2.3 Simulação paródica
2.3.2 Simulação paródica radical
Para que a ironia resulte em humor, crítica, protesto, subversão ou qualquer
de suas funções, é necessário que seja apreendida pelo enunciatário como tal. Uma
paródia literária irônica, por exemplo, pode utilizar-se da alusão para definir as
marcas que o leitor deve seguir e compreender o sentido do discurso paralelo.
Todavia, percebe-se que há uma gradação da implicitude dessas pistas
deliberadamente expostas. Alguns trabalhos optam por se concentrar apenas nos
sujeitos com repertórios suficientemente adequados para constatar e entender o
efeito irônico, pressupostamente adotado pelo enunciador. O jornal Not the Financial
Times destaca suas marcas para que grande parte dos leitores verifique o protesto
sugerido. Porém, em alguns casos, a paródia irônica, estrategicamente, não acentua
os vestígios que possibilitam o seu reconhecimento, correndo o risco de tornar-se
trote. A esse tipo "arriscado" de fake denominamos simulação paródica radical. O
radicalismo está caracterizado pela implicitude das marcações empregadas na ironia.
A obra simulativa paródica radical não deixa de praticar o efeito irônico, mas o
camufla, de forma que os mais habituados com o repertório ou linguagem do
discurso específico podem deduzir a presença desse efeito polêmico. "Aceitamos que
há ironias como contrários, aceitamos que há marcas menos ou mais explícitas de
ironia, mas aceitamos também haver casos em que isso não parece tão claro assim."
(SEIXAS, 2006, p. 109).
A teórica Linda Hutcheon, em seu livro Irony's Edge: The Theory and Politics
of Irony (HUTCHEON, 1995), descreve alguns trabalhos que se encaixam na prática
radical da ironia. Beauvais Lyons, professor de artes da Universidade do Tennessee,
produziu uma série de simulações que, gradualmente, a cada exibição criada, desafia
mais ainda o expectador a entender o efeito da ironia implícita. O seu primeiro
projeto foi a invenção de uma civilização antiga do norte da Turquia, denominada de
Arenot. O nome que remete à negação é a primeira marca da ironia. Lyons exibiu
restos arqueológicos e documentações como vasos de cerâmica feitos à mão, pratos
litografados, etc. Para Hutcheon (1995, p. 161), o segundo projeto de Lyons foi
menos evidente quanto as marcações. Na exposição The excavation of the Apasht
(1980-83), Lyons teve ainda mais cuidado em camuflar qualquer evidência de ficção
para que a exposição fosse entendida como ironia apenas por aqueles que têm
conhecimento técnico suficiente para isso.
O elaborado processo de imaginar e, em seguida, fabricar e documentar uma cultura imaginária em toda a sua complexidade através de uma ampla variedade de mídias depende da menção de reais achados arqueológicos e sua exibição para acionar a atribuição da ironia. Mas, para que isto ocorra, o
estado ficcional do Apasht deve primeiro reconhecido pelo intérprete. Para mim, as complicações (ou sutileza) ocorre quando precisamente o que fornece as documentações com a sua aparência de autenticidade é o que desencadeia a atribuição de ironia. (HUTCHEON, 1995, p. 162).28
Uma exposição arqueológica é um palco em que os objetos devam ser
factuais, representem acontecimentos, características da cultura, comportamento de
um povo. Em outras palavras, são artefatos e, por pressiposição, não devem conter
ficcionalidade. Quando a ficção é inserida de forma demasiadamente camuflada, os
observadores não percebem a ironia, e não atentam que os objetos são forjados,
fabricados para compor uma instalação irônica.
As principais formas de marcar a ficção no trabalho de Lyons são os exageros
nos dados históricos ("Apasht é a civilização mais antiga de todas") e as contradições
deliberadas (os glifos são caracterizados como "indecifráveis"; no entanto,
apresentam imagens claras de rostos, genitais e mãos com dedos cruzados). Nessa
arqueologia ficcional, o que Lyons procura destacar como ponto de reflexão é o
"conflito entre arte e artefato, ficção e fato" (HUTCHEON, 1995, p.165). Trata-se de
um debate a respeito da prática da arqueologia e a sua autenticidade que é posta
sob suspeita, tendo em vista que o modo de manifestação (exibições, por exemplo) é
um discurso já habitual; portanto, assim como o jornal, solo fértil para o fake. "Será
que este vaso da civilização
Apasht é realmente autêntico?" - eis um dos
questionamentos que, de modo provável, Lyons quer que o público faça diante das
suas exposições.
Figura 19 - Afresco em relevo que representa a luta da deusa Tamoot contra uma peste. Peça da exposição Reconstruction of an Aazudian Temple (1993) de Lyons.
Vários outros artistas fabricam objetos como se fossem achados arqueológicos
para promover em uma simulação paródica. Inês Raphaelian, desde ano de 1993,
vemm trabalhando com exposições forjadas. O projeto é denominado de B.C. Byte
Series. As siglas "B.C" datam um período de "antes de Cristo" (Before Christ), como
uma suposição de que o material a ser exibido é antigo, mais de 1993 anos. Por
outro lado, há uma fratura no percurso, quando ler-se o restante do nome. A palavra
"byte" é utilizada como unidade para medir o tamanho (espaço virtual) de um dado
numa seção de armazenamento, como um HD (Hard Disc) dentro de um
computador. Então, há esta discordância: em se tratando de uma exibição
arqueológica antiga, como poderia ter alguma relação com os bytes computacionais?
É nesse elo que está concentrada a ironia proposta por Raphaelian. Variados
componentes do CPU (Central Processing Unit) de um computador ou, até mesmo,
ícones utilizados na composição gráfica do ambiente virtual dos sistemas
operacionais mais populares (Windows) são representados como glifos ou símbolos
de uma civilização do passado. Afrescos apresentam, em baixo relevo, o formato de
conectores eletrônicos. Cilindros apresentam códigos binários (Figura 19),
assemelhando-se aos discos utilizados para armazenar dados, como DVD e os
próprios HDs. Peças de cerâmica recriam a forma do mouse, instrumento essencial
para o acesso a qualquer sistema computacional. Chips em resinas reproduzem a
aparência de âmbar (Figura 19). Placas deterioradas representam pedaços de
murais, contendo comandos de softwares. Percebe-se que as peças foram
produzidas para aparentar ser de outra época. Elas se mostram quebradas (Figura
20), sem cor, como se estivessem comprometidas pelo tempo, assim como fósseis
ou vestígios de um passado distante.
Figura 20 - À esquerda, imagem de cilindro com códigos binários (esquerda). À direita, imagem de chip em resina, imitando o âmbar.
Figura 21 - Pedaços de parede que formam palimpsestos que escondiam uma linguagem de software.
A obra B.C. Byte Series procura produzir também um contexto para alimentar
a ironia criada em volta das peças arqueológicas do "futuro". A instalação, além de
exibir todos os objetos em vitrines (Figura 21) , com título e descrição, assim como
nos museus tradicionais, fornece informações da expedição em que se encontrou tais
"restos arqueológicos". Numa das paredes foi colocado um quadro que exibe um
texto, supostamente da agência de notícia Reuters, que conta a história da
descoberta dessas peças. A redação diz que tudo aconteceu em Itaparica, na Bahia,
quando uma mulher, que catava conchas, quebrou o seu dedo numa placa
enterrada na praia. Na sala de emergência do hospital, a mulher contou o ocorrido
para o médico Raimundo Santo "Zé" da Silva, que fazia parte do Conselho de
Turismo e Desenvolvimento. Dr. Raimundo chamou a diretora do Museu de
Arqueologia de Salvador, Dr. Andreia Gardenia Maia, que, percebendo a importância
da peça, tratou de entrar em contato com o professor Vincent Agustinovich ,
pertencente a Universidade de Nova York, e que liderou a expedição. O docente
ainda acrescenta: "É uma ameaça a tudo o que sabemos [...] Esta é claramente uma
civilização muito avançada"
29. Na verdade, todos esses personagens foram
produzidos para criar uma narrativa ficcional que recebe o aval da veracidade a que
os museus aspiram. Há, de fato, uma simulação porque parodia um formato usual na
arqueologia para promover uma ironia situacional que, embora apresente marcas
definidas, também constrói um sistema organizado de índices para certificar a
veracidade do material colhido. Desse modo, o conjunto de estratégias para atestar
os fatos (aparentemente não ficcionais) põe em risco a manifestação da ironia,
caracterizando a simulação paródica radical.
Construo uma falsa realidade a partir de objetos reais que são falsos, de situações reais que são ficcionais estabelece o discurso, as pessoas olham, vêem e não param para analisar se aquilo é verdade ou mentira. Então, a gente tem uma falsa ilusão de que aquilo é uma realidade, porque o discurso já está estabelecido. O discurso já existe como uma forma, um formato que nós absorvemos com maior facilidade: a construção de um museu, de um espaço sacralizado que dá veracidade ao fato, constrói a história [...]. (RAPHAELIAN, 2011)30
A ironia de B.C. Byte Series relaciona a obra de arte com o artefato. Os
objetos "apresentando" marcas do tempo fazem parte desse jogo que aponta a arte
como objeto científico. Por outro lado, é evidente que Raphaelian busca uma
reflexão sobre como o museu sacraliza os objetos que exibe. A ironia provocada pela
inserção de produtos da recente história humana na linguagem arqueológica
promove uma reflexão que insinua a fantasia dentro de um ambiente científico. B.C.
Byte Series e instala questionamentos sobre os fatos históricos citados pelos
museus.
"O museu estabelece a história ou o discurso a partir da interpretação dos objetos.
Então eu também me apropriei da forma do museu de apresentar esses objetos e
torná-los de uma certa maneira, verídicos, aceitos como reais." - afirma Inês
Raphaelian (2011). Desse modo, por meio da contradição ao posicionar produtos
tecnológicos como artefatos, destaca ao público sua ironia que subverte o próprio
formato parodiado. Outra crítica que pode ser percebida no trabalho de Raphaelian é
29
Todas as fotos, textos referentes às exposições de Inês Raphaelian não foram tirados de nenhum livro ou material bibliográfico. Mas foi coletado através de um informal CD-ROM portfólio, concedido pela própria autora.
a respeito de conceitos sobre a cultura. A rápida mudança, atualização, substituição
dos aparatos tecnológicos, juntamente com a velocidade da informação pelo meio
virtual, provocam questionamentos sobre o que é novo e velho na relação humana.
Raphaelian embalsama o recente (chips foram criados em 1971) dentro de uma
"forma" característica de restos arqueológicos, vestígios de civilização do passado.
A organização dos objetos, sua produção semelhante a peças da arqueologia,
textos que embasam todo o processo comprovam que a obra tem como vítima de
sua ironia um público seleto, aquele que frequenta museus e tem contato com a
informática. Esse target tem um repertório capaz de reconhecer a ironia, e tal
reconhecimento é ao mesmo tempo sua causa e origem. Por outro lado, nem todos
serão capazes de ignorar a complexidade deliberadamente montada para promover o
efeito irônico e podem enganar-se, ao não entender os artefatos como arte recém-
fabricada, uma simulação. Sendo assim, a polêmica que põe em questão o processo
de autenticidade provocado pela prática museográfica só alcança a alguns, o
restante é vítima de um trote. A ironia não é destacada o suficiente para, em geral,
ser percebida, caracterizando o que denominamos de simulação paródica radical.
A ironia radical não é apenas aplicada de forma situacional, como os exemplos
descritos anteriormente. A revista americana Esquire, embora tenha sido fundada no
Figura 22 - Imagem da B.C. Byte Series no SESC POMPÉIA / SP. Objetos e peças são expostos assim como nos museus.ano de 1933, não segue muito a linha tradicional, procura utilizar o ficcional no
jornalismo de forma criativa para contar os fatos. Em novembro de 1996, a Esquire
estampa na sua capa a foto de uma atriz e coloca a seguinte manchete: "Esqueça
Gwyneth...esqueça Mira...Aqui está a próxima garota do sonhos de Hollywood"
(SHERILL, 1996). Dentro, a matéria de seis páginas, com muitas fotos posadas ou de
paparazzi exibindo a agitada vida de celebridade da atriz. A revista conta sua história
de vida como os países em que morou após o pai divorciar-se da mãe. Escreve seus
casos românticos com atores e produtores famosos (David Schimmer e Quentin
Tarantino) e ainda revela sua agenda de filmes com diretores consagrados, como
Woody Allen e Bernado Bertolucci. Entre outros detalhes do seu profile não há
indicações da ficção. Assim como o jornal Not the Financial Times, a matéria de
Martha Sherrill na revista Esquire insere dentro de um discurso voltado para a não
ficção, um conteúdo fantasioso. A diferença entre os dois objetos de estudo é que o
primeiramente citado oferece indícios de que se trata de uma ironia.
Figura 23 - Capa da Revista Esquire, de novembro de 1996.
Allegra Coleman, a suposta nova estrela do cinema, é interpretada por Ali
Larter, uma atriz e modelo ainda pouco conhecida na época. O texto não apresenta
qualquer pista de que se trata de ironia. Os poucos que conhecem bem o perfil e
trabalho das celebridades envolvidas na matéria podem desconfiar. Caso contrário, o
efeito irônico passa despercebido. A ironia é suplantada pelo radicalismo do trote,
que se revela de forma indireta, com acontecimentos extratexto. Depois de
receberem ligações de agências de atores à procura de Coleman, o editor da revista
relatou que a matéria era ficcional e estava destinada a criticar diversas revistas que
se concentravam apenas em descrever a vida de celebridades. De acordo com
Edward Kosner, editor chefe, a matéria é " uma brilhante paródia de celebridades
inúteis sem cérebro que preenchem a mídia atualmente"
31(“a brilliant parody of the
brainless celebrity fluff that fills the media these days.”).
Diferente do Sensacionalista, a matéria de Sherrill teve apenas um objetivo,
que foi a crítica da própria mídia. Nas categorias funcionais dispostas por Hutcheon
(1995, p.45), seria "atacante" ou de "oposição", porque é corretiva e transgressora
ou mesmo auto-reflexisiva.
Depois do sucesso que Allegra fez, a atriz Ali Larte participou de filmes
importantes de Hollywood (House on Haunted Hill , American Outlaws , and Legally
Blonde) e séries de impacto na televisão (Heroes). A sua criadora, Martha Sherill,
deu continuidade à ironia radical e escreveu um livro em que Allegra é a
protagonista: My Last Movie Star (2003).
Na verdade, as bordas que separam os dois gêneros aqui descritos, a
simulação paródica irônica e a simulação paródica radical são tênues; por muitas
vezes, nem podem ser consideradas isoladas, por mias radical que seja, a simulação
também se manifesta irônica. Uma peça que possa parecer de fácil reconhecimento
irônico, torna-se radical como resultado do repertório limitado de quem vai
interpretar o determinado tema abordado. Talvez um bom exemplo seria a matéria
Senna Vive, redigida por Reginaldo Leme, em abril de 2012. O texto discorre sobre a
vida do piloto de automobilismo que é ídolo no Brasil desde a década de 1980. No
entanto, a biografia ignora sua morte em 1994 e prossegue como se ele ainda
estivesse vivo.
31 Trecho de matéria disponível em http://meredithmagstudies.wordpress.com/2010/02/10/notorious-magazines/. Acessado em: 08 jun. 2012.
A matéria foi publicada na revista Alfa com doze páginas, sendo que as duas
primeiras compõem uma pintura
32em que se exibe o carro destroçado pelo acidente
que vitimou o piloto, mas, ao contrário do que aconteceu, Senna está em pé, ileso,
escapando com vida. No canto inferior direito, a clara pista do trabalho ficcional:
"Senna vive: E se ele saísse daquele carro sem um arranhão? ALFA pediu a
REGINALDO LEME que imaginasse Ayrton hoje. E o resultado é uma história que
adoraríamos ter visto" (LEME, 2012). Apesar desta primeira marcação, o
reconhecimento se dá por meio da popularidade do protagonista, por se tratar de
uma celebridade (mais 250 mil pessoas acompanharam seu velório). Informações da
carreira do piloto são imaginadas como se estivesse em vida: conquistou 100 poles,
70 vitórias e seis mundiais
33. Aposentou-se em 1999, foi presidente da Federação de
Automobilismo Mundial, comprou uma equipe de Fórmula-1, constituiu família,
escreveu livros, etc. Alguns depoimentos na matéria foram realmente ditos pelo
piloto e outros, criados, como aquele no qual ele mesmo comenta o acidente de
1994, que na realidade o matou: "E pensar que passei por aquilo sem um mísero
arranhão". O texto continua detalhando momentos de campeonatos que Senna
conquistou apenas nessa narrativa ficcional. No ano em que citada matéria foi
publicada, celebraram-se os 18 anos da morte de Ayrton Senna. Eventos e
homenagens ocorreram não apenas no ambiente editorial. Senna vive é mais uma
paródia que homenageia. A ironia está na inclusão da ficção em um suporte
tradicionalmente restrito ao não ficcional. De fato, ao longo das 12 páginas, com
exceção das primeiras frases que contam da solicitação feita ao autor da matéria,
apenas uma nota de rodapé, em corpo de letra inferior a 10, diz: "As declarações de
Senna foram inspiradas em entrevistas reais". Apesar de existir essas duas
marcações, o enunciado esconde, como um trote, a ficção. Percebe-se a estratégia
de não manifestar ou destacar no longo texto, a ironia como numa simulação
paródica radical. Por outro lado, a popularidade do personagem, faz com que os
dados e informações produzidas, forjadas pelo enunciado, sejam contestadas. Desse
32 Alone, Oleg Konin, 1995.