Matheus Barbosa Emérito
O
fake
fotográfico: simulações paródicas
DOUTORADO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA
Matheus Barbosa Emérito
O
fake
nas mídias: simulações irônicas
DOUTORADO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA
Tese apresentada à Banca Examinadora
da Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo, como exigência parcial para
obtenção do título de Doutor em
Comunicação e Semiótica, área de
concentração: Signo e significações na
mídia, sob orientação do Prof. Doutor
Arlindo Ribeiro Machado Neto.
BANCA EXAMINADORA
_______________________________
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_______________________________
Gostaria de agradecer ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e
Tecnológico – CNPQ, por mais um auxílio concedido.
Agradeço as orientações e incentivo do Professor Doutor Arlindo Machado, a
atenção do professor Eric Landowski, das professoras Ana Cláudia, Cecília Salles,
Jerusa Ferreira e aos demais membros que prontamente, aceitaram o convite para
compor a banca examinadora.
Ofereço, também o meu agradecimento a Raoul Djukanovic, Nelito Fernandes,
Gabrielle Pfeiffer e Gerardo Panichi, por fornecerem informações e material para a
análise do
corpus.
Sou eternamente grato a minha família, especificamente, a minha mãe, por o
amor que me tem, a Francisca com a sua dedicação, a minha irmã pela torcida de
coração e ao meu pai que me ajudou a escrever cada palavra neste texto.
Agradeço ao companheirismo e estímulo de Ana Maria, ao auxílio do "Seu
Miranda", a paciência do Erick Gomes .
"El buen fotógrafo es el que
miente bien la verdad." - Joan
Esta pesquisa traz um estudo sobre
fake
fotográfico, cada dia mais presente na
imprensa e na publicidade mundiais. O termo fake é utilizado por abranger das
produções falsas até aquelas que apenas simulam, sem ter como prioridade a
intenção de enganar. Com o objetivo de comprovar o potencial do
fake
fotográfico,
como elemento de crítica ao suporte midiático em que também está inserido, este
trabalho fez uma distinção entre os conceitos de falsificação e simulação. As
fotografias falsificadas ou produzidas como simulações são consideradas dispositivos
para reflexão, seja a respeito do processo de produção em si ou de sua
representação como elemento da cultura. Por meio da consideração dos estudos de
Hans Tietze e Nelson Goodman, observou-se que a falsificação é uma prática cultural
que data da Idade Média. Esta prática, bastante comum no comportamento social
humano, está diretamente relacionada com os conceitos de identidade, originalidade
e autenticidade, conceitos estes tratados por Umberto Eco,
e que guiaram a
abordagem do falso nesta pesquisa. Todavia, o
fake,
como simulação, utiliza a
paródia para promover a crítica. Por meio dos estudos de Linda Hutcheon, que
conferem à paródia uma característica essencialmente irônica, este trabalho define
um primeiro aspecto do
fake
como simulação paródica irônica. Foi examinado, então,
a título de corpus, um conjunto de modelos paródicos:
Not the Financial Times
,
impresso que critica o tradicional
The Financial Times
através da imitação;
B.C. Byte
Series
, trabalho arqueológico ficcional que relaciona a obra de arte com o artefato; a
revista
Esquire
, que divulga notícias ficcionais, entre outros. Ao selecionar um grupo
tão diversificado, verificou-se que alguns exemplos apresentam, de forma velada, as
pistas responsáveis pela construção do sentido paródico. Assim, uma paródia
torna-se trote e determina a simulação paródica radical. Ainda examinando o diverso
material fotográfico escolhido, observou-se que as manipulações são recorrentes,
como falsificações, simulações paródicas irônicas ou radicais. A fotografia simulativa
paródica radical é destacada através da análise dos trabalhos do fotógrafo Joan
Fontcuberta, que compõe fotos fictícias, como as de animais, vegetais e até
fotobiografias. Percebe-se, assim, a existência de uma reflexão crítica ao processo
criativo e ao caráter de verdade que, tradicionalmente, constitui o
ethos
fotográfico.
Os conceitos e a classificação que apresentamos, juntamente com as análises,
buscam evidenciar a devida relevância do
fake
como paródia irônica reflexiva dos
meios, dando continuidade à dissertação de mestrado
O falso documentário
,
pesquisa previamente realizada por este autor.
This research deals with a study about photographic fake that have increasingly
present in the media and advertising world of the XXI century. The term fake is used
both to define false objects the really try to mistake people, and others which only
simulate and have no intention to deceive as a priority. In order to prove the
potential of the photographic fake as a critical element of media, even being part of
it, so this work made a distinction between the concepts of forgery and simulation.
The fake photographs or the ones produced as simulations are considered as devices
for reflection elements of the production process itself or its representation as an
element of culture. Through consideration of the studies of Hans Tietze and Nelson
Goodman, it was observed that faking is a cultural practice that exists since the
middle age. This practice is quite common in human social behavior, is directly
related to the concepts of identity, originality and authenticity, concepts treated by
Umberto Eco, who guided the approach about the false in this thesis. On the other
side, there is the fake as simulation that uses the parody to promote critics. Through
the studies of Linda Hutcheon, who gives the parody an ironic characteristic, this
work defines one side of the fake as a parodic and ironic simulation. It was
considered then as a corpus, a set of parody models: Not the Financial Times, which
criticizes the traditional printed The Financial Times through imitation; BC Byte
Series, archaeological work that relates the fictional work of art with the artefact;
Esquire magazine, which publishes fiction news, among others. By selecting a diverse
group, we verified that some examples present the hints that are responsible by the
construction of the parodic sense in a concealed mode. So, a parody becomes a
mock and determines the parodic and radical simulation. While examining the diverse
photographic material chosen, it was observed that the manipulations are applied as
forgeries, ironic or radical parodic simulations. The parodic radical simulative
photography is pointed out through the analysis of photographer Joan Fontcuberta’s
works, who designs faked photographs of animals, vegetables and even photo
biographies. It is clear, therefore, the existence of a critical reflection on the creative
process and the nature of truth that, traditionally, is the ethos of photography. The
concepts and the classification presented, together with the analysis, seek to
highlight the importance of proper fake as ironic parody of reflective media,
continuing dissertation The fake documentary, previous research by this author.
Figura 01: A St. Eustage - Albrecht Dürer, 1498. A St. Eustage
,Johann Georg Fischer, 1614...
23
Figura 02:
Knight, Ritter, Tod und Teufel
, Albrecht Dürer, 1513………. 23
Figura 03:
Caritas
- Lucas Cranach, the elder... 24
Figura 04: Albrecht Dürer. 1484/ Falsificação de um suposto
autorretrato de Dürer 10 anos depois, 1494...
29
Figura 05:
Duke Antoine the Good of Lorraine
(Hans Holbein, 1543)
Unknown Young Man at his Office Desk
(Hans Holbein, 1541) e
falsificação sem data………
32
Figura 06:
L.H.O.O.Q.
, Marcel Duchamp, 1919...
35
Figura 07: Recortes das páginas da Revista
Esquire
Julho/2011...
42
Figura 08:
Perspective: Madame Récamier by David
, René
Magritte,1951/
Portrait of Madame Récamier,
de Jacques-Louis
David, 1800...
52
Figura 09: La Meridienne de Jean-François Millet, 1866 / La Siesta,
de Vincent Van Gogh, 1890...
54
Figura 10: Les quatre ages, Daumier, 1862/ Les Buveurs, Van gogh,
1890...
55
Figura 11: Thirty Are Better Than One, Andy Warhol, 1963……...
57
Figura 12:
Le Dance Class,
1874, Edgar Degas
/
Le Dance Lesson,
1999, Sophie Matisse………
64
Figura 13: Sensacionalista, 13 de março de 2012... 72
Figura 14:
Le Monde,
13 de março de 2012...
Figura 15: Logomarcas do site
G17 e G1...
73
76
Figura 16 Folha capa do jornal
Financial Times
... 78
Figura 17: Folha capa do jornal
Not the Financial Times...
80
Figura 18: Anúncio da
E-on,
Not the Financial Times
... 82
Figura 22: B.C. Byte Series no SESC POMPÉIA / SP...
88
Figura 23: Capa da Revista
Esquire, de novembro de 1996...
89
Figura 24: Figura 1 – Campanha Benneton...
101
Figura 25:
Raising the Flag on Iwo Jima,
de Rosenthal, 1945./
Mother
Cat
stops
stops
traffic,
de
Harry
Warnecke,
1927………..
103
Figura 26: Jornal
Meio Norte
de 01 de Junho de 2000...
105
Figura 27: Henry Peach ,
Fading Away,
1958………. 107
Figura 28:
As fadas de Cottingley,
1917...
107
Figura 29:
Self Portrait as a Drowned Man
, 1840………. 108
Figura 30: Partido Comunista , 1920, em Petrograd...
109
Figura 31: A fotografia foi recortada - Partido Comunista , 1920...
110
Figura 32: A fotografia foi recortada - Partido Comunista , 1920...
110
Figura 33: 05 de maio, Moscou, Lenin discursa ...
Figura 34: Lenin e Stalin, no ano de 1992, em Gorky...
111
112
Figura 35: Lenin e Stalin, foto composição de 1938...
112
Figura 36: 27 de janeiro de 1936, Guelia com Stalin em Moscou... 113
Figura 37: Hitler, 1925...
114
Figura 38: Berlim, 1937 - Versões alterada e original...
114
Figura 39: Franqui e Fidel 1962, 1973, em Cuba...
Figura 40: La chine, 1977/La chine, 1981...
115
115
Figura 41: Foto registra cerimônia em memória a Mao. ... 117
Figura 42: Fotografia de Wu Yinxiam, Yan'an, 1942 ...
117
Figura 43: Painel de Dong Wiwen de 1955... 118
Figura 44: Jornal egípcio, setembro de 2010... 119
Figura 45: Foto oficial da captura de Bin Laden cedida pelo Governo
americano...
120
Figura 46: Heaven to hell, 2006, David Lachapelle……….. 123
Figura 50:
Deluge
, David Lachapelle, 2006... 125
Figura 51: Marcelo do Campo 1969-1975, 2003, Dora Longo Bahia... 127
Figura 52: Marcelo do Campo 1969-1975, 2003, Dora Longo Bahia... 128
Figura 53: Marcelo do Campo 1969-1975, 2003, Dora Longo Bahia... 129
Figura 54: Foto da planta
Flor Miguera,
Herbarium,
Fontcuberta... 134
Figura 55: Figura 55: Instalação
Herbarium
no Musée-Château... 134
Figura 56:
Braohypoda frustrata
...
134
Figura 57:
Astrophythu dicotiledoneus
...
Figura 58:
Lavandula angustifólia
...
135
136
Figura 58:
Lavandula angustifolia,
...
Figura 59:
Vampyroteuthis infernalis
, por Louis Bec...
136
138
Figura 60: Prof. Ameisenhaufen,
Fauna,
Fontcuberta e Formiguera... 139
Figura 61: Foto da "radiografia"da
Solenoglypha Polipodida
...
Figura 62:
Solenoglypha Polipodida,
Fontcuberta e Formiguera...
140
141
Figura 63:
Solenoglypha Polipodida,
Fontcuberta e Formiguera...
141
Figura 64: Prof. Ameisenhaufen com o Centaurus Neandertalensis... 141
Figura 65: Descrição e esboço do Thresquelonia Atis...
142
Figura 66: Prof. Ameisenhaufen com sua irmã Elke, 1907...
142
Figura 67: Instalação
Fauna
no Museu-Châteu Annecy... 143
Figura 68:
El gran guardiá del Bé Total
... 145
Figura 69:
Cercophitecus Icarocornu/
"Macacos Alados" da obra "O
maravilhoso mágico de Oz"...
145
Figura 70:
Aerofants
de
Fauna Secreta / Dumbo
, de Walt Disney...
145
Figura 71:
Sirenas,
Joan Fontcuberta... 149
Figura 72: vitrine de
Sirenas,
Digne-les-Bains, 2000...
150
Figura 73:
Sirenas,
Joan Fontcuberta... 150
Figura 74:
Centauro
, Beuvais Lyon... 152
Figura 75: The association for creative zoology, Beuvais Lyon... 153
Figura 78: Sputnik, Joan Fontcuberta ... 155
Figura 79: Sputnik, Joan Fontcuberta ... 155
Figura 80: Sputnik, Joan Fontcuberta ... 156
Figura 81: Sputnik, no Photo Art Festival, Maio, 2000...
157
Figura 82: Sputnik, Joan Fontcuberta ... 157
Figura 83: Miracle &CO, Joan Fontcuberta ,milagre da Criofloração.
159
Figura 84: Miracle &CO, milagre da lacrimação sanguínea...
160
Figura 85: Miracle &CO ,milagre da levitação/ da ubiquidade... 161
Figura 86: Miracle &CO, Joan Fontcuberta...
161
Figura 87:
Deconstructing Osama,
Foncuberta... 163
Figura 88:
Deconstructing Osama,
Foncuberta... 164
Figura 89:
Deconstructing Osama,
Foncuberta... 164
Figura 90: Material de imprensa
Deconstructing Osama.
... 165
INTRODUÇÃO ... 12
1
FAKE:
FALSIFICAÇÕES ... 13
1.1 As falsificações históricas...
13
1.2 Coleção ... 18
1.3 Falsificação
vs
simulações ...
19
1.4 Rumo a classificação ... 26
2.
FAKE:
SIMULAÇÕES ... 33
2.1 A classificação ... 33
2.2 A simulação ... 37
2.2.1 A simulação criativa ... 41
2.2.2 A simulação e os simulacros ... 45
2.2.3 A simulação criativa e a intertextualidade... 48
2.2.4 Simulação de co-presença:
tradução, citação e paródia
... 51
2.3 Simulação paródica ... 58
2.3.1 Simulação paródia irônica... 65
2.3.2 Simulação paródica radical... 82
3 O
FAKE
FOTOGRÁFICO... 93
3.1 A autoridade realista da fotografia ... 93
3.2 A ficção no fotojornalismo... 102
3.3
A intervenção fotográfica nos regimes ditatoriais ...
106
3.4
Simulação fotográfica paródica irônica ...
121
3.5
Simulação fotográfica paródica radical ...
126
3.5.1 Fontcuberta e as simulações...
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS ...
131
166
REFERÊNCIAS ... 168
INTRODUÇÃO
Um dos termos utilizados na língua portuguesa para caracterizar um elemento
como falso é a expressão "forjado". A princípio, essa palavra tinha apenas o
significado de algo que foi produzido na forja, que é o ambiente de trabalho de um
ferreiro, contendo fornalha, bigorna, etc. O objeto forjado era algo fabricado,
produzido, criado. A partir da objetividade da Renascença até o movimento do
realismo, o termo "forjado" era citado para apontar alguma obra que não fosse fiel à
natureza. "Então, antes o que era considerado um ato de valor criativo para
sociedade, se tornou bastardo ou uma produção espúria" (HAYWOOD, 1987).
Portanto, a expressão
falso tem relação estreita com a
fabricação e esta, por sua
vez, com a criação. Pode-se afirmar que a falsificação, como iremos constatar, é uma
atividade presente no desenvolvimento histórico do comportamento e da criação
humana.
[...] se soubermos ser menos dramáticos e mais flexíveis, se nos guiarmos por critérios de funcionalidade e não por dogmas de fé, veremos que a “cultura de contrafação” é mais rica que se supõe [...] (MACHADO, 1993, p. 200)
A palavra
falso é demasiadamente genérica, podendo confundir-se com
abordagens fora do contexto da comunicação como "falso alarme", "degrau em
falso". Dessa forma, este trabalho optou pelo emprego da palavra fake, no exame de
elementos fotográficos fake na mídia.
O termo
fake será utilizado de forma a abranger dois polos de classificação
que se distinguem por meio da intencionalidade: a falsificação, a que nos referimos
até agora, tem o propósito de enganar; as simulações, que procuram promover a
crítica ao processo de criação, ao intertexto ou ainda ao contexto cultural. As
simulações utilizam a paródia, que permite um olhar avaliador sobre um outro texto,
focando a polêmica dos valores projetados pelo criador da obra. O objeto paródico
faz uso da ironia, que, embora seja vista como ferramenta, é, na verdade, um
e põe em desacordo a enunciação e o enunciado, para destacar uma segunda
enunciação. As semelhanças entre o texto-base e o texto parodiado serve de
picadeiro para a ironia destacar as diferenças, de forma que o enunciatário
compreenda e reconheça a estratégia discursiva.
A fotografia, desde os primórdios de sua criação, é uma atividade de caráter
objetivo. As pessoas queriam tirar retratos para poderem imortalizar o momento, ou
seja, a foto oferecia a possibilidade de guardar a memória no papel. Esse valor de
verdadeiro que a fotografia herda tradicionalmente, faz dela uma ferramenta muito
útil para aqueles que fabricam o fato e forjam a notícia diária. Desse modo,
culturalmente, o homem é vítima da fé que deposita em sua própria criação.
Essa perspectiva de crédito demasiado da fotografia é uma das várias
questões apontadas pelo artista Joan Fontcuberta. Por meio da ironia de suas
fotografias simulativas paródicas, tenta polemizar o assunto em exposições que
simulam o processo fotográfico. Como na exibição
Fauna Secreta, que apresenta
fotos inéditas (manipuladas) de animais desconhecidos pela ciência como um
macaco com chifre de unicórnio e asas de coruja. O fotógrafo ironiza a credibilidade
fotográfica, expondo simulações complexas, em cenários científicos que fazem o
conteúdo subverter o formato. Ele utiliza a paródia como crítica irônica ao revelar
fotos de referentes que não existem de forma palpável. O confronto faz-se e as
simulações, assim como as falsificações, estão situadas de forma importante e
necessária na história do homem.
1
FAKE
: FALSIFICAÇÕES
1.1 As falsificações históricas
Como todo adjetivo, a palavra falso tem a função sintática de caracterização
de um substantivo. Esse efeito de retratar um objeto como
falso implica apontá-lo
sinônimos para o falso: contrafação, engodo, fraude. A sua forma mais comum de
caracterizar um objeto como falso é o confronto com outro item considerado original.
Na cidade de Nashville (Tennessee, EUA), foi construída uma réplica em
escala 1/1 do
Partenon de Atenas. A intenção era possibilitar ao visitante a
oportunidade de entender como se dava a arquitetura do edifício grego sem as
alterações naturais do tempo. Estátuas que contornam sua fachada são reproduzidas
com semelhanças em cores e formas assim como foram criadas, séculos atrás. O
prédio de Nashville, por oferecer uma arquitetura sem as avarias do tempo, com
cores fortes, estátuas em bom estado, tenta recriar a exuberância do edifício
ateniense. Surge, então, a questão: o templo de Nashville é falso? Ele exibe uma
arquitetura semelhante ao original quando foi construído, e não como é visto
atualmente em Atenas, sem cores, deteriorado, cercado por ruínas. A experiência do
visitante do Partenon americano é de deslocamento no tempo e espaço. Na verdade,
o sujeito participa de uma simulação que o "leva" à Grécia de mais de dois mil anos
atrás. O Partenon ateniense é reapresentado como terá sido um dia. A experiência é
uma simulação e não uma falsificação. O prédio de Nashville é uma recriação.
Exemplos de falsificações permeiam a história do homem. Por outro lado, as
simulações também desempenham papel importante no desenvolvimento. São duas
formas distintas do fake, ambas relevantes como parte evolutiva da criação humana,
apesar de que as falsificações sejam uma prática mais condenável.
O artista italiano Michelangelo, com apenas 21 anos de idade, esculpiu um
cupido de acordo com antigos moldes de produção e logo em seguida o enterrou.
Algum tempo depois, a peça foi desenterrada e negociada como antiguidade.
Michelangelo não tirou vantagem financeira da situação, mas sentiu-se orgulhoso por
ter seu trabalho confundido com os de seus ancestrais (TIETZE, 1948).
Obras consagradas da literatura ou artes visuais recebem, ao longo do tempo,
a atenção de estudiosos que, cada um em sua época, pode abordar e oferecer
diversas possibilidades de pontos de vista a respeito de forma, estética, regra, estilo,
ou seja, aspectos e abordagens diferentes. A atividade criativa que permanecer em
seu momento de criação e não ultrapassar as barreiras do tempo, admitindo novos
são reconhecidos de forma diferente a cada período, desde sua produção. A
intensidade semântica na obra de Van Gogh ainda não foi totalmente descoberta e
estudada. Este mesmo pintor, que vendeu pouco em vida, tendo sua obra não
reconhecida pelos seus contemporâneos, é considerado um dos maiores das artes
visuais. Mas será que seus quadros obtiveram novas cores e formas para motivar
essa mudança de perspectiva? De certa forma, o trabalho de Van Gogh não é o
mesmo de sua época. Foram-lhe atribuídos novos sentidos e abordagens a respeito
de sua intencionalidade, processo criativo e outros aspectos inerentes a qualquer
elemento autoral. A respeito da eternidade mutante de alguns produtos culturais,
Mikhail Bakhtin (1986, p. 05) diz que 'no processo da sua "vida póstuma" eles são
enriquecidos com novos significados, nova significância: é como se esses trabalhos
superassem o que eles foram na época de sua criação'.
A produção de falsos objetos baseiam-se em um original, reproduzindo suas
propriedades visíveis ou não. Podem manifestar-se de acordo com as regras
normativas de uma escola e, até mesmo, sugerir que é fruto de uma produção de
determinado autor. Em alguns casos, o próprio criador nem toma conhecimento de
que sua obra foi atribuída a outro, mais famoso, resultando em maior valor
financeiro ao negociador da venda do "objeto de coleção". Exemplos como o do
escultor italiano Giovanni Bastianini - que teve um busto, produzido por ele em 1866,
exposto no Louvre como uma obra da Renascença - ilustram como o falso objeto
pode ser tomado como autêntico e fazer parte da história como tal.
Nas artes visuais, era comum artistas já conceituados serem auxiliados por
iniciantes que não só complementavam ou finalizavam suas obras, mas também
produziam réplicas. Era bem aceito o comércio de réplicas fabricadas por talentos
devidamente treinados. "A oficina desses grandes artistas foi considerada - desde o
século XIX - como uma organização de comércio e não um santuário de um artista
solitário" (TIETZE, 1948). Essa relação "pupilo/mestre", quando muito longa,
tornava-se uma ocasião fértil para duplicações. Em 1937, durante a exibição de
Chefs d`ouvre de l`art français, uma das mais cuidadosas seleções de obras
francesas do século, uma pintura de Emile Bernard, foi exibida como obra de seu
Mas a falsificação criminosa, o falso mercadológico, não é apenas praticada
nas artes visuais e, muito menos, uma atividade recente. Sua origem deu-se a partir
da comercialização de pedras preciosas, há cinco mil anos. Atualmente, guardado no
Museu de Estocolmo, um papiro egípcio contém amplas instruções sobre como imitar
pedras preciosas coloridas à base de vidro. Sabe-se, através de escritos de Sênecas,
que na Roma de César, havia diversas oficinas destinadas à falsificação de pedras
preciosas. À vista disso, as contrafações "habitam" na trajetória do homem desde o
surgimento da prática da troca, da atribuição de valores a objetos da natureza.
Pois, para se dizer a verdade, as profanações, as alterações, as falsificações de produtos culturais têm a mesma história do homem. Os copistas interferiam deliberadamente no texto, abreviando ou censurando o texto copiado, tudo, é claro, em nome da preservação da “verdadeira” mensagem. Livros raros e antigos têm sido modificados, através de enxertos e montagens, para esconder páginas faltantes. Pinturas e estátuas foram sistematicamente censuradas e modificadas[...] (MACHADO, 1993, p. 195).
Escrituras e textos da antiguidade também sofreram modificações ou foram
totalmente fabricados e disseminados como verdadeiros ao longo da história. No ano
de 391 D.C., a religião cristã foi adotada como a única religião do Império Romano.
A partir dessa data, a Igreja Católica estabeleceu forte influência nas decisões na
política, no poder jurídico e no consenso do que seria "bom costume" na sociedade.
O domínio da Igreja proporcionou uma manifestação adversa da falsificação, que não
era apenas voltada para acréscimos financeiros, mas também para efeitos
doutrinários.
Donatio Constantini
foi um suposto decreto de lei do imperador Constantino
que, como um ato de fé, doa à Igreja territórios e edifícios sob seu domínio, dentro e
fora da Europa. O documento foi questionado por diferentes líderes romanos. Desde
então, sabe-se que, durante muito tempo, o escrito foi considerado como genuíno e
contribuiu para o domínio da Igreja Católica. Não só a falsificação, propriamente dita,
mas a omissão de alguns textos, livros, obras artísticas faziam parte da prática da
Igreja para exercer o catequismo autoritário (LAMBERTINI, 1987). O
desenvolvimento intelectual do homem é povoado por situações que apontam para
falsificações, que, de alguma maneira, subvertem aspectos importantes.
A origem das espécies, que revolucionou a biologia com a
Teoria das espécies. O
polêmico livro ultrapassou o ambiente acadêmico, tornou-se popular e provocou o
surgimento de diversas relíquias arqueológicas falsas visando ao ganho financeiro
oferecido por museus e colecionadores. Um dos mais famosos exemplos de fraude
foi o Homem de Piltdown (The Piltdownman). Em 1912, durante um encontro entre
profissionais da área, dois geólogos britânicos, Arthur Woodward e Charles Dawson,
anunciaram a importante descoberta do elo perdido entre a raça humana e os
macacos, de acordo com a teoria da evolução darwiniana. Os achados resumiam-se
a um crânio (semelhante ao humano), um fragmento de mandíbula de macaco e
dentes de outros animais - veados, castores e hipopótamos. Os anos seguintes foram
marcados pelo surgimento de inúmeras supostos descobertas relacionadas
1ao
Homem de Piltdown. No entanto, após a morte de Dawson, todas as tentativas
arqueológicas realizadas no local foram mal sucedidas, e nada mais foi encontrado.
O desenvolvimento da técnica de determinação da idade dos ossos por meio do
flúor, permitiu que os fósseis de
Piltdown
não fossem mais levados a sério como
achados da Era do Gelo, e sim restos de animais semelhantes ao homem. A farsa
durou 40 anos, principalmente porque o British Museum
a considerava tão valiosa
que os especialistas não tinham a permissão para uma análise mais profunda (KOHN,
1986, p.140). Os fósseis permaneciam guardados, enquanto réplicas eram oferecidas
para exibição. Apesar de eventos como esses proporcionarem maior status na
carreira de um cientista através do reconhecimento de grandes descobertas, a
falsificação surgiu e continua a ser praticada com o objetivo de ganho financeiro.
1
1.2 Coleção
Na esfera das obras de arte, quanto mais colacionável é a peça, maior a
possibilidade da contrafação. Ao considerar uma tela ou escultura como um elemento
de estimável valor para colecionadores, o seu valor aumenta, e, com isso, a
possibilidade de ser falsificada cresce na mesma proporção. Mas não é preciso
necessariamente ser uma obra de arte para ter valor de coleção. No século XXI, a
prática de leilão tornou-se mais popular com o ambiente virtual. Pessoas podem
participar e dar seus lances a qualquer momento, de qualquer lugar e, o principal,
sem mediador. Desde o surgimento da reprodução da imagem relacionada à religião,
o culto ao ícone tornou-se comum. Todavia, os "deuses" do passado tornaram-se os
atores, cantores, atletas, políticos e até elementos ficcionais da TV, que têm sua
imagem cultivada e adorada no presente. O ciberespaço, que é um ambiente
interativo de informações, prolifera com a rapidez necessária para que, em instantes,
promova qualquer pessoa à celebridade. E, assim, quanto mais famosos, mais
elementos colecionáveis vão surgindo e as falsificações em crescimento lateral.
Fortunas são despendidas em busca de objetos "valiosos" como os óculos utilizados
pelo cantor John Lennon, que, nas primeiras 24 horas de leilão via internet, chegou a
quase 750 mil libras (aprox. dois milhões e oitocentos reais). Objetos considerados
por muitos como "fúteis" ou de pouca importância podem chegar a um preço
oneroso tendo em vista o interesse de poucos colecionadores. A fascinação pelo
hábito de colecionar fez com que a falsificação surgisse e se desenvolvesse ao longo
dos anos, principalmente nas obras de arte. "Coleciona-se por motivo de beleza, por
status, para acumular capital e por outros inúmeros motivos, entre os quais, figuram
também e não em último lugar, a vaidade e a ambição[...]" (ARNAU, 1961, p. 20).
A atividade de colecionar é tão primitiva que, possivelmente, originou-se com
as técnicas de conservação de alimentos ("item de valor" na Idade da Pedra),
passando pela obsessão das civilizações grega e romana em reproduzir imagens dos
oligarcas em esculturas e pinturas, que logo se tornaram elementos de alta estima.
acordo com cada cliente.
Cosme de Médicis pôs a base de uma coleção que, em 1492, constituía provavelmente a maior coleção de arte de primeira[...]O palácio da família, as quintas e os jardins pareciam na realidade tesouros próprios de museu. Com pinturas, mosaicos de Bizâncio, retalhos, tapeçarias, mobiliários suntuosos, preciosas esculturas de pedra, marfim, madeira ou metal, cristais ou vidros, manuscritos ou quadros, moedas, jóias de todas as classe, correntes, pedras preciosas, obras de ourives e ourivesaria em Florença. (ARNAU, 1961, p. 24)2.
A partir do Quattrocento, famílias investiam boa quantidade de capital para ter
em casa obras da antiguidade romana e grega. Mas a demanda era muito grande e
as obras de arte "originais" estavam-se tornando item raro no mercado. Então, surge
a perfeita oportunidade para a falsificação. Muitos artistas criavam peças que
reproduziam os efeitos "danificados" do tempo para fazer da obra originalmente
antiga, como o cupido criado por Michelangelo. Quanto mais pessoas procuravam
por prestígio e status com a compra de itens cada vez mais raros e antigos para
colecionar, mais obras falsificadas eram vendidas. Naquela época, havia mais
dificuldade na identificação de fraudes; portanto, muitas famílias podem ter obtido
certa deferência devido a obras que não eram originais - a falsificação atuando na
relação e comportamento social.
1.3 Falsificações
vs
simulações
Constantemente, um objeto cultural pode ser definido como falsificação, mas,
na verdade, é uma simulação resultante de avanços tecnológicos ou inovações no
processo de criação. Um bom exemplo é a tecnologia da representação
cinematográfica. No título Moonraker (1979), da série de filmes do personagem 007,
o espião luta com seu inimigo sobre os cabos que seguram os bondes do Pão de
Açúcar, no Rio de Janeiro. A cena é produzida com o efeito de estúdio denominado
de
chroma keying. A técnica insere qualquer fundo ao objeto em primeiro plano. O
ator grava a cena com um fundo verde, azul ou vermelho e, com a computação
gráfica, esse fundo é substituído por outra imagem. No filme, o ator nunca esteve a
dar golpes no topo do bonde, no Rio de Janeiro. É aceitável a hipótese de que todos
os espectadores do nosso século não duvidassem da utilização de um artifício
tecnológico para construir a cena. Sob outro ângulo, por ocasião de uma época em
que a técnica ainda não era tão popular, espectadores poderiam achar que o ator
quebrou o cabo do bonde realmente com os dentes como o filme mostra. Dessa
forma, a simulação é reconhecida ou não por meio dos padrões da linguagem
cinematográfica de cada momento na história. Por outro lado, ocasionalmente, a
simulação, os avanços tecnológicos são confundidos como elementos tão falsos
como uma cópia de um quadro produzido para fins lucrativos.
Há, em alguns casos, a "paranóia do original" (MACHADO, 1993), que
exatamente permite dar a todo objeto que foge das convenções, o significado de
falso, por meio de uma abordagem pejorativa.
O gosto da autenticidade a todo preço é o produto ideológico de uma sociedade mercantil, e, quando uma reprodução de uma escultura é absolutamente perfeita, privilegiar o original equivale a privilegiar a primeira edição numerada de um livro, em vez da segunda edição[...] (ECO, 1991, p.159).
Faz-se importante acrescentar que, em muitos casos, grande parte de uma
sociedade não possui conhecimento técnico suficiente para poder perceber as
propriedades que realmente distinguem dois objetos "semelhantes" e, por
conseguinte, reconhecem-nas como idênticos. O cinema documental, ainda hoje, em
meio a tantas provas de manipulações
3, há quem defenda a câmera como artifício
para capturar a realidade. A grande plateia, quando não “alfabetizada” da linguagem
utilizada, não distingue os artifícios ficcionais nessa construção.
O objeto falso também não deve ser confundido com a réplica. A réplica é um
idêntico do seu original? O termo "idêntico" sugere a ideia de equivalência, que, nas
3
ciências exatas, é algo absolutamente igual que reproduz as propriedades mais
intrínsecas e incontroláveis do original. Esses absolutos são utópicos, haja vista sua
dificuldade de reprodução. Os objetos que duplicam o original, copiando o mesmo
procedimento de criação, refazendo-o nas mesmas condições, são denominados
"duplos" - produção em série de um mesmo modelo (ECO, 1991). Todavia, do ponto
de vista semiótico, denomina-se réplica todo objeto que é produzido com apenas um
percentual das propriedades do objeto-modelo - um aeromodelo, por exemplo.
De acordo com Daniele Barbieri (1987, p.44), um objeto é semelhante a outro
quando compartilha pelo menos uma propriedade. Quando o objeto não tiver uma só
propriedade diferente do outro, ambos são idênticos
4.
Na fotografia, por exemplo, a cópia produzida em série pode perder no
aspecto autoral. A essa prática, Walter Benjamin (1994) denomina "reprodutibilidade
técnica" - reprodução sistemática, automática, seriada de uma obra de arte. Com a
reprodução técnica a obra tem o seu valor de autoria fragilizado, mas, por outro
lado, ganha no domínio da tradição histórica, devido à popularização. A réplica
substitui a manifestação única da obra por uma manifestação em série.
A reprodução técnica refaz o processo de produção parcialmente e, portanto,
pode interferir para fornecer diferentes resultados. Esse procedimento se encontra
mais voltada para artes visuais, principalmente, escultura, pintura, fotografia e
cinema.
Alguns anos atrás, com o desenvolvimento da tecnologia digital, tornou-se
possível colorizar obras cinematográficas em grande escala. Filmes clássicos como
Casablanca (Michael Curtiz, 1942) ou Suddenly (Lewis Allen, 1954) receberam cores
para exibição na TV ou para serem comercializados em fitas cassetes, tendo maior
apelo mercadológico. Na época, ocorreu certa polêmica porque muitos cinéfilos
confrontavam a prática de colorizar como uma intervenção radical que modificava o
conteúdo da obra, fazia do original uma fraude. O assunto, definido como "síndrome
da colorização" (MACHADO, 1993) e chegou aos congressos americano e inglês. No
entanto, a colorização no cinema era rotina de realizadores como Georges Méliès,
que possuía uma equipe para inserir cores em seus filmes, quadro por quadro.
É fato, ao que se percebe com alguns exemplos de adulterações citados até
agora, que a história é composta também por fraudes. Por outro lado, o culto
prescindível ao original, mesmo definido superficialmente como o "primeiro", pode
permitir uma intransigência quanto a novas formas de manifestação artística. O
fetiche pela originalidade, a moralização conservadora dos meios culturais estavam
por interromper uma práxis comum na história da criação artística: o retoque.
Normalmente, quando ocorre uma variação no original de uma pintura que
não seja para causar-lhe maior interesse com propósito financeiro, isso se dá por
meio de ajustes ao "gosto", à "moda" da época ou até mesmo para privilegiar alguns
dos envolvidos: autor original, retocador ou proprietário da peça.
Em 1498, um artista da Bavária, Albrecht Dürer, pintou a imagem de um
membro da família Paumgartner (que encomendou a obra) como se fosse um
personagem sagrado. Cerca de 120 anos depois, o duque da Bavária adquiriu a peça
e solicitou ao pintor da corte, Johann Georg Fischer, que a restaurasse (Figura 1). O
artista substituiu a bandeira por uma lança, inseriu uma espécie de capacete no
personagem, colocou um cavalo em um cenário sombrio com uma colina ao fundo. O
pintor acrescentou à obra de Dürer elementos com o interesse de afastar o
personagem principal do caráter de "santo" para aproximá-lo à função de cavaleiro,
fazendo referência ao comportamento do duque, recém-proprietário da obra. Faz-se
necessário apontar que, neste caso, o retocador com sua intervenção, fez do painel
uma criação de dois autores. Ainda há outro detalhe importante no trabalho de
Fischer: o cavalo, a mata, a colina, o castelo são itens de outra obra de Albrecht
Dürer, de 1513, considerada uma de suas obras primas: Ritter, Tod und Teufel. Esse
é um tipo de episódio que dá a entender a obra artística como uma constante em
desenvolvimento, com compreensões diferentes ao longo do tempo, de acordo com
Bakhtin (1986). Os diversificados entendimentos são relacionados à perspectiva e ao
comportamento de cada época, incluindo retoques ou inserções numa obra de arte.
Não há dúvida de que o painel de Dürer foi modificado, provocando outra
Figura 1 À esquerda: St. Eustage -
Albrecht Dürer, 1498. À direita: a mesma obra alterada por Johann Georg Fischer, 1614.
Assim como obras que foram alteradas para corresponder ao gosto do seu
proprietário, outras tiveram suas telas modificadas com o objetivo de reajuste à
maneira mais apreciável de determinado momento cultural. Nos séculos XVII e XVIII
diversas criações sofreram intervenções plásticas para alinhar sua estética a
convenções como a sobreposição de ilustrações de roupas e tecidos aos detalhes em
nu.
A pintura a óleo produzida em 1536, por Lucas Cranach ("o mais novo"), foi
modificada anos depois, de acordo com o conservadorismo da época. O restaurador,
além de cobrir as pinceladas anteriores com o dever de reaver, renovar a obra,
decide por alterá-la, vestindo a virgem com roupas e modificando a curvatura do seu
braço esquerdo, que segura a criança. Particularmente, a autoria dos trabalhos com
a assinatura de Lucas Cranach é confusa porque, em sua oficina, trabalhavam juntos
o pai e o filho com o mesmo nome. Não obstante, algumas produções do filho eram
reproduções temáticas do pai e vice-versa. A relação pupilo e mestre promove um
processo criativo em conjunto.
Figura 3 - À esquerda:
reprodução em preto e branco e recortada da versão modificada de Caritas - Lucas Cranach, the elder. A direita: quadro
Muitas galerias, em outras épocas, chegavam a cortar as telas ou alongá-las
para produzir em o efeito decorativo desejado - obra de arte como bem de
decoração. Na verdade, é difícil para qualquer sujeito, sem conhecimentos
especificamente técnicos, reconhecer uma obra alterada ou retocada. Desse modo,
dizer que essas pinturas são falsificações aponta para a velha tradição da adoração
ao original. As falsificações são objetos forjados para substituir o original, que
caracterize o crime como objetivo da venda. Além de que o exercício da restauração
é um bem ao patrimônio histórico da arte.
A restauração não tem na sua essência a intencionalidade de falsear. "A
restauração deve visar ao restabelecimento da unidade potencial da obra de arte [...]
sem cancelar nenhum traço da passagem da obra de arte no tempo"(BRANDI, 2004,
p.33). Esse "traços" não são nada mais que marcas, indícios da existência da obra ao
longo do tempo, que comprovam sua história. Mas, durante muitos séculos, os
especialistas e negociadores de obras de arte ofereciam bustos, estátuas e pinturas
"magicamente" (TIETZE, 1948, p.14) semelhantes ao original. Peças eram
restauradas a ponto de aniquilar qualquer traço histórico. Entretanto, os
compradores, por efeito do hábito de colecionar, começaram a exigir a presença dos
traços que comprovassem o valor histórico da obra. E, então, os falsificadores
voltaram-se a produzir peças novas com esses indícios e convencionadas à moda
antiga, como o cupido de Michelangelo, citado anteriormente. Talvez, com o
propósito de evitar a eliminação desses traços históricos, alguns cinéfilos defenderam
a não colorização dos clássicos do cinema. A valorização da obra fílmica reduziu-se a
sua materialidade e não à artisticidade. Talvez, na concepção dos opositores da
colorização cinematográfica, o filme
Casablanca perderia sua qualidade artística. As
cores na tela da televisão, com certeza, não iriam mudar diálogos ou a trama do
filme, mas promoviam uma nova versão. E, sendo uma versão, entende-se a
existência de um antecessor, eliminando o processo de um passar-se por outro. É
comum encontrar inúmeras versões de filmes, ou melhor, refilmagens, termo mais
comumente utilizado para denominar a produção cinematográfica que se baseia em
versão anterior um trabalho mais ou menos admirável. Ao contrário, se uma história
é refilmada, entende-se como uma referência, no sentido de respeito e autoridade.
É evidente a existência, desde a literatura clássica, da paródia irônica, que,
muitas vezes de forma jocosa, tenta provocar um desconforto visando à crítica. Mas,
na maioria dos casos, especialmente no cinema blockbuster
5, as refilmagens buscam
o sucesso obtido pela versão anterior. A adaptação de um livro ou peça de teatro é,
como a colorização, também uma manifestação criativa, comum na prática
cinematográfica. A peça
Romeo e Juliet, escrita há mais de quatro séculos por
William Shakespeare, foi inúmeras vezes retratada no cinema. Depois das versões
que mais se destacaram -
Romeo and Julieta (Franco Zeffirelli, 1968) e
Romeo and
Juliet (George Cukor, 1936) - a adaptação
Romeo + Juliet (Baz Luhrmann, 1996) foi
a mais ousada. Apesar de seguir as falas dos personagens escritas por Shakespeare,
o drama passa-se na década de 1990, inserindo gírias, músicas modernas e
elementos novos. Os cavalos são substituídos por carros, as espadas cedem lugar
para as pistolas de fogo e até os efeitos da comunicação de massa sobre a sociedade
moderna são retratados com inserção da televisão como locutora da história de
Romeu e Julieta. Assim como a colorização, o efeito em três dimensões são
desenvolvimentos tecnológicos que oferecem versões que destacam o valor artístico
do texto-base e não falsificações.
1.4 Rumo à classificação
As atividades humanas sofreram mudanças resultantes do capitalismo. O
trabalho artístico passa a ser considerado mercadoria. Como uma obra de arte
precisa da criatividade para se destacar, a demanda vem a ser maior que a oferta.
Desse modo, os preços aumentam e as fraudes são mais praticadas. Verifica-se
também que a falsificação está ligada a outros aspectos sociais como a religião. Os
apócrifos são exemplos de documentos fraudados ou apenas "omitidos". Vê-se
claramente que o falsear é uma prática comum há muito tempo. Esculturas de
pedra, madeira, marfim, metal, com ou sem pedras preciosas, ainda são "fabricadas"
para se passar por antiguidades. Falsificavam-se moedas facilmente, e a descoberta
do ato criminoso fica mais distante por conta do seu uso massificado. Acontece o
oposto com os colecionadores de selo postal, que, devido ao seu conhecimento
técnico, são eventualmente capazes de identificar falhas na reprodução ilegal. Por
outro lado, os criminosos especializam-se na produção de carimbos, tendo em vista
que selos carimbados são mais valiosos. Criam-se até instrumentos musicais aos
moldes dos clássicos e não se vendem como réplicas, mas como os originais. Enfim,
contam-se inúmeros exemplos das falsificações criminosas, seja no âmbito artístico
ou não. A princípio, a classificação do falso pode-se dar por meio de uma simples
dicotomia: Falso histórico e Falso artístico (BRANDI, 2004). O falso histórico, oposto
ao
falso artístico, seria a prática da falsificação fora do âmbito das obras de arte.
Documentos, mapas, registros, objetos industrializados, todos os elementos não
considerados um trabalho artístico, quando falsificados podem ser definidos na
categoria de falso histórico. A formulação de Celso Brandi é geral o suficiente para
reduzir o estudo do falso numa análise apenas do produto final. Não observa a
intencionalidade do falso e a sua potencialidade de interpretação.
Há de se observar, com todos os exemplos, que as falsificações são formas de
expressão deliberadamente enganosas. Para tanto, seus modos de operação devem
ser complexos e assim seus efeitos de sentido. Por conseguinte, uma classificação
mais apurada do falso pode ser esboçada.
Para Umberto Eco (1987), o objeto só é falso quando identificado como tal.
Para que uma escultura seja considerada uma fraude, ela deve ser reconhecida
dessa forma. Não importa se a tela é adulterada, o que interessa é se as pessoas
acreditam ou não na sua autenticidade. Portanto, a sua classificação é baseada nas
ações do "pretendente", aquele que está no exercício de identificar a obra. Dessa
forma, o estudioso propõe uma tipologia da falsa identificação: a contrafação radical,
a contrafação moderada e a contrafação ex nihilo.
seja, idênticos, ocorre a
contrafação radical
ou moderada. Pode ser praticada por
meio da Falsa identificação deliberada, Falsa identificação ingênua, Cópias de Autor e
Alteração do Original.
A
falsa identificação deliberada ocorre quando o pretendente identifica o Oa
diferente de Ob, mas declara, com objetivo de enganar, que Ob é o original (Oa). Na
falsa identificação ingênua, os destinatários do pretendente acreditam que Ob é o
original Oa, mesmo sem que o pretendente o tenha declarado como tal. É o caso de
pessoas que confundem a réplica exposta no corredor de uma exibição como sendo
o original, guardado em cofre. Outra forma de contrafação radical
são as cópias de
autor. Ao finalizar uma obra, o artista efetua um duplo, que aparentemente é igual
ao original e possui os mesmos valores estético e histórico. Por outro lado, os
adeptos do fetichismo do original não permitem a coexistência dos dois e
obrigatoriamente, aponta Ob como falso. Uma prática muito comum, como foi citado
anteriormente, a alteração do original pode fazer de Ob original (Oa). Todavia,
sabe-se que Ob é Oa alterado.
Outro processo de falsa identificação formulada por Eco é a
contrafação
moderada. Nesse tipo, o falso é operacionalizado de duas formas. Em uma delas o
pretendente não é sensível a questões de autenticidade e aponta como original tanto
o Ob como Oa. A essa postura o teórico define como "entusiasmo gerador de
confusão", pois, ao nivelar, ambos se tornam o mesmo objeto, ou seja, dois originais
possuem a mesma identidade. A intercambialidade é o que rege a
contrafação
moderada, e assim a tradução e, em alguns casos, a restauração é apontada como
adulteração, tendo em vista o embasamento na "paranóia do original". A
comparação da atividade de traduzir com a falsificação será retomada
posteriormente.
Por fim, a classificação proposta por Umberto Eco descreve também um tipo
de contrafação que surge sem ter um original (Oa) como referência, provinda "do
nada". O Ob é fruto de reprodução de traços de autores ou estilo. É denominada
contrafação
ex nihilo
a que se opõe à produção
ex materia, que significa a
preexistência da matéria.
anos. Algum tempo depois, não se sabe exatamente quando, surgiu uma falsificação
datada de 1494 de outro autorretrato de Dürer. O falsificador não copiou exatamente
outra obra, não se utilizou de uma matéria preexistente por completo. Na verdade, o
autor criou uma imagem de Dúrer mais velho, utilizando o personagem do quadro de
1484, inclusive, manteve o chapéu e os cabelos longos. Além disso, criou fissuras na
tela para parecer uma obra antiga.
O falso diplomático e o falso histórico são algumas das formas de
manifestação da contrafação ex nihilo. O primeiro refere-se a documentos falsos com
informações verdadeiras. Como uma fotomontagem do momento em que a princesa
Isabel assina a Lei Áurea. O falso histórico ocorre quando o documento é
formalmente autêntico, mas a informação é falsa - uma notícia de jornal sobre um
fato fictício.
A
contrafação ex nihilo deliberada faz-se quando o autor de Ob é o mesmo
pretendente e assim produz o falso à maneira de outro autor ou período, como
Michelangelo fez ao enterrar o cupido. Ainda como na classe do ex nihilo, Eco cita a
falsa atribuição quando o pretendente não é o autor de B e o objeto Ob se passa por
uma data e autoria deturpada.
FALSA IDENTIFICAÇÃO DELIBERADA
CONTRAFAÇÃO RADICAL
FALSA IDENTIFICAÇÃO INGÊNUA
Figura 4.1 - À esquerda,
CÓPIAS DE AUTOR
ALTERAÇÃO DO ORIGINAL
ENTUSIASMO GERADOR DE CONFUSÃO
CONTRAFAÇÃO MODERADA
PRETENSA DESCOBERTA DE INTERCAMBIALIDADE
FALSO DIPLOMÁTICO
CONTRAFAÇÃO EX NIHILO DELIBERADA
CONTRAFAÇÃO EX NIHILO
FALSA ATRIBUIÇÃO INVOLUNTÁRIA
Quadro 1- Classificação proposta por Umberto Eco (2010).
Percebe-se um termo em comum nas classificações descritas -
o falso
histórico. Trata-se de um registro que contraria a eventualidade dos fatos. Em 1813,
a Revista do Instituto Histórico e Georgráfico Brasileiro publicou um documento
sobre a conquista do território dos índios goitacás no século XVII. O registro sendo
genuíno, consistiria em grande valor para o estudo da história indígena do país.
Todavia, por meio do confronto entre o estilo da escrita do documento e o estilo
praticado no século que o data, concluiu-se que a escritura é uma falsificação do
século XIX (MARTINS, 1996, p.146). De acordo com Eco, o falso histórico é aquele
que faz do acontecimento verídico algo enganoso, "uma simples mentira"(ECO, 2010,
p.140). Mas nem sempre o contrário de verídico é enganoso. Basta citar o cinema
ficcional, no qual estórias que de fato nunca aconteceram são exibidas na tela, mas
sem a pretensão de enganar. O docudrama, por exemplo, é uma ficção pontuada por
elementos que realmente existiram e compõe a história. O filme
Cidade de Deus
(Fernando Meirelles, 2002) apresenta uma narrativa que retrata a violência em uma
das maiores favelas do Rio de Janeiro. Além disso, inclui personagens que fizeram
parte dos acontecimentos da época reportada na película. Na literatura há casos
como esse. O livro The life and strange surprizing adventures of Robinson Crusoe, de
Daniel Defoe, publicado em 1719 e inspira inúmeras obras da cultura atual,
fundamentou-se na aventura do marinheiro Alexander Selkirk. O jovem escocês foi
abandonado numa ilha, no arquipélago de Juan Fernandez, na América do Sul, de
outubro de 1704 a fevereiro de 1709. Selkirk, retornando ao Reino Unido, tornou-se
famoso o suficiente para servir de inspiração para Defoe.
Na verdade, tanto Cidade de Deus como o livro de Robinson Crusoé são obras
que contam fábulas as quais, de acordo com a definição de Eco podem ser
comunicacional de uma narrativa fictícia. Eco (1991) define como "pacto ficcional"
esse acerto em que o criador deixa marcas para o destinatário perceber e não tomar
como verdadeiros os episódios narrados.
Na semiótica greimasiana (GREIMAS, 2008), esse pacto é denominado
contrato de veridicção
(GREIMAS, 2008), o qual indica que a verdade depende de
estratégias de linguagem. Há uma partilha entre o “crer-verdadeiro” do enunciador
com o do enunciatário. E é através desse equilíbrio tênue que se forma ou não a
verdade no discurso. Como afirma Fiorin (1996): “Esses contratos determinam a
atribuição de estatutos veridictórios distintos aos dois tipos de discurso. Trata-se,
com efeito, de um jogo que se estabelece entre o ser (dizer) e o parecer (dito)”. Na
verdade, não interessa muito se o enunciador está a criar discursos verdadeiros, e
sim a produção de efeitos de sentido de verdade junto ao enunciatário. O "fazer
parecer verdadeiro" é praticar a verdade. Da mesma forma, os romances literários e
filmes "baseados em fatos reais" também firmam acordo com o destinatário
objetivando não "parecer verdadeiro" e assim se tornar um trabalho assumidamente
ficcional.
Na classificação de Eco (2001), apesar de ser verificada a distinção da prática
de forjar pela ótica da origem da produção: a contrafação ex nihilo. Há o descuido de
não citar casos em que se mesclam duas obras genuínas. Como exemplo dois
trabalhos de Hans Holbein (Figura 4) que foram montados em um só: Duke Antoine
the Good of Lorraine de 1543 com Unknown Young Man at his Office Desk de 1541.
O criador do terceiro quadro utiliza a cabeça do duque Antoine e o corpo do homem
da tela de 1541. Alguns poucos aspectos são modificados como o rosto do duque,
que é rejuvenescido, o ouro do seu chapéu é removido e os anéis retocados em
Figura 5
Da esquerda para direita: Duke Antoine the Good of Lorraine (Hans Holbein, 1543)
Unknown Young Man at his Office Desk (Hans Holbein, 1541) e falsificação sem data.