3 O FAKE FOTOGRÁFICO
3.2 A ficção no fotojornalismo
No início da prática fotográfica, devido à pouca sensibilidade à luz das placas
de prata iodada, o objeto fotografado deveria ficar imóvel por muito tempo. Então,
para fotografar era necessário todo um preparo do modelo, uma verdadeira
fabricação de um cenário. Foi desse modo que surgiu o hábito da pose. Todo
material fotográfico era resultado de um trabalho anterior de encenação. A partir do
desenvolvimento de lentes mais rápidas, a espontaneidade e registro de inesperado
tornou-se possível. Entretanto, a pose continua presente na prática fotográfica, com
exceção do fotojornalismo, que evita a encenação como parte do contrato de
verdade que propõe. Mesmo evitando a ficção da pose, a fotografia nunca poderá
fornecer uma realidade sem mediação, intacta da intervenção. Para acionar o
disparador, há um sujeito que toma decisões, interferindo a partir do conteúdo até a
estética. Nenhuma câmera, com exceção daquelas de tamanho reduzido (como
canetas de uso investigativo), deixará de ser indiscreta. O fotografado, ao perceber a
presença do aparato, logo muda, de alguma forma, o seu comportamento.
O jornalismo, como prática de relato dos fatos, imparcial, tem a sua
objetividade ainda mais acentuada. Partindo da assertiva de que o propósito da
fotografia jornalística é informar através de imagens, sobre acontecimentos reais, há
de se considerar qualquer artifício utilizado para alterar essa realidade uma forma de
manipulação da informação? Porque, de acordo com a crença que o grande público
deposita nas imagens fotográficas, qualquer nuance nesse sistema de codificação de
crédulo aponta para algo forjado. A fabricação de eventos no jornal não é
profissionalmente aceita. A imprensa, seja ela impressa ou virtual, não permite (ou
busca não permitir) qualquer prática que fuja da retratação objetiva situacional. A
espontaneidade do imediatismo de um fato é a principal característica
fotojornalística. Desse modo, ao contrário do passado, a pose como qualquer
encenação é, portanto, considerada por muitos ficção.
A foto de Joe Rosenthal, vencedora do Pulitzer Prize, que retrata a vitória americana
em uma batalha, na ilha japonesa de Iwo Jima (Figura 24), em 1945, é celebrada em
livros, revistas, jornais e até monumentos.
Figura 25 - À esquerda, foto Raising the Flag
on Iwo Jima, de Rosenthal, 1945. À direita, Mother Cat stops stops traffic, de Harry Warnecke, 1927.
Um sargento, minutos antes da famosa foto, tirou fotografias do mesmo
grupo de soldados levantando uma bandeira menor. O que se conta é que Rosenthal
estava a subir no pico quando os soldados decidiram tirar abaixo a pequena bandeira
e colocar uma maior para a fotografia (BRUGIONI, 1999). No entanto, são muitos os
que criticam, suspeitando de uma encenação, perdendo seu potencial valor
documental. Na verdade, a foto de Rosenthal é um registro histórico que simboliza o
patriotismo, a união, a vitória por meio das imagens desses soldados. Por mais
encenada que fosse, a fotografia consegue transmitir ao espectador, na medida do
possível, características e perspectivas do cenário que se formou em determinado
lugar e tempo. O problema está no potencial documental da imagem, que, como em
qualquer documento, é exigido para certificar a verdade do fato. Assim, repousa
uma questão: a encenação faz da fotografia uma ficção por total? De forma radical,
pode-se dizer que a fotografia não tem valor histórico, porque o operador negociou
uma pose, bem como um diretor de cinema consegue uma entrevista para
documentário?
Grande número de fotos pode ter sido posado e, mesmo assim, não perde sua
importância. A foto Mother Cat stops traffic (Figura 24), de 1927, por exemplo. Uma
gatinha atravessava a avenida quando um guarda de trânsito para os carros para o
animal passar com sua cria. No momento, o fotógrafo Harry Warnecke conseguiu
fotografar. Mas insatisfeito com seu primeiro disparo, solicitou a todos cooperarem
com nova fotografia. E assim foi feito, percebam que as pessoas estão paradas ao
lado esquerdo. Prova de que o acontecido não foi tão inesperado como a foto quer
mostrar, mas a qualidade não se perde por isso.
A pose, por ser encenada, ensaiada e refeita, está mais próxima do processo
de produção ficcional que os considerados não-ficcionais, como o fotojornalismo e o
cinema documentário. A constatação da produção de cenário numa fotojornalística
pode ser interpretada até como manipulação.
No ano de 2000, o jornal Meio Norte, impresso veiculado no estado do Piauí,
publicou uma foto (nas páginas "policiais") de presos numa delegacia de polícia. Um
dos detentos aciona a justiça, alegando que foi forçado a posar para fotografia, e
pediu indenização por danos morais. Claro que é dever do jornalismo fornecer
informações de interesse público, como os crimes praticados pelo sujeito. Entretanto,
os delitos, em si, não foram o principal da questão, mas sim se a foto foi encenada
ou não. Observa-se (Figura 25) que os prisioneiros estão encurralados numa parede,
dentro da delegacia, sem indícios de movimento e ainda há alguns agachados ao
chão, de forma a comprovar a pose como em foto de time de futebol antes de iniciar
a partida. A decisão do Tribunal de Justiça do Estado do Piauí considerou que houve
encenação e, portanto, coação para que a fotografia fosse realizada, compondo a
violação do direito civil da imagem. Apesar do sujeito ter realmente cometido delitos
naquela madrugada, afirma que participou da foto por intimidação da força policial e,
desse modo,vai receber do jornal a quantia corrigida de 30 salários mínimos.
Em decorrência disto, verifico que não houve espontaneidade para retratação do fato jornalístico, já que a imagem não foi obtida no momento do flagrante em cenário público, motivo pelo qual houve manipulação da imagem pelo veículo de comunicação (PIAUÍ,TJ, Ap.2009.0001.0031166-8, Relator: Des. Francisco Antônio Paes Landim Filho, 2011).
Figura 26 - Fotografia da publicação do Jornal Meio Norte de 01 de Junho de 2000, objeto da ação judicial.
No jornalismo, a objetividade, a imparcialidade ditam a forma de registro dos
fatos para o bem público. O fotógrafo não mentiu ao posicionar os presos. A pose
não tornou o relato uma ficção. Os detentos cometeram crimes e foram pegos pela
polícia. Por outro lado, justamente a pose denuncia o abuso das autoridades e com o
aval da equipe jornalística.
Decorridos 180 anos da sua popularização, a fotografia ainda possui a
credibilidade que lhe é natural pelo efeito da analogia. Apesar de estarmos hoje um
pouco mais treinados a suspeitar desse "reflexo" do real. Ainda é necessário que as
pessoas compreendam o processo de criação para assim poder em desconfiar dessa
característica factual que o elemento fotográfico carrega.
Na época da foto de Warnecke, a fotografia ainda estava no início da sua
popularização. Desse modo, os espectadores eram pouco "alfabetizados" com a
linguagem fotográfica para perceber em a encenação da foto da gata levando seu
filhote. Dificilmente tinham conjunto de informações colaterais suficiente para
duvidar daquilo. A foto em um suporte documental como o jornalismo, numa era
digital, apresenta as possibilidades de criação, de forja, fabricação de cenários bem
maiores e exige ainda mais das pessoas uma educação
36de leitura visual.
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(páginas 103-107)