são vistos como ca-pazes de restringir suas demandas em matéria de justiça àquilo que os princípios de justiça permitem.

Os cidadãos devem, então, reconhecer que o peso de suas demandas não é determinado pela força e intensida-de psicológica intensida-de suas aspirações e seus intensida-desejos (em con-traposição às necessidades que têm na condição de cida-dãos), mesmo quando suas aspirações e desejos são racio-nais de seu ponto de vista. O procedimento é o mesmo de antes: partimos da ideia fundamental de sociedade enten-dida como um sistema equitativo de cooperação. Quando essa ideia é desenvolvida de modo que especifique uma concepção política de justiça, a implicação é que, em vir-tude de se conceber os cidadãos como capazes de partici-par da cooperação social ao longo de toda a vida, entende--se que também são capazes de assumir a responsabilidade por seus fins. Isso significa considerá-los capazes de ajus-tar seus fins, de modo que seja possível empenhar-se em realizá-los, e para isso contam com os meios que podem ra-zoavelmente esperar obter em troca daquilo com que podem razoavelmente esperar contribuir. A ideia de responsabi-lidade pelos próprios fins está implícita na cultura públi-ca polítipúbli-ca e é discernível em suas prátipúbli-cas. Uma concep-ção política de pessoa articula essa ideia e a insere em uma ideia de sociedade entendida como um sistema equitativo de cooperação.

5. Para resumir o que foi dito, recapitulo os três pontos principais das duas seções precedentes.

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principais da ideia de cooperação, a ideia de termos equita-tivos de cooperação e a ideia de benefício racional ou bem de cada participante.

Segundo, nesta conferência (§ 5), examinamos três as-pectos segundo os quais as pessoas são consideradas livres e observamos que, na cultura pública política de um regime democrático constitucional, os cidadãos concebem a si mesmos como livres nesses aspectos.

Terceiro, como a questão acerca de qual é a concepção de justiça política mais apropriada para realizar os valores da liberdade e da igualdade nas instituições básicas é de longa data profundamente controversa dentro da própria tradição na qual os cidadãos são concebidos como livres e iguais, o objetivo da justiça como equidade é solucioná-la tomando como ponto de partida a ideia de sociedade como um sistema equitativo de cooperação, em que os termos equitativos de cooperação são aqueles acordados pelos pró-prios cidadãos quando concebidos dessa forma. Em § 4, vi-mos por que essa abordagem, uma vez que a estrutura bá-sica da sociedade é considerada o objeto primário da justi-ça, leva à ideia da posição original entendida como um ar-tifício de representação.

§ 6. A ideia de sociedade bem-ordenada

1. Afirmei que, para a justiça como equidade, a ideia fundamental de sociedade como um sistema equitativo de cooperação ao longo de gerações desenvolve-se em con-junção com duas outras ideias a ela associadas: a ideia de cidadãos concebidos como pessoas livres e iguais e a ideia de uma sociedade bem-ordenada, no sentido de uma so-ciedade que é de modo efetivo regulada por uma concep-ção política de justiça. Após ter examinado a primeira des-sas ideias associadas, volto-me agora para a segunda.

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uma concepção de justiça publicamente reconhecida) é que se trata de uma sociedade na qual cada um aceita, e sabe que todos os demais também aceitam, precisamente os mesmos princípios de justiça; a segunda (que está im-plícita na ideia de regulação efetiva) é que se reconhece publicamente, e nisso se acredita com boas razões, que a estrutura básica dessa sociedade – isto é, suas principais instituições políticas e sociais e a maneira como se articu-lam em um sistema único de cooperação – implementa aqueles princípios; e a terceira, que seus cidadãos têm um senso de justiça que normalmente é efetivo e, em virtude disso, em geral agem em conformidade com as instituições básicas da sociedade, que consideram justas. Em uma so-ciedade como essa, a concepção publicamente reconheci-da de justiça estabelece um ponto de vista comum, a par-tir do qual é possível arbitrar as demandas que os cidadãos fazem à sociedade.

Trata-se de um conceito altamente idealizado. No en-tanto, qualquer concepção de justiça que não for capaz de ordenar de forma apropriada uma democracia constitucio-nal é inadequada como uma concepção democrática. Isso pode ocorrer em virtude de uma razão bem conhecida: a de que o conteúdo de tal concepção, ao se tornar publicamen-te reconhecido, leva-a a derrotar os próprios propósitos. Isso também pode ocorrer porque – adotando uma distin-ção de Cohen – uma sociedade democrática caracteriza-se pelo fato do pluralismo razoável37. Assim, uma concepção

de justiça pode fracassar porque não consegue conquistar o apoio de cidadãos que professam doutrinas abrangentes razoáveis ou, como me expressarei com frequência, porque

Referências

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