3 O FAKE FOTOGRÁFICO
3.4 Simulação fotográfica paródica irônica
Como afirmado anteriormente, toda simulação, por ter sua produção orientada
pelo dispositivo de um outro objeto, refere-se a um terceiro e caracteriza o
fenômeno da copresença, principal atributo da intertextualidade. Essa retomada de
outro texto ou autor se dá por meio de pistas, marcações criadas pelo enunciador
para que o enunciatário as identifique e processe os mecanismos da enunciação. O
enunciatário não é passivo, ele é convocado para construir a enunciação de acordo
com o seu repertório e torna-se uma espécie de coenunciador. O sujeito, ao ler o
intertexto, divide com o outro a competência de construção do sentido no discurso.
“Ler uma variante intertextual é compartilhar o prazer de desvendar o outro no um,
esse outro que se mostra, mas não se circunscreve, não se marca; é seguir pistas
dadas pelo texto para, numa negociação enunciativa sutil,[...]" (DISCINI, 2003 p.
227-228).
A paródia, como canto paralelo, possui referências a outros textos. A atividade
paródica é um tipo de intertextualidade que constrói um outro sentido para a mesma
"história" do texto base. Essa contrariedade simula que aceita o texto parodiado,
mas cria polêmica para provocar uma crítica ou comicidade. É por meio da ironia que
a paródia é avaliadora e contesta o texto referencial. O fake Not the Financial Times
representa um modelo de simulação paródica irônica porque simula ao se apropriar
de códigos, parodia ao apontar para um jornal específico (Financial Times) e é
irônico ao passo que insere a ficção num suporte originalmente criado para exibir
fatos, não ficção.
Assim como o jornal, a fotografia oferece possibilidades criativas para
promover a ironia reflexiva ou mesmo o humor. O fotógrafo David Lachapelle é um
dos artistas que utilizam a alusão para promover a ironia paródica dos valores entre
os textos. Em alguns casos, a ironia manifesta-se através do escárnio porque procura
distorcer o significado do texto parodiado. Na verdade, é uma estratégia crítica a
valores sociais promovidos pela obra base. As diferenças são acentuadas para que a
manobra seja apreendida.
Em 2006, Lachapelle criou Heaven to hell: paródia de uma das esculturas mais
famosas de Michelangelo, Piéta, que exibe Jesus morto no colo da virgem Maria. A
imagem produzida por Lachapelle explora a figura de Courtney Love, polêmica
cantora que ganhou fama por ser a viúva de um dos mais celebrados músicos de
rock, Kurt Cobain. A foto (Figura 45) tráz Courtney no papel de "Maria" e Kurt como
"Jesus", na escultura, paródia de Pietá. Cobain morreu nos anos 90, vítima do uso de
drogas, quando Courtney ganhou mais ainda destaque na mídia. Lachapelle procura
a polêmica ao comparar a figura religiosamente sagrada com a de um músico
conturbado e viciado em drogas. Essa oposição é, exatamente, a estratégia que
Lachapelle utiliza para criticar a idolatria à pop music ou à sacralização de Jesus
Cristo. Todavia, quando Lachapelle coloca, na mesma posição, a viúva
39chorando
pelo marido e a mãe (também sagrada pela religião) velando seu filho, ele
"canoniza" Courtney e lhe tira o pecado. Por outro lado, o autor promove reflexão
quanto à iconografia religiosa que sacraliza seu personagem e a idolatria
sensacionalista da mídia. O texto provoca a ideia de que Maria e Jesus são
celebridades assim como Courtney e Kurt. Os valores são invertidos ou convertidos
para polemizar.
39 No contexto midiático e social, muitos podem considerar que a viúva se aproveita da fama do ex- marido para poder se tornar celebridade.
Em 2010, Lachapelle volta (Figura 46) a criar uma simulação paródica irônica,
relacionando celebridades a figuras religiosas. O mesmo texto-base, Pietá, é usado
para promover e relativizar o valor do que é sagrado. Um ano após a morte de
Michael Jackson, o cantor é retratado morto no colo de um Jesus com roupas, como
uma espécie de Cristo atual, com aparência de mendigo. Diferente da obra anterior,
Lachapelle não traz uma mãe para segurar o filho, Michael Jackson. Mas o próprio
Jesus o segura, lamentando a sua morte. Neste caso, especificamente, a intenção
não é de questionar ícones religiosos, mas de sacralizar, assim como Courtney, a
imagem da celebridade em questão. Michael Jackson foi muito censurado pela
imprensa por conta de acusações de pedofilia. Lachapelle quis demonstrar que ele foi
acusado injustamente assim como Jesus, no passado.
Figura 46 - Heaven to hell, 2006, David Lachapelle.
O enunciatário é convidado a buscar, no seu repertório, a obra de
Michelangelo e, ao mesmo tempo, considerar Michel Jackson tão sagrado quanto
Jesus, já que este lhe está dando o colo. O enunciatário torna-se ator da enunciação,
mas de forma ativa, como co-produtor. O enunciador tem como estratégia a
reorganização dos elementos de um contexto alheio ao texto-base, para promover a
reflexão moral junto ao enunciatário. Em entrevista, David Lachapelle revela sua
intenção de preservar ou até sacralizar a figura do cantor americano na simulação:
Eu acredito que Michael em um sentido é um mártir americano. Mártires são perseguidos e Michael foi perseguido. Michael era inocente e mártires são inocentes. Se você vai no YouTube e assistir entrevistas com Michael, você não vê uma rachadura na fachada. Há essa pureza e essa inocência que continuou. (FITZSIMONS, 2010)
Figura 47 - Imagem da exibição American Jesus, Lachapelle, 2010.
125
Figura 48 - A ultima ceia na coletânea Jesus is my homeboy, 2003, David LachapelleFigura 49 - Clara referência a série de retratos de Marilyn Moroe, por Andy Warhol.
Figura 50 - Deluge , David Lachapelle, 2006 que faz referência ao "O dilúvio" de Michelangelo na Capela Sistina.