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MARCAS DE ORALIDADE EM TEXTOS NA MPB: ERRO OU NÃO ERRO?

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Academic year: 2021

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ERRO OU NÃO ERRO?

Gilvan da Costa Santana

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RESUMO

As diferentes variedades linguísticas são elementos integradores dos processos comunicativos e da compreensão da língua portuguesa padrão e não padrão como língua materna geradora de significação e integradora da organização do mundo e da própria identidade. Portanto, lançamos mão, neste estudo, de conceitos relevantes enfatizados incansavelmente pela Sociolinguística, relacionando-os com músicas do cancioneiro brasileiro como manifestações artísticas da língua verbal e utilizando-as como instrumento para aquisição e construção de conhecimentos que se contrapõem a preconceitos de ordem social e linguística. Destarte, compete à escola orientar o aluno a fazer uso das diferentes formas de emprego da língua portuguesa, reconhecendo e comparando os efeitos de sentido e emprego decorrentes da escolha das diferentes variedades linguísticas em sua legítima adequação. Em outras palavras, é preciso reconhecer e adequar os usos da norma-padrão/culta e da norma não padrão/popular da língua portuguesa nas diferentes esferas de comunicação, considerando situações específicas de uso diacrônico, diatópico e diastrático.

Palavras chave: Ensino. Variedades Linguísticas. Sociolinguística. MPB.

ABSTRACT

The different language varieties are integrating elements of communicative processes and understanding of standard Portuguese and non-standard as generating native language of meaning and integrator of the world organization and identity. Therefore, we used in this study relevant concepts emphasized tirelessly for Sociolinguistics, relating them to music of the Brazilian songbook as artistic manifestations of verbal language and using them as a tool for acquisition and construction of knowledge that oppose the social prejudices and linguistics. Thus, it is for the school to guide students to make use of different forms of use of the Portuguese language, recognizing and comparing the effects of meaning and employment of choosing the different language varieties in their legitimate suitability. In other words, we must recognize and adapt standard standard uses / cultured and standard non-standard / popular Portuguese language in different spheres of communication, taking into account specific situations of diachronic use, diatópico and diastrá saws.

Keywords:

Education. Linguistic varieties. Sociolinguistics. MPB.

1Doutorando em Língua e Cultura pela UFBA; Mestre em Letras/profletras-Itabaiana pela UFS e Mestre em Ciências da Educação pela Lusófona. Professor do quadro efetivo do Instituto Federal de Sergipe – IFS desde 1994.

gilvancsantana@yahoo.com.br

Considerações iniciais

Evidencia-se hoje a importância de um trabalho efetivo com a língua falada na escola, por meio de atividades diversas, pois a prática metalinguística de ensino de Português, em detrimento da prática epilinguística, tem sido um dos maiores entraves à aprendizagem da língua, o que resulta em desastrosos resultados. Nessa ótica inovadora, evita-se o excesso de valorização da língua escrita culta. Se não for assim, corre-se o risco de os professores continuarem falando sobre o funcionamento da língua, sem trabalhar efetivamente com o uso dela. Indubitavelmente, o que tem marcado a prática dos professores em sala de aula é uma atitude formalista que toma a Língua como objeto de estudo focalizado na metalinguagem. Nesse foco, aprende- se sobre a língua, seu funcionamento, seu sistema de regras. Por outro lado, fica esquecida a abordagem epilinguística, o uso da língua no contexto social, na própria prática da linguagem do educando:

As atividades epilinguísticas são aquelas que suspendem o desenvolvimento do tópico discursivo (ou do tema ou do assunto), para, no curso da interação comunicativa, tratar dos próprios recursos linguísticos que estão sendo utilizados, de aspectos da interação... A maior parte do tempo das aulas é gasta no aprendizado e utilização dessa metalinguagem, que não avança pois, ano após ano, se insiste na repetição dos mesmos tópicos gramaticais: classificação de palavras e sua flexão, análise sintática do período simples e composto a que se acrescentam ainda noções de processos de formação de palavras e regras de regência, bem como regras de acentuação e pontuação.

(TRAVAGLIA, 2002, p. 34 e 101.

É preciso, assim, facultar ao aluno situações concretas de integração,

entendendo e produzindo enunciados adequados aos diversos contextos. Para isso, é

imprescindível valorizar e respeitar os registros orais, regionais, coloquiais, não padrão,

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como variedades intrinsecamente pertencentes à Língua Portuguesa Brasileira, tanto quanto a chamada variedade de norma padrão. Daí a necessidade cada vez mais premente de combate a todo e qualquer preconceito linguístico. O que a Sociolinguística propõe é, então, um trabalho integrado à prática diária, à vivência, à realidade concreta do aluno, a partir das necessidades de comunicação. Não sendo assim, o ofício de ensinar a língua portuguesa se limita a um código de leis, a uma doutrina meramente sistematizante. Em suma, o ensino da língua portuguesa deve pressupor a análise de recursos expressivos presentes na oralidade relacionada com cada contexto ociolinguístico, pois cada indivíduo faz parte de um grupo social e usa a língua em situações variadas para atingir diferentes objetivos.

Português padrão (pp) e português não padrão (pnp): dicotomia e preconceito Segundo Travaglia (2002), as variações dialetais são fundamentalmente marcadas por aspectos geográficos, sociais, etários, sexuais etc. Surgem desses aspectos diferenças no uso da língua portuguesa no que tange sobretudo aos planos fonético e lexical. Para o autor, cada grupo tem sua identidade através de sua linguagem. A Língua Falada é vista na abordagem de Travaglia como variação de registro (modo), marcada por recursos de entonação, timbre, ritmo, sotaque etc. Por sua vez, Neves (2008) questiona o fato de se alegar ser o PP legitimado como a língua dos grandes escritores, fato que ignora o processo evolutivo das línguas em sua variabilidade. Para tanto, a autora cita casos curiosos de escritores há muito tempo canônicos, como Padre Antônio Vieira e Euclides da Cunha, que destoaram dos ditames da gramática normativa em termos de regência verbal, por exemplo.

Consoante Mattos e Silva (2006), o PP é pautado num modelo sociocultural urbano a partir de uma elite intelectual de um determinado momento, a despeito de toda uma heterogeneidade de comunidades linguísticas estigmatizadas. Esta

autora esclarece que variações fônicas regionais não marcam níveis sociais nem escolares nem etários, mas, mesmo assim, sofrem preconceito em relação ao português urbano do Sul-Sudeste em detrimento do Norte-Nordeste e do Centro-Oeste:

...as realizações variadas de pretônicas opõem, grosso modo, Norte e Sul do Brasil; marcam paulistas por oposição a cariocas as sibilantes e estes com realizações chiantes; opõem certas áreas, sobretudo do Sul, em relação ao resto do Brasil, a inexistência da distinção entre duas realizações do r intervocálico, um anterior outro posterior e assim por diante. (p. 69)

POSSENTI (2003, p. 84) diz que “seria incoerente concordar com formas de ensino que reduzem a língua a uma única variedade, mesmo que se trate da variedade socialmente prestigiada.” Para o autor, não existe erro linguístico, apenas inadequações de linguagem. Já Antunes (2007) é veementemente contra a ideia de normas que estabeleçam o PP como bonito, melhor, puro, lógico etc em detrimento do PNP, estigmatizado como feio, errado, pobre, caipira etc. Bagno (2010) acredita que a sustentação do preconceito em relação ao PNP se dá através da mídia em geral (rádio, jornal, revista, tv, internet) e da própria escola, pois ratificam os estereótipos de língua errada como sendo a de classes economicamente subalternas, a de elementos da periferia e do interior do país, denegrindo e desmerecendo a identidade cultural de cada grupo de falantes. Ressalte-se que essa ideia contra o preconceito linguístico se referenda por meio de toda a corrente sociolinguística aqui nomeada.

Para Bortoni-Ricardo e Machado (2013), é imprescindível reconhecer a

diversidade linguística e combater sua discriminação ligada à desigualdade social tão

injusta. A escola, então, não deveria supervalorizar uma variação dialetal em desprezo

e menosprezo a outra, até porque são desiguais e coexistentes. Em outras palavras,

para o professor cumprir seu papel de facilitador de acesso do aluno à chamada

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variante que goza de prestígio e respaldo social, deverá evitar os rótulos de certo e errado, priorizando e respeitando a contextualização e adequação dos falares diversos.

Ilari e Basso (2007) atestam que historicamente a gramática sempre esteve em sintonia com as classes mais abastadas e dominantes em detrimento do povo simples e humilde. Inclusive, a própria literatura brasileira, somente no Séc. XX, sobretudo através da vertente regionalista, fundiu o popular ao literário de forma sólida e eficaz. Parece absurdo, mas esses estudiosos nos mostram que até figuras exponenciais da vanguarda brasileira, como Mário de Andrade e Manuel Bandeira, fizeram parte de congressos que preconizaram a necessidade de se tomar como modelo unificador de sotaques no teatro a fala do Rio de Janeiro, considerada cidade superior cultural e historicamente, chegando ao ponto de Mário de Andrade afirmar que os sotaques misturados nas apresentações de atores de diversas procedências comprometiam a unidade fonética, o equilíbrio e a compreensão do espectador.

Nessa perspectiva, Bagno (2009) desconstrói uma série de mitos que circundam as questões linguísticas e pretendem escamotear a realidade de uma visão infundadamente preconceituosa ante a norma não padrão. Destacamos aqui o mito de que o domínio da norma padrão é um instrumento de ascensão em nossa sociedade classista, servindo de via ao aluno do interior, da periferia, das classes sociais inferiores para o acesso a uma outra realidade socioeconomicamente superior e de prestígio cultural. Essa tese cai por terra ao se verificar que os professores brasileiros, supostamente detentores da norma culta/padrão preceituada pela gramática, estão bem aquém economicamente das camadas superiores na pirâmide social.

Ademais, com a democratização do ensino superior, hoje já tão acessível às camadas populares, graças, sobretudo, às políticas afirmativas das últimas décadas e à multiplicação de vagas em instituições públicas e privadas, por meio de políticas educacionais jamais vistas, não se constata que o domínio do PP esteja diretamente

ligado a uma ascensão vertiginosa social, haja vista, inclusive, a baixa remuneração da maioria das carreiras de nível superior assim como a alta demanda para baixa oferta de vagas para profissionais dessas carreiras.

Em contrapartida, analfabetos e semianalfabetos não raramente ascendem a camadas abastadas, que gozam de alto poder aquisitivo (caso de muitos fazendeiros, empresários, políticos, esportistas, cantores, atores, apresentadores de TV e outros profissionais bem sucedidos em sua respectiva carreira).

O que estou tentando dizer é que o domínio da norma culta de nada vai adiantar a uma pessoa que não tenha todos os dentes, que não tenha casa decente para morar, água encanada, luz elétrica e rede de esgoto. O domínio da norma culta de nada vai servir a uma pessoa que não tenha acesso às tecnologias modernas, aos avanços da medicina, aos empregos bem remunerados, à participação ativa e consciente nas decisões políticas que afetam sua vida e a de seus concidadãos. O domínio da norma culta de nada vai adiantar a uma pessoa que não tenha seus direitos de cidadão reconhecidos plenamente, a uma pessoa que viva numa zona rural onde um punhado de senhores feudais controlam extensões gigantescas de terra fértil, enquanto milhões de famílias de lavradores sem-terra não têm o que comer nem onde trabalhar (BAGNO, 2009, p. 90).

Uma perspectiva sociolinguística no ensino de língua portuguesa

Não é recente a discussão sobre a urgência de inserção de uma visão sociolinguística no trabalho com a língua portuguesa. Os Parâmetros Curriculares Nacionais já sinalizavam, ao menos, uma proposta de capacitar o educando para uma postura eficiente e adequada ante as múltiplas linguagens de forma científica e cidadã.

Com base nos PCN (1999), o ensino de língua portuguesa em nível médio se enquadra

no que se chama de Linguagem, Códigos e suas Tecnologias. Isso implica um trabalho

de desenvolvimento de habilidades e socialização. Para esses parâmetros educacionais,

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o ensino da língua materna se insere, portanto, em uma área básica para a formação do educando em sua plenitude. Essa ótica considera a Língua como instrumento construtivo de significação e interação social.

Não obstante o que rezam os PCN, a atual prática do ensino de Português nas escolas do Brasil continua presa aos moldes tradicionais. Trata-se de uma situação oposta a tudo que foi listado anteriormente como sendo pressupostos do trabalho com os chamados Códigos e Linguagens. Essa crítica ao tradicionalismo no ensino de língua portuguesa está bem presente em Rocha (2002), Bagno (2000) e Ilari (1997).

Tais autores defendem o ensino da língua materna através de seu uso efetivo e criticam a excessiva metalinguagem, a análise da língua ao invés de a língua em si. Seria importante, pois, conceber a linguagem não como uma atividade constitutiva que se realiza na interação verbal. Trata-se de ver a comunicação no exercício humano histórico e social. A língua é entendida nessa abordagem como o resultado de um processo coletivo que se realiza nas interações verbais. Por conseguinte, temos um sistema linguístico e comunicativo aberto a recursos expressivos, em constante modificação. Faz-se mister, então, entender o ensino da língua portuguesa como uma realidade heterogênea multifacetada, mutável, ou seja, é preciso respeitar e valorizar o rico conjunto de variedades linguísticas que se diferenciam pelo menor ou maior grau de prestígio social dado a elas.

Esperar-se-ia que os conteúdos a serem ensinados nas escolas incluíssem explicitamente os elementos típicos da expressão falada. Por fim, caberia a expectativa de que o ensino tirasse o maior partido possível da ligação entre fala e situação de fala, proporcionando "exercícios autênticos". De fato, muito pouco dessa reforma se realizou. O professor de Língua Portuguesa continua investindo a maior parte de seus esforços no ensino da terminologia gramatical; continua enorme o espaço reservado aos exercícios escritos. “A escola continua ignorando as variedades regionais e sociais não-standard; aprofundando desse modo os preconceitos existentes; os usos da língua

na escola continuam em grande medida artificiais, como se o aprendizado fosse para a escola, não para a vida “(ILARI, 1997, p. 102).

Segundo os autores já citados, assim como Possenti (2003), Soares (2002), Geraldi (2002) e Perini (1996), o ensino de língua portuguesa deve se dar através de diferentes níveis de atividades em busca de uma maior produtividade. Para esses estudiosos do assunto, a visão tradicional de trabalho com a língua materna se restringe a denominar, classificar e sistematizar os fatos linguísticos à luz de uma teoria gramatical, em consonância com os livros didáticos. Os autores mencionados acreditam na necessidade de modernização do ensino da língua materna por meio de atividades de uso real da língua que pressupõem o diálogo, a conversa, a interação entre os interlocutores reais. Além disso, são propostas atividades que levem os alunos a operar e a refletir sobre a própria linguagem, comparando textos, expressões e situações com diversas possibilidades apresentadas na mesma língua. É preciso oportunizar o contato com diferentes modos de construção à disposição do falante, pois “uma coisa é saber redigir um texto em língua padrão e outra é saber classificar as orações, distinguir classes de palavras, estabelecer diferenças entre raiz e radical”

(ROCHA, 2002, p.89).

O reconhecimento da heterogeneidade linguística não é definido por Soares

(2002) nem por Bagno (2000) com intuito de simplesmente impor a norma padrão, o

que configura discriminação e autoritarismo. O objetivo seria capacitar indivíduos de

classes desfavorecidas a competir com igualdade de oportunidades em relação a

indivíduos de classes sociais privilegiadas, através do conhecimento da variação

linguística que goza de prestigio na sociedade. Além disso, esse reconhecimento

das diferentes modalidades presentes na Língua propicia respeito por parte das pessoas

mais afortunadas às menos favorecidas socioeconomicamente, pois aprendem que a

norma culta é apenas um dos possíveis registros, dentre os vários, numa mesma

Língua.

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Em síntese, o trabalho profícuo com a língua materna não pode reduzir o ensino à memorização de regras gramaticais e exceções sem utilidade prática. De nada serve, por exemplo, conceituar as classes gramaticais sem conseguir identificá-las na dependência de cada contexto. A gramática que se pretende trabalhar hodiernamente se aplica a um ensino que leve em conta a formação de falantes - redatores - intérpretes, capazes de usar adequadamente a sua língua para se comunicar eficientemente em toda e qualquer situação. O estudo de gramática formal, nesse contexto, deve ser visto como um fim comunicativo e não um fim em si.

Em outras palavras, fica claro que conhecer uma língua é uma coisa e conhecer sua gramática é outra. Que saber uma língua é uma coisa e saber analisá-la é outra. Que saber usar suas regras é uma coisa e saber explicitamente quais são as regras é outra. Que se pode falar e escrever numa língua sem saber nada "sobre" ela, por um lado, e que, por outro lado, é perfeitamente possível saber muito "sobre" uma língua sem saber dizer uma frase nessa língua em situações reais. (POSSENTI, 2003. p. 54)

Como já dito, infelizmente, ainda hoje na escola, há excesso de teoria gramatical repetitiva e descontextualizada, que despreza a realidade dos alunos e não os capacita para o desempenho exitoso da comunicação em suas diversas esferas, muito além de um simples sistema de regras.

Oralidade: português errado?

Para Bagno (2009), o Português Não Padrão (PNP) é rico em fenômenos justificáveis ante explicações científicas; nada ocorre nessa variação por acaso, o que contraria a ideia de erro propalada pela gramática normativa. Assim, na ótica da Sociolinguística, não existe erro de português oral quando se tenha gramaticalidade.

Destarte, importa a possibilidade de compreensão da frase, pois todo falante nativo é competente linguístico, podendo apresentar diferentes usos e variações da língua.

Nesse sentido, Travaglia (2002), Neves (2002) e Batista (1997) consideram o ensino tradicional (ainda tão praticado atualmente) caracterizado pela excessiva valorização da chamada língua de prestigio - culta e escrita (PP). Portanto, é feita urna severa crítica à preocupação exacerbada com descrição gramatical e aplicação ostensiva de exercícios gramaticais metalinguísticos ao invés de epilinguísticos, conforme já reiteradamente aqui frisado.

Fundamentalmente, a crítica reformadora indica que a preocupação com o ensino de determinada teoria gramatical e sua respectiva metalinguagem e a valorização absoluta de uma modalidade linguística no ensino fizeram com que a escola esquecesse, progressivamente, aquilo que é fundamental no exercício da língua: o texto. Insistir na superioridade da norma culta, entendida não como a que se fala, mas sim como a que se quer que se fale, e, em consequência, no seu uso privilegiado ou exclusivo, inclusive na escola, é forma perversa de exclusão.

(BRITTO, 1997, p. 102 e 107)

Nessa mesma perspectiva, Ilari e Basso (2007) afirmam categoricamente que no Brasil a língua preconizada/ditada pelos gramáticos é utópica e antiquada, nem a Literatura nem o Jornalismo a seguem em seu rigor. Assim, o que temos na realidade é um Português Padrão (culto) e um Português Não Padrão (sub-standard). Caberia à escola, por conseguinte, deixar de considerar errada esta variação e vê-la como fenômeno coletivo altamente estruturado e funcional.

Bortoni-Ricardo (2004) afirma que não se tem de ensinar a oralidade, pois

os educandos são competentes desde cedo nessa modalidade; o papel do professor

se voltaria, então, a fazer reflexões acerca de adequações linguísticas, nunca em termos

de erros linguísticos, no que tange à oralidade. Em síntese, a autora sugere que

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a escola discuta e reflita sobre a lógica sincrônica e diacrônica que justifica e explica as ocorrências da variedade linguística oral estigmatizadas como erros de PNP, deixando claro que os (ditos) desvios fonéticos são suscetíveis a explicações histórico- filológicas e contextuais (metaplasmos e variações), contrariando a ideia tão arraigada de erro e acaso de puristas sem fundamentação científica. Isso posto, “a escola deve dar espaço ao máximo possível de manifestações linguísticas concretizadas no maior número possível de gêneros textuais e de variedades de língua:

rurais, urbanas, orais, escritas, formais, informais, cultas, não-cultas, etc.” (BAGNO, 2000, p.157)

Processos fonológicos (metaplasmos) e outras marcas de oralidade em textos de música popular brasileira – resultados da pesquisa

Asa Branca

Quando "oiei" a terra ardendo /Qual fogueira de São João Eu "preguntei" a Deus do céu, ai, /Por que tamanha judiação Que braseiro, que “fornaia” /Nem um pé de "prantação"

Por “farta” d'água perdi meu gado /Morreu de sede meu alazão

“Inté” mesmo a asa branca /Bateu asas do sertão

"Entonce" eu disse adeus Rosinha /Guarda contigo meu coração Hoje longe “muitas légua” /Numa triste solidão

Espero a chuva cair de novo / “Pra mim vortar pro” meu sertão Quando o verde “dos teus oio" /Se "espaiar" na "prantação"

Eu te asseguro não chore não, viu /Que eu "vortarei", viu, meu coração (Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira -1949)

Sussuarana

Faz “treis sumana qui” na festa de Santana / O Zezé Sussuarana me “chamô pra conversá”

Dessa “bocada nóis saímo” pela estrada / Ninguém “num dizia nada, fumo” andando devagar

A noite veio, o caminho “tava em meio” / Eu tive aquele “arreceio” que alguém nos pudesse ver

Eu quis “dizê”, Sussuarana “vamo” embora / Mas “Virge” Nossa Senhora, “cadê “boca “pra dizê.”

Mais adiante, do mundo já tão distante / “Nóis dois paremo” um instante, “prendemo a suspiração”

“Invregonhado”, ele partiu “pro” meu lado / Ó “Virge dos meus pecado”,” me dê-me”

“absorvição” Foi coisa feita, foi “mandinga, foi maleita” / Que nunca mais

“endereita”, me “botaro”, “é capaz”

Sussuarana, meu coração não me engana / Vai “fazê” “cinco sumana”, “tu não vorta” nunca mais.

(Heckel Tavares e Luiz Peixoto – 1927

Marcas de oralidade e Metaplasmos Justificativa

"oiei" “fornaia” oio - "espaiar" Conversão de LH em I, como ocorre no francês e no espanhol.

"preguntei" Comutação (troca no interior).

“farta” vortar "vortarei", "prantação” “absorvição” Rotacismo de L em R.

“treis “Nóis “ Inserção através de ditongação.

“arreceio” Inserção através de prótese.

“Invregonhado" Inserção do tipo epêntese.

“botaro” Conversão da 3ª pessoa do plural do

pretérito perfeito AM em O,

desnasalizando e eliminando o ditongo.

“Virge” Desnasalização da postônica, como

ocorre em home e abdome.

“Inté” "entonce" "sumana" Arcaísmo regionalista.

“muitas légua” “dos teus oio" “dos meus pecado” Plural sem redundância, assim como ocorre no inglês.

“endereita” Grafia conforme pronúncia, como

acontece com bunito e muleque.

"fumo” “saímo” “vamo” paremo” "prendemo" Perda de –s desinencial de primeira pessoa do plural nos verbos.

"conversá “ “dizê” “fazê” Queda do r final marca de infinitivo,

como ocorre também com substantivos (flô, lugá).

“ me dê-me” Hipercorreção e pleonasmo sintático.

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“num dizia nada" Negação redundante com pronomes indefinidos negativos.

“Pra” “ pro” Contrações de preposição com artigo.

“bocada “o caminho “tava em meio” “a suspiração””,

“mandinga, foi maleita” “é capaz”

Expressões típicas topônimas, como ocorre em cada País, Região, Estado, Cidade.

“cadê” Aglutinação diacrônica de “o que é feito

de”, como ocorre com embora e você.

As canções aqui referidas foram gravadas por uma imensa lista de artistas de diversas regiões do país (e até por artistas do exterior). Asa Branca, por exemplo, apesar de ter como principal intérprete o próprio autor, foi gravada por diversos outros cantores: Maria Bethânia, Fagner, Caetano Veloso, Elis Regina, Tom Zé, Chitãozinho e Xororó e Ney Matogrosso, Badi Assad, Gilberto Gil, Lulu Santos, Hermeto Pascoal, Xangai, Zé Ramalho, Raul Seixas, David Byrne, Dominguinhos e Alcymar Monteiro, Elba Ramalho, Marinês, Maria Eugênia, dentre outros tantos intérpretes. É pertinente, porém, observar três fatos que consideramos de profunda incoerência e contradição:

1. Muitas vezes os intérpretes dessas canções insistem em não respeitar a norma não padrão, “corrigindo-a” em prol da norma padrão;

2. Mais curioso ainda é perceber que o próprio Luiz Gonzaga nos apresenta gravações de Asa Branca rigorosamente no plano do PNP e, em outros momentos, sobretudo gravações mais recentes, converte para o PP parte das expressões regionais populares;

3. Outro aspecto que nos causou estranheza foi o fato de a maioria das fontes que transcrevem as letras das músicas, sobretudo na internet e nos subtítulos de DVD, achar adequado, necessário e conveniente pôr entre aspas ou itálico as expressões consideradas desvios de norma padrão. Se isso já seria, a nosso ver, uma incoerência e uma confirmação de juízo de valor, o que dizer, então, do fato de tais destaques surgirem em certas expressões coloquiais e não aparecerem em outras do mesmo texto na mesma fonte?

Não se trata de a escola recusar-se a trabalhar o português padrão com o aluno, trata-se de estabelecer relações de coexistência e adequação de cada variação a cada contexto, conforme dito anteriormente, considerando os estudos dos mais renomados sociolinguistas, pautando-se na valorização e no respeito mútuo, sem espaço a preconceitos contra uma ou outras modalidades linguísticas. Em sendo assim, o que não se concebe hoje em dia é o emprego de textos ricos de variação não padrão, metaplasmos, marcas de oralidade, como esses aqui em foco, considerados clássicos da música popular “de raiz” para um trabalho reducionista em sala de aula, muitas vezes, limitando-se a converter as expressões destacadas no quadro de ocorrências em português culto/pp, por meio de ‘correção’ gramatical eivada de preconceitos de região e classe social.

Assim como diante de textos de canção popular dos compositores aqui citados, tal atitude e prática ‘pedagógica’ sempre aconteceu ao se tratar de Chico Bento, personagem caipira de Maurício de Sousa, citando apenas mais um exemplo. Longe da visão pretensamente sociolinguística, o que se está fazendo nesse caso é reforçando a ideia de um português certo e hegemônico em contraposição a um português

‘errado’ e de menor (ou sem) valor. “Passar para outra norma, por exemplo, a letra das canções de Luiz Gonzaga ou os poemas de Patativa do Assaré é apagar desses textos a marca de seu enraizamento cultural. É tirar-lhes seu sabor, seu gosto de terra;

sua graça. É desfazê-los, afinal.” (ANTUNES, 2007, p. 108)

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Por conseguinte, é urgente que a escola aja na contramão do que se verifica na mídia, sobretudo na televisão, instrumento ainda preponderante quando se fala de comunicação de massa: personagens de novelas e minisséries são tipos caricaturais que não representam os falares reais caipiras e/ou sertanejos de nenhuma das regiões do país. Chega-se ao absurdo de “treinar” atores do Sudeste-urbano para imitarem personagens do interior do país. Verossímil e respeitosa seria a presença de atores do interior do Brasil, tão rio em talentos, para desempenho de tais personagens, como vez ou outra acontece, excepcionalmente. Ao contrário, todo ator oriundo de regiões vitimadas pelo preconceito, fora do eixo Rio-São Paulo (capitais) só assumirá personagens de destaque se perder completamente seu sotaque e suas marcas de identidade, tais quais o retroflexo do interior do Sudeste e a palatalização do interior do Nordeste.

Considerações finais

Pela natureza deste gênero textual, obviamente, fizemos aqui uma abordagem bem limitada e de recorte acerca dos inúmeros processos fonológicos presentes na língua portuguesa não padrão, pelo próprio perfil estabelecido a um artigo cujo espaço é tão exíguo. Por isso, destacamos apenas os metaplasmos mais evidentes e corriqueiros e o que se convencionou chamar de marcas da oralidade, Português não Padrão (PNP) ou sub-standard e regionalismo. Isso se deve, sobretudo, ao fato de a variação diatópica e a diastrática ainda contarem com parcos estudos que as inventariem e as expliquem de forma elucidativa, como nos deixam evidente Ilari e Basso (2007). Porém, faz-se mister ressaltar que para todos os supostos erros que marcam o PNP há explicações (filo)lógicas, segundo Bagno (2010).

Com a mesma riqueza de ocorrências dos fenômenos fonológicos aqui demonstrados através das duas canções, podemos citar outras obras também clássicas de nosso cancioneiro, tais quais:

1. Cuitelinho - composição do folclore do Brasil Central recolhida e musicada por Paulo Vanzolini e Antônio Xandó; Assum preto - Luiz Gonzaga , Humberto Teixeira - riquíssima em marcas de oralidade nordestina e PNP , além de tantas outras obras de Luiz Gonzaga;

2. Saudosa Maloca e Samba do Arnesto – Adoniiran Barbosa – PNP paulistano;

3. A Marvada Pinga - Ochelsis Laurean – sucesso maior de Inezita Barroso, (marcas múltiplas de variação diastrática).

Em suma, se hoje, por um lado, não há dúvidas sobre o valor artístico-

cultural da obra de autênticos poetas como Luiz Gonzaga, Patativa do Assaré,

Adoniran Barbosa, dentre tantos outros que legitimam o português da realidade

diatópica e diastrática do Brasil, não se deve deixar de repudiar uma visão

discriminadora que, por outro lado, ainda encontra eco nos meios urbanos e elitizados,

mesmo após quase cem anos de Modernismo e da obra de Osvald Andrade, Mário

de Andrade, Manuel Bandeira etc. que já traziam discussões metalinguísticas como

essas. Trata-se de uma identidade sociolinguística que tem de ser respeitada e vista

como algo de valor inestimável para entendimento dos processos sincrônicos e

diacrônicos que se fundem em aspectos geográficos, históricos, sociais e culturais de

uma língua há muito não só portuguesa, mas, sim, luso-brasileira.

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REFERÊNCIAS

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Editora UNESP, 2002.

PERINI, Mário A. Gramática descritiva do português . 2 ed. São Paulo: Editora Ática, 1996.

POSSENTI, Sírio. Por que (não) ensinar gramática na escola. 10 ed. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2003.

ROCHA, Luiz Carlos. Assis. O ensino da língua padrão sem o estudo da gramática. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002.

SOARES, Magda. Linguagem e escola. 17 ed. São Paulo: Editora Ática, 2002.

TRAVAGLIA, Luiz Carlos. Gramática e interação: uma proposta para o ensino de gramática no 1º e 2º graus . 8 ed. São Paulo: Ed. Cortez, 2002.

COMO CITAR ESTE ARTIGO:

SANTANA, Gilvan da Costa. Marcas de oralidade em textos na mpb: erro ou não erro?. Revista Fórum Identidades . Itabaiana: Gepiadde, v. 20, jan./abr., p. 267-284, 2016.

Recebido: 30.09.2016 – Aprovado: 25.10.2016

Referências

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