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Ampliando as perspectivas de análise do teatro de Hilda Hilst : a presença do trágico e do cômico na peça A Empresa

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE ARTES

Josilaine Cátia Gonçalves

AMPLIANDO AS PERSPECTIVAS DE ANÁLISE DO TEATRO DE HILDA HILST: A PRESENÇA DO TRÁGICO E DO CÔMICO NA PEÇA A EMPRESA

CAMPINAS 2015

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Josilaine Cátia Gonçalves

AMPLIANDO AS PERSPECTIVAS DE ANÁLISE DO TEATRO DE HILDA HILST: A PRESENÇA DO TRÁGICO E DO CÔMICO NA PEÇA A EMPRESA

Dissertação apresentada ao Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas como parte dos requisitos exigidos para a obtenção do título de Mestra em Artes da Cena. Área de concentração: Teatro, Dança e Performance. ORIENTADORA: Profa. Dra. Suzi Frankl Sperber ESTE EXEMPLAR CORRESPONDE À VERSÃO FINAL DA DISSERTAÇÃO DEFENDIDA PELA

ALUNA JOSILAINE CÁTIA GONÇALVES, E ORIENTADA PELA PROFa. DRa. SUZI FRANKL SPERBER.

CAMPINAS 2015

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Dedico à memória de meus pais e de meus avós. À minha companheira que, além de me fazer feliz,

ajudou-me durante esta caminhada, compreendendo-me, ensinando-me, com a atenção e o carinho refletidos na felicidade que sinto nesse momento.

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Agradecimentos

À Suzi Frankl Sperber, orientadora, pelo acolhimento com carinho e extrema compreensão. Pelo incentivo e dedicação para a construção deste trabalho e sabedoria, além de sua simplicidade de ser para orientar. Pelo estímulo a produção e pela leitura atenta do texto, proporcionando maior precisão nos termos usados.

Aos professores do curso de mestrado em artes da cena que ajudaram a enriquecer minhas experiências. Por meio das discussões em aulas, pela disponibilidade.

A todos os funcionários da Pós-Graduação pela receptividade e boa vontade em tentar ajudar.

Aos meus amigos, em especial, José Eduardo Viglio, Cristina Cortinhas, Débora Duarte, Meire Helen Godoi , pela compreensão do inevitável isolamento diante do trabalho acadêmico.

Aos meus irmãos, em especial a minha irmã , Gislei Cristina Gonçalves, que me serviu de exemplo com toda sua dedicação e garra em sua vida acadêmica.

À Secretaria de Educação do Estado de São Paulo que acreditou e financiou este trabalho.

À Diretoria de Ensino de Bragança Paulista que auxiliou e compreendeu todas as estapas deste projeto.

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Resumo

A presente dissertação pretende analisar aspectos da tragédia moderna e do cômico na peça A Empresa, escrita por Hilda Hilst, e procura estabelecer um diálogo com a teoria da mise en abyme, pois é através deste recurso linguístico que se instaura a tragédia na vida da personagem América. O texto se caracteriza pela inevitável destruição da personagem provocada pelo seu alto potencial reflexivo e de imaginação. Assim como os elementos estéticos da tragédia moderna utilizados em sua construção, encontramos referências do riso, do humor, que ajudam a compor a noção de texto trágico com traços do cômico nessa dramaturgia. Sendo assim, a tessitura teatral da autora potencializa o “mundo do texto” lançando mão de recursos trágicos e cômicos, para apontar um aspecto em específico contido no interior da obra, como: o entendimento do mundo, as personagens e a teatralidade presente na dramaturgia.

Palavras-chave: Hilda Hilst. Teatro Contemporâneo. Mise en abyme. Linguagens teatrais.

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Abstract

This dissertation intends to analyze aspects of modern tragedy and comedy in the play A Empresa, written by Hilda Hilst , and seeks to establish a dialogue with the theory of mise en abyme as it is through this linguistic resource that is established in the tragedy character's life America. The text is characterized by the inevitable destruction of the character caused by their reflexive potential and imagination. As well as the aesthetic elements of tragedy used in its construction, we found the sarcastic laughter references, which help make up the notion of tragic text with comic traces of this drama. Thus, the fabric of theatrical author enhances the “text World " making use of tragic and comic resources , to point out one aspect in particular contained within the work , as the understanding of the world of the characters and the theatricality in this drama .

Keywords: Hilda Hilst . Contemporary theater . Mise en abyme . theatrical Linguagens Sumário

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Sumário

Introdução ... 10

Capítulo I - Na trilha dos escritos hilstianos ... 17

1.1 – Vida ... 17

1.2 – Os vislumbres de Hilda Hilst com a existência humana ... 18

1.3 - Hilda Hilst e a tessitura teatral...25

Capítulo II- Pressupostos teóricos para a interpretação dos diálogos de linguagens cênicas...31

2.1-Mise en abyme...31

2.2– Tragédia moderna...42

2.2.1–Reflexões sobre o sentido trágico...48

2.3 – O Cômico...54

Capítulo III- Análise da peça A Empresa 3.1 – Personagens e cenário...61

3.2 - Considerações iniciais para a análise...63

3.3 - O texto como objeto material...63

3.4 – A heroína tragicômica América –um mapeamento de sua trajetória no sistema opressor de A Empresa...65

3.5 –A inquietude da heroína suas interrogativas...78

3.6 - O efeito de situações cômicas no texto...109

Considerações Finais... 114

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Introdução

Motivada por razões pessoais e em contato, na graduação, com seu trabalho e também com uma entrevista cedida pela autora, ao Jornal Diário de São Paulo em 29 de abril de 1973:

As gentes, as pessoas em geral têm medo da idéia, da extensão metafísica de um texto, mas tanto minha prosa como a minha dramaturgia existe somente porque acredito que o próximo século será metafísico. Não me interesso pelas pequenas odisséias domésticas, interesso-me pela situação limite do homem. Não me peçam para pôr os pés da terra se o que pretendo é o fogo do espírito. O espírito é voraz e sofre tensão dolorosa e contínua. Eu sofro de intensidade e de paixão. E gostaria de ter as plantas dos pés sobre a esplêndida superfície da cabeça. (VIANA, Diário de São Paulo, 29/04/1973).

escolhi estudar o teatro de Hilda Hilst, que é um pouco esquecido talvez pela falta de fontes existentes a seu respeito. Trabalhei em particular com a sua primeira peça A Empresa texto de 1967, que nunca foi alvo de grandes investiduras, sendo assim não temos muitos registros. Em função disso, ainda na graduação comecei a ler a dramaturgia hilstiana.

Foi então que decidi pesquisar a primeira peça da autora. Talvez o leitor esteja se questionando: por que este texto? Considero que essa tessitura hilstiana tem análises importantes sobre o modo da construção interpretativa, ou seja, não ocorre a saturação da interpretação. Com a introdução de várias informações, através da história, somos convidados a “reorganizar” o crivo interpretativo e isso torna o processo epistemológico muito produtivo, pois a forma, a estrutura e os temas se entrecruzam nas narrativas. Entre os temas temos os incidentes de abuso de poder que, usualmente, instituições promoveram prisões, torturas e mortes que iam contra aos direitos humanos e a constituição da democrática no país.

Tomei uma resolução: vou analisar a peça A Empresa. Esta decisão me lançou em um mar de conjecturas. Tantas histórias em uma só “Qual a melhor escolha? ” – me deparei com os estudos sobre mise en abyme com enfoque na reflexão da narrativa.

“Onde estaria a melhor saída para iniciar minhas reflexões? ” “Me debruçar em alguma corrente teórica para me sentir segura? ” – talvez – mas, resolvi transitar, en passant, por algumas correntes teóricas, fosse porque constitui algum fato explicativo da temática,

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fosse porque, simplesmente, desencadeia em meu ser deliciosas descobertas por meio de sensações.

Em face do que ficou dito nos parágrafos precedentes, meu caro leitor, pode-se concluir que minha escolha não é um ato gratuito, e que meu ponto de vista e o meu corpo

serviram de diretrizes para o esboço de minhas reflexões. Hilda Hilst, mesmo com sua incontestável colaboração para a literatura brasileira,

pouco é lembrada como uma escritora de textos teatrais. Nos estudos críticos precedentes a este, sobre a autora, observamos que suas peças teatrais são muitas vezes postas de lado.

Durante sua carreira literária, Hilda Hilst compôs uma obra multifacetada e

singular. A princípio, dedicou-se à produção poética, de 1950 até 1966. Pouco depois, entre 1967 e 1969, escreveu oito peças teatrais; posteriormente, em 1970, lançou um livro de ficção, Fluxo-floema. Até 2004, ano de sua morte, a autora alternou seu estilo literário entre prosa e poesia.

Com a publicação de Fluxo-floema, a autora obteve o reconhecimento da

importância de sua obra. A escrita de Hilst transita em lugares antes desconhecidos. Surgem, nesse momento, textos que auxiliaram no entendimento da linguagem literária da escritora, mas tivemos também uma enxurrada de textos, publicados em diversos veículos de comunicação, que diziam que seus escritos eram de difícil compreensão. Na década de 50 e 60, temos pequenas notas, tímidas resenhas e poucos textos mais ensaísticos.

Muitos desses últimos textos a que nos referimos limitaram-se em abordar a obra da autora por repetições superficiais de opiniões alheias. Parece claro que esse tipo de atitude contribuiu para reforçar o legado de escritora genial, mas incompreendida: seus textos tanto foram concebidos no terreno impalpável do sagrado, como no âmbito das reflexões existenciais.

Por outro lado, não podemos nos esquecer de que sua reclusão em Campinas, a partir de 1965, somada ao seu estilo de vida, ajudaram a criar pré-conceitos em torno de sua obra aparentemente enigmática.

Apesar de todos os mitos construídos em torno da escrita de Hilda Hilst, temos um número extenso de trabalhos que abordam sua obra literária. Confundindo-se às vezes com crítica, a maior parte desses textos consiste não apenas em explicitar afirmações proferidas por críticos renomados, mas também em seguir sugestões de pesquisas propostas por esses críticos.

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Os estudos críticos sobre sua dramaturgia nos parecem ainda pouco difundidos nos meios acadêmicos, em termos de uma crítica acadêmica regular. Essa constatação deve-se em parte à quantidade de textos produzidos em torno da singularidade de sua obra em prosa, não classificada em nenhum gênero, assim como sua linguagem de difícil acesso e ao legado de reconhecimento do valor artístico dos textos teatrais. A dificuldade apresentada por eles para os encenadores já foi referida por Rosenfeld:

A dramaturgia de Hilda Hilst acrescenta uma nova dimensão ao teatro brasileiro e este, que ultimamente se abriu a tantos estilos e correntes, numa experimentação fecunda e muitas vezes arriscada para as companhias profissionais, decerto não demorará em “descobrir” a nova dramaturgia. (ROSENFELD, 1969, p. 11)

Rosenfeld, em tom de reverência e profecia, declarou certo acolhimento que as peças de Hilda ainda receberiam das companhias teatrais, destacando e antecipando seu valor para a dramaturgia brasileira.

Entretanto, ao contrário do que esperava o ensaísta, a quantidade de montagens não atingiu a expectativa da aposta precedente. Os registros contam com apenas oito encenações. Parte desse acontecimento, segundo Vincenzo (1992), é proveniente do diferencial estético de suas peças. Ou mesmo porque não houve um interesse em relação aos textos teatrais produzidos pela escritora.

Tais leituras, como a de Rosenfeld, ao contrário do que pretendia, parecem ter colaborado ainda mais para “ilhar” os textos hilstianos de um provável interesse do público leitor e mesmo dos encenadores. Desde as primeiras críticas, esses e outros aspectos de suas peças, como os temas subjetivos, deixaram bem claro para o leitor/encenador que se tratava de uma obra envolta em enigmas a serem desvendados.

Esses estudos, portanto, apontam para a presença dos temas deslocados do

contexto vigente e não apresentam, de maneira rigorosa, uma análise precisa e aprofundada, com uma reflexão de um estudo específico, cito como exemplo, a questão do gênero, sobre a obra teatral de Hilda Hilst.

Obviamente, os estudos críticos da dramaturgia de Hilda Hilst são ainda

insuficientes para lhe conferir relevo maior, não podemos deixar de observar que o estudo minucioso da obra se faz necessário. Isso devido à sua composição cênica com técnicas incomuns na dramaturgia, como a mise en abyme. Não podemos deixar de pensar que os estudos críticos estão permanentemente em construção, e é natural que a obra passe por

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múltiplas interpretações, pois os textos críticos são construídos a partir de critérios que servem para guiar o estudo. Um dos critérios mais recorrentes é a inclusão de pressupostos teóricos desenvolvidos no mundo acadêmico.

O presente texto tem como base os estudos da mise en abyme, da Tragédia e do Cômico na abordagem teórica de Dällenbach (1989), Williams (2002), Bergson (2001), no sentido de fundamentar uma interpretação do texto teatral de Hilda Hilst. Recorremos a essas bases conceituais com a proposta de desvendar a tessitura teatral que a dramaturga compôs, e elucidar a “mistura de gêneros” e a teatralidade por meio da utilização de elementos recorrentes da tragédia, da comédia e da escrita em abismo na peça A Empresa (também chamada de A Possessa).

Levando em consideração a complexidade de sua obra e, também o tempo para a elaboração de uma dissertação de Mestrado, a dissertação tem como objetivo discutir alguns grandes eixos de reflexão que continuam a sustentar debates, uma vez que não formularemos definições normativas do texto teatral. Apresentaremos questões para facilitar a compreensão de um mundo dramático fecundo como o de Hilda Hilst e propor que sejam considerados os aspectos trágicos, cômicos e a teatralidade apontada por esta proposta de trabalho.

I. Análise do texto teatral com base na interpretação

Com a intenção de elucidar o trabalho a ser feito na interpretação dos princípios trágicos, cômicos e da mise en abyme como teatralidade na peça A Empresa, examinaremos o problema interpretativo do texto teatral, já que consideramos as reflexões desses gêneros e desse recurso linguístico pertinentes para a descrição do texto em seus elementos estruturais. A partir daí, lançaremos um pouco mais de luz sobre alguns aspectos, ainda mal delineados, no terreno comum entre o que o texto fala e como o texto se organiza na sua composição.

Para a composição deste texto, algumas questões são aqui levantadas: a). Como interpretar uma obra literária, já que esta apresenta ao leitor os sentimentos e afetos humanos, e traz em suas entranhas uma forma de conhecimento do mundo por meio da representação artística? b). De que maneira é possível a interpretação abordar o significado do enunciado e da enunciação nos textos teatrais?

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com a interpretação permite a aproximação da compreensão do mundo existente na obra. Não se trata de uma identificação mecânica do pensamento que guia uma determinada obra artística. Pelo contrário, busca-se, no reconhecimento interpretativo, a dimensão poética da linguagem, ou seja, busca-se ver o texto em seu aspecto organizacional interno como um funcionamento sob o ponto de vista enunciativo.

A postura aqui utilizada é que a análise interpretativa é capaz de tornar

compreensível o objeto analisado, mais do que sua simples aparência ou superficialidade. A prática interpretativa de uma obra literária tem “[...] a incumbência de dar conta do significado, da estrutura da possibilidade e do alcance metafísico dos fenômenos que se apresentam na experiência estética. ” (PAREYSON, 1997, p.4).

Na perspectiva de Pareyson (1997), uma obra artística quando tratada de forma interpretativa significa realizar uma análise detalhada dos dados apresentados, tendo a intenção de apontar um aspecto em específico contido no interior da obra, como, por exemplo, o entendimento do mundo, das personagens tragicômicas e da teatralidade presentes na dramaturgia de Hilda Hilst.

A interpretação realiza e opera os sentidos e as significações de uma realidade própria construída a partir do texto literário. Vamos admitir que o texto teatral e a teatralidade de Hilda Hilst funcionem com várias significações, de maneira que não há uma determinação de tema, de gênero, de encenações. De igual maneira, podemos ter várias opções de interpretação devido à sua construção sintática para um dado aspecto específico.

Nessa abordagem, a prática interpretativa é definida por um “jogo”, no qual o intérprete, com sua visão particular e sua pré-compreensão do universo, coloca-se em harmonia com algum elemento da obra artística. Para que ocorra procedência, é necessário entrar na trama do texto e dialogar com ela, seguindo em busca da aproximação do seu sentido possível, estabelecido por meio da compreensão dos seus elementos.

Segundo Pareyson (1997), a interpretação se concretiza por meio de um diálogo do leitor/encenador com a obra, em que o sujeito levanta questionamentos e respostas sobre um determinado elemento ou pensamento constituinte dela, indo ao encontro com as mais gerais condições da existência humana.

A análise interpretativa com apontamentos sobre a mise en abyme, o trágico e o cômico tem, aqui, a finalidade específica de compreender as formas da linguagem, as significações, os sentidos contidos na estrutura do texto, a teatralidade, para que possamos

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encontrar algum conhecimento do “homem”, em específico, o homem que vive o paradoxo da visão trágica com um sentido cômico da vida, tal como revela o mundo tragicômico de América, apresentado pela poética de Hilda Hilst.

Pode-se admitir, ainda, que a função da prática interpretativa é demonstrar os termos apresentados na linguagem poética construída pelo autor, para, então, levantar hipóteses sobre o mundo representado na obra. Nesse sentido, sugerimos, a compreensão da linguagem poética, por meio de um aprofundamento do pensamento sobre os termos, os sentidos, as formas e a teatralidade do texto, para que possamos levantar proposições sobre o mundo.

As condições da existência humana e a expressão do mundo podem ser concebidas por meio da forma estrutural do texto teatral – nas partes do texto, na fala, no caráter e no pensamento das personagens, nas indicações cênicas, na organização, na composição e na teatralidade– como um organismo vivo pronto para ser desvendado pelo leitor.

Nossa proposta, ao iniciarmos esta reflexão, seguindo o caminho da interpretação já referido é entender o sentido das ações e as das personagens e de suas finalidades, levando em consideração não somente o que dizem ou fazem, mas também o que deixam de dizer.

Pontuamos alguns processos centrais, relacionados à prática interpretativa da obra de arte, como o reconhecimento da importância das significações e as referências. Para obter as significações e as referências do mundo proposto pelo texto, saber o que e acerca do que o texto fala.

Esse processo busca detalhar e explicar a obra em sua composição, na lógica imanente da sua escrita, como o texto é organizado na mecânica da intriga, nas ações, nas alegorias das personagens e nas indicações espaciais e temporais. É um mapeamento da estrutura do texto para encontrar as partes e como a escrita estabelece o mundo que deseja representar.

Sendo assim, percorreremos algumas etapas para o caminho da interpretação, que são constituídas pelo panorama da vida da autora; as influências na sua produção artística, os pressupostos teóricos sobre a mise en abyme, a tragédia moderna, o cômico, e a análise da peça cena a cena com foco no enunciado, na enunciação e nas personagens.

Em suma, a análise técnica dos elementos formais e constituintes da estrutura do texto permite a construção de uma base material para a interpretação dos sentidos e significações do discurso poético imposto pela escrita, para a compreensão da obra.

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Paralelamente, na tentativa de elucidar a presença dos princípios da tragédia na peça A Empresa, apresentaremos algumas discussões em torno da mise en abyme, lançaremos mão dos significados e dos sentidos deste recurso linguístico, elaborado por Dällenbach (1989) e Gide (1893).

Na sequência, levantaremos algumas hipóteses sobre a possível presença de princípios trágicos na peça em questão. Daí, dedicaremos um espaço à comédia e ao cômico, para trazermos à tona suas características. Para isso, utilizaremos as bases teóricas desenvolvidas por Henri Bergson.

Logo, realizaremos a interpretação da peça A Empresa, tendo como ponto de partida a descrição da estrutura do texto e sintetizaremos as ações e o percurso da heroína tragicômica (América). E, também, analisaremos a presença de características trágicas, e cômicas, no caráter, nos pensamentos e nas falas das personagens. Para que ocorra a concretização desse procedimento, será estabelecido um diálogo com o texto e sua teatralidade, permeado por questionamentos diante dos sentidos e das significações, operando de forma tragicômica.

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Capítulo I

NA TRILHA DOS ESCRITOS HILSTIANOS

1.1 – Vida

Hilda Hilst nasceu em Jaú, São Paulo, aos 21 de abril de 1930, filha única do fazendeiro, jornalista, poeta e ensaísta Apolônio de Almeida Prado Hilst e de Bedecilda Vaz Cardoso. Com pouco tempo de vida, seus pais se separaram, o que motivou sua mudança, com a mãe, para a cidade de Santos (SP). Seu pai, que sofria de esquizofrenia, foi internado num sanatório em Campinas (SP), tendo nessa época 35 anos de idade. Até sua morte, passou longos períodos em sanatórios para doentes mentais.

Em 1937, a pequena Hilda Hilst foi para o colégio interno Santa Marcelina, na cidade de São Paulo, onde estudou por oito anos. No ano de 1945, matriculou-se no curso clássico da Escola Mackenzie, também naquela cidade. Morava, nessa época, num apartamento na Alameda Santos, com uma governanta de nome Marta. Em 1948, entrou para a Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (Largo São Francisco), formando-se em 1952.

Moça de rara beleza, Hilda Hilst comportava-se de maneira muito avançada, escandalizando a alta sociedade paulista. Despertou paixões em empresários, poetas (inclusive Vinícius de Moraes) e artistas em geral. Em 1966, mudou-se para a Casa do Sol, chácara em Campinas (SP), onde residiu até sua morte. Ali, dedicou todo seu tempo à criação literária.

Poeta, dramaturga e ficcionista, Hilda Hilst escreveu por quase cinquenta anos, tendo sido agraciada com alguns prêmios literários do país. Foram sete prêmios literários, no total. Em 1962, o Prêmio PEN Clube de São Paulo, por Sete Cantos do Poeta para o Anjo (Massao Ohno Editor, 1962). Em 1969, a peça O Verdugo arrebata o prêmio Anchieta, um dos mais importantes do país na época. A Associação Paulista dos Críticos de Arte (Prêmio APCA) considera Ficções (Edições Quíron, 1977) o melhor livro do ano.

Em 1981, Hilda Hilst recebe o Grande Prêmio da Crítica para o Conjunto da Obra, pela mesma APCA. Em 1984, a Câmara Brasileira do Livro concede o Prêmio Jabuti a Cantares de Perda e Predileção (Massao Ohno - M. Lydia Pires e Albuquerque editores, 1983), e, no ano seguinte, a mesma obra recebe o Prêmio Cassiano Ricardo (Clube de Poesia de São Paulo).

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E, finalmente, Rútilo Nada, publicado em 1993, pela editora Pontes, leva o Prêmio Jabuti como melhor conto. Participou, desde 1982, do Programa do Artista Residente, da Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP.

Seu arquivo pessoal foi comprado pelo Centro de Documentação Alexandre Eulálio, Instituto de Estudos de linguagem, IEL, UNICAMP, em 1995, estando aberto a pesquisadores do mundo inteiro.

Hilda Hilst iniciou na criação literária escrevendo poesia e, consequentemente, sua linguagem passa a refletir seu olhar poético sobre tudo, mesmo após seu mergulho no campo da ficção – que se deu cerca de 17 anos após o primeiro livro de poesia com uma peça de teatro e cerca de 20 anos após, com um livro em prosa.

Ficou conhecida por ser uma escritora de difícil acesso, não apenas pelos temas complexos de que tratava, como também pela linguagem extremamente simbólica que empregava. O problema parece residir justamente no momento em que ambos se convergem e apresentam-se concomitantemente, dificultando a "decifração" de um pelo outro.

Alguns de seus textos foram traduzidos para o francês, inglês, italiano e alemão. Em março de 1997, seus textos: Com os meus olhos de cão e A obscena senhora D foram publicados pela Ed. Gallimard, tradução de Maryvonne Lapouge, que também traduziu Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa. Em 1999, sob a coordenação do escritor Yuri Vieira dos Santos, é lançado seu primeiro site na Internet.

Hilda Hilst faleceu em Campinas-SP, no dia 4 de fevereiro de 2004.

1.2 – Os vislumbres de Hilda Hilst com a existência humana

Transitando de um texto a outro dentro da obra de Hilda Hilst, deparamo-nos com várias questões filosóficas, sobretudo com questões da existência humana. A reflexão sobre o ser é sempre percebida, em sua escrita. Ao longo de sua trajetória literária, a autora lançou mão de diversos recursos linguísticos para abordar esse tema: ora a busca de Deus e do sagrado, ora a religiosidade e a espiritualidade, e, em outros momentos, a exploração da existência material da humanidade.

O duelo entre objetividade e subjetividade parece ser o dilema que a dramaturga enfrentava; a partir daí, surge o desejo em desvendar os mistérios sobre o infinito, o imaterial, o sublime, tudo em contraponto à condição humana, animalesca e sujeita às leis sociais.

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Em uma entrevista concedida para Ana Lúcia Vasconcelos no jornal "Leitura", Hilda Hilst foi questionada sobre os autores que mais a impressionaram, tendo mencionado Henry Miller, Otto Ranck, Ernest Becker, Koestler e, por fim, generalizou, dizendo: "enfim, estes escritores que tratam da dicotomia da razão com as emoções".

Nos textos hilstianos, percebemos um anseio em deixar transparecer este conflito no qual ela vive e imagina que todos nós enfrentamos: o duelo humano do corpo e do espírito. No entanto, a autora transforma todo seu conflito interior em literatura, pois a linguagem foi o caminho possível para estabelecer relações para que tudo fizesse algum sentido.

A busca pela compreensão e pela lucidez das coisas, da vida e do convívio social são temas recorrentes nos textos de Hilda Hilst. O poder da lucidez é, para a dramaturga, glória e desprestígio, porque clarifica e amedronta a existência humana que, muitas vezes, é vista como destino e acaso e percebemos de modo explícito em sua obra literária. "E o que foi a vida? Uma aventura obscena de tão lúcida" (A Obscena Senhora D, HILST, 2001, p.70).

Conhecendo um pouco sua obra literária, podemos observar o porquê de seu interesse pelos conhecimentos científicos, principalmente a física, pois através dos estudos da física quântica a autora encontrou algumas explicações para suas angústias existenciais. Diante desses dois mundos que habitam o ser, a dramaturga chega a explicar Deus de modo objetivo, sistematizado; isto é, recorre à razão para explicar as inquietações da alma humana. Em trecho de sua peça A Empresa a autora expõe justamente essa relação. Na quinta cena, o Inquisidor diz a América para fazer uma demonstração de um Deus. Então a garota desenha um triângulo equilátero e explica:

E se a mão não puder, hei de pensar o Todo sem o traço. (Aqui a figura perfeita deve ser projetada no quadro, por meio de um slide) E se o olhar a um tempo se fizer sol e compasso... Esfera (contorna o círculo) e asa... (América aponta os lados laterais do triângulo) Una... (contorna novamente a esfera) Tríplice... (América contorna os três lados do triângulo) e infinita. (HILST, 2008, p.83)

Na prosa, no teatro ou na poesia, da autora, verificamos o olhar diante das questões existenciais. Expôs com força suprema, ou melhor, codificou em linguagem a fé, o sentimento de religiosidade, as coisas que não pertencem ao campo da razão. Esse sentimento tão forte em tentar explicitar de modo objetivo o que pertence ao campo da subjetividade é que faz a obra

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artística da autora ser tão instigante, apesar de uma enorme presença da angústia em seus textos.

A partir de 1967, Hilda Hilst deixou bem claro em seu novo estilo de escrita –o teatro– a sua percepção de mundo extremamente lúcida ao afirmar que o ser humano é constituído de matéria e espírito.

O ensaísta Anatol Rosenfeld (1969), em um artigo chamado "Hilda Hilst: Poeta, Narradora, Dramaturga", explica a recorrência da linguagem poética na obra de Hilda:

"O tema multívoco dos ratos, aliás, ressurge numa das peças (Aves da Noite) e também na ficção narrativa, fato digno de nota por revelar a persistência dos motivos que se mantêm através da obra poética, dramática e narrativa de Hilda Hilst."

A autora começa a carreira escrevendo poesia e, em diversas declarações notamos uma paixão pelo gênero. Talvez seja por isso que a linguagem poética tenha sido uma característica contínua durante a fase em que escreveu ficção e teatro. Hilst sempre foi considerada uma escritora de difícil acesso devido aos temas complexos que arquitetava com uma linguagem de alto teor simbólico. O impasse estava quando a autora alocava em seus textos a linguagem simbólica para explicar temas complexos; com esse tipo de escritura, o leitor ganha um papel fundamental em seus escritos.

A respeito da complexidade e dificuldade de sua escrita, Hilda Hilst afirmou em uma entrevista:

[...] parece que as pessoas não prestam atenção que existe um tipo de literatura não apropriada para você ler no bonde, no avião ou na cápsula, mas que exige do seu neurônio, para você, em um determinado instante, fazer também um processo de auto-conhecimento. (...) Se o universo está tão complexo, tão dividido, tão ambíguo, frente a uma esquizofrenia em plano mesmo do planeta, então como a literatura vai ser absolutamente clara, se você também fica cheio de perplexidades, complexidades e de ambiguidades? Então ninguém senta na mesa e diz: agora eu vou escrever um texto complexo, ou vou escrever o novo; não existe isso, você escreve o que é a realidade pra você (HILST, 1984, 5 jun).

Conhecedora dessa complexidade do mundo, a ela Hilda Hilst dedicou parte da sua escrita. Pensamentos sobre a existência do ser humano, sobre os problemas e os questionamentos que permeiam a vida como um todo, reflexões de cunho religioso, com

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referências às forças divinas, são alguns fundamentos que observamos na escrita da dramaturga.

Mesmo não tendo o devido reconhecimento como uma escritora exímia no início de sua carreira, Rosenfeld, em ensaio sobre o livro Fluxo-floema, afirma que “é raro encontrar no Brasil e no mundo escritores (...) que experimentam cultivar os três gêneros fundamentais de literatura – a poesia lírica, a dramaturgia e a prosa narrativa – alcançando resultados notáveis nos três campos” (1970, p.10).

Fora o gênero, que é considerado um recurso responsável por essa notabilidade da escrita hilstiana, temos a questão estrutural dos seus textos, que possuem características singulares. Os recursos estilísticos da autora são inovadores na cena teatral, já que Hilst experimenta modos característicos da linguagem subjetiva na sua escrita, como veremos no decorrer desta pesquisa.

O crítico literário Alcir Pécora considera que a linguagem empregada por Hilda Hilst é um “vocabulário final” (citando Rorty) “altamente idiossincrático”. Levando em consideração essas observações sobre a escrita de Hilst, muitas vezes o entendimento de alguma imagem, uma metáfora, ou mesmo, um "motivo recorrente", como preferiu chamar Rosenfeld, somente ocorre ao colocarmos esse motivo em questão em comparação ao mesmo motivo usado em outra obra da mesma escritora. A epígrafe de Simone Weil abre a peça A Empresa: “Pensar Deus, amar Deus, não é mais do que uma certa maneira de pensar o mundo”. A mesma epígrafe foi usada novamente para a abertura do livro Poemas Malditos, Gozozos e Devotos, de 1984. Ao utilizar esta epígrafe, a autora deseja chamar a atenção para os exemplos de vida de grandes heróis e mártires, e como eles podem ser importantes para a mudança do ser humano de dentro para fora, ou seja, no pensamento.

Em contato com a poesia hilstiana, temos um acesso ao conteúdo tanto de suas peças, quanto de suas obras em prosa não-dramática. Além disso, temos que reconhecer a sua versatilidade de estilo, já que ela conseguiu elaborar diversos textos em diferentes gêneros literários; não menos digna de elogio é a admirável unidade que toda sua produção consegue apresentar.

A escrita hilstiana contém traços inconfundíveis, tanto na forma, quanto no

conteúdo, e, também por isso, podemos identificar e estudar com mais cuidado os motivos recorrentes que a levaram a desenvolver uma tessitura com muitas formas, cito como exemplo

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o texto teatral que possui poemas, essa estratégia de escrita pode atender a tipos diferentes de leitor. A voz narrativa recheada de reflexão filosófica, a ausência de pontuação em alguns momentos, o fluxo de consciência que se transforma em diálogo ou em poema, a constante aproximação paródica que faz com gêneros antigos, a oscilação entre o tom erudito e refinado, a linguagem simbólica, a busca por um Deus, o trágico, o cômico, a mise en abyme e outros, são alguns traços comuns nos diversos textos que Hilst compôs ao longo de sua carreira.

A maior parte dos seus textos se apresenta no gênero narrativo de prosa; mas é, na realidade, um agrupamento das habilidades características e de um estilo próprio que Hilda Hilst desenvolveu tanto na poesia, quanto no teatro. Percebemos que sua prosa contém de tal maneira a palavra poética e a linguagem teatral. A construção, tanto do tema, quanto do verso e do diálogo desenvolveu-se na constituição de imagens discursivas em sua prosa. Então, é a partir dessas observações que consolidamos a ideia de que a compreensão e a interpretação a partir do texto é uma das melhores táticas de abordagem dos textos hilstianos. Tanto melhor se dá a compreensão de uma obra quando temos um conhecimento da forma e da estrutura do texto do autor.

Ainda em contato com seus escritos vemos imagens que permeiam sua obra artística, adotados e assimilados a partir do contato com autores que muito a impressionaram. De acordo com Oliveira (2013) que estudou a obra: Carta a El Greco de Nikos Kazantzakis, conhecido autor de Zorba, o grego, a obra de Nikos Kazantzakis é considerada quase um lugar-comum nos escritos que se produzem sobre Hilda Hilst. A leitura da obra coincide com o momento em que ela resolve, espontaneamente, abandonar o convívio social, de amores, de festas, de amigos etc., para morar em seu sítio próximo a Campinas onde viveu até sua morte.

Hilda Hilst declarou que essa decisão foi consequência da impressão muito forte que lhe causou a leitura de um livro de Kazantzakis: “(...) Quando li esse livro, Carta a El Greco, resolvi mudar pra cá. Resolvi mudar minha vida. Eu tinha uma casa gostosíssima em São Paulo, todo mundo ia lá comer, namorar, dançar – meus namorados, meus amigos, minhas amigas. Aí, li o livro e mudei minha vida.” (Hilda Hilst em entrevista concedida para a revista Cadernos de Literatura do Instituto Moreira Salles, número 8, outubro de 1999).

Podemos conhecer a importância da obra de Nikos nos textos hilstianos por meio da dissertação de Leandro Silva M. Oliveira, na qual realizou uma reflexão mais detida acerca do que, enfim, pode ter sido tão marcante para Hilda Hilst na obra do escritor grego; além

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disso, observou as semelhanças e as diferenças que podemos notar entre ambos. Ele conseguiu ir além da mera superficialidade de dizer que o livro a influenciou e, em consequência, motivou-a a isolar-se. Em verdade, ele verificou a visão de mundo, as reflexões que o autor tece, que temas abordou para que essa leitura tenha impressionado a escritora desse modo.

Segundo Oliveira (2013), trata-se de uma obra de raros exemplares distribuídos no Brasil e de edição antiga. O pesquisador teve acesso ao livro, com o título Testamento para El Greco, de 1975, sendo que a edição original grega é de 1961, esgotada há muitos anos. Em contato com o trabalho de Leandro Silva M. Oliveira notamos que a obra de Kazantzakis não é de fácil acesso. A obra utilizada foi localizada no acervo geral da Unicamp, na Coleção Sérgio Buarque de Holanda, e não circula; para sua preservação, necessitando ser manipulada com luvas. Além desse obstáculo para o contato com a obra, Leandro confessou que Zorba, o grego com tradução de Clarice Lispector, é um texto difícil de ser lido, pois é um livro com 356 páginas publicadas em uma fonte muito pequena, o que faz com que a leitura seja lenta e dificultosa.

Além disso, Oliveira (2013) afirma que o estilo do autor é de uma afetação

romântica, extremamente descritivo, com pobreza de metáforas por serem cheias de clichês e excesso de adjetivação. A narração é também algo repetitiva. Talvez todos esses motivos elencados pelo pesquisador fizeram com que poucos a tivessem lido e muito pouco ou quase nada se tivesse dito sobre a obra. A revista “Cadernos de Literatura”, do Instituto Moreira Salles, no exemplar dedicado a Hilda Hilst, limita-se a dizer que Carta a El Greco, “entre outras ideias, (...) defende a tese de que é necessário isolar-se do mundo para tornar possível o conhecimento do ser humano”, o que é um equívoco, uma vez que, de acordo com Oliveira, o livro não defende essa tese, apenas apresenta a vida romanceada de Kanzatzakis, cuja busca era a da compreensão do ser humano e do divino e que – a escolha individual do escritor – o levou a optar pela reclusão social, mas em nenhum momento mencionou que deveria ser um regra para que todos tivessem uma compreensão da humanidade.

Segundo Oliveira (2013), a reclusão social apresentada no livro faz parte da personalidade do autor grego, mas não é classificada como um caminho para o acesso do conhecimento humano, tanto que, em determinada altura da sua vida, optou pela aproximação das causas revolucionárias (capítulo 25, “Berlim”), passando pela pobreza e pela miséria de perto (capítulo 26, “Rússia”), servindo ao governo grego em uma missão de resgate (capítulo

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27, “O Cáucaso”); ou seja, mostrou que o principal dessa obra era a busca, e não o caminho selecionado, pois o narrador oscila o tempo todo entre diferentes crenças e opções de vida.

Diante do interesse pela obra artística de Hilda Hilst, lemos o que se publicou a seu respeito e, em meio a todos os textos, encontramos algumas dissertações sobre o teatro dessa autora: a dissertação de Mestrado de Francisco Alves Gomes, apresentada à Universidade de Brasília em 2013 e intitulada Hilda Hilst: Da dramaturgia ao poder e à cena – leituras das peças O Verdugo e O Rato no Muro, que teve como objetivo realizar reflexões sobre a ideia de poder na dramaturgia hilstiana, especialmente nas peças O Verdugo e O Rato no Muro, nas quais é latente a relação de poder entre oprimidos e opressores; e o trabalho de Éder Rodrigues, apresentado à Universidade Federal de Minas Gerais, em 2010, e intitulado O Teatro Performático de Hilda Hilst, em que estudou as relações entre o teatro e a literatura por meio de uma leitura das peças teatrais da escritora, tendo como eixo principal o conceito de performance em suas diversas variantes, a partir da perspectiva da literatura contemporânea e das reflexões sobre o caráter performático da escrita de Hilst.

Como pudemos observar, no universo acadêmico, encontramos uma dissertação que busca uma relação de seus textos teatrais com a linguagem poética e uma que trata os textos da dramaturga como performance. Não há, portanto, uma apresentação sobre a forma, o trágico, a mise en abyme e o cômico.

Sendo assim, realizaremos algumas reflexões que busquem relacionar de modo mais estreito a presença do trágico, da mise en abyme e do cômico que evidencia imitativamente a condição humana, pois sabemos que, a todo momento, estamos sujeitos a uma reviravolta interpretativa de nossas ações. Essa mudança repentina, do nosso estado, pode nos favorecer ou desfavorecer em termos de bem-estar. É sabido que não podemos ter controle sobre o imprevisto; vale então, estarmos preparados para essa condição instável da vida, pois, deste modo teremos uma chance de criar estratégias para lidar com o improvável.

É nesse sentido que a tragédia é formadora do indivíduo e o cômico deformado destrói certezas. A vida está sujeita à mudança. Aprender a aprender por meio da tragédia seria como estar aberto para descobrir o caminho que leva até onde já se está ou a outros caminhos possíveis.

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1.3 - Hilda Hilst e a tessitura teatral

Pensar o teatro de Hilda Hilst produzido nos anos de chumbo como parte

significativa de sua produção literária, significa compreender que a escritora, angustiada com a Ditadura Militar na qual o Brasil estava inserido, tenta, por meio do texto dramático, expor uma mensagem para interagir com o “outro”, já que a linguagem cênica, por si só, leva o espectador à transformação. Ou seja, a escritora, atenta às demandas da subjetividade de seu tempo, traz à tona a tessitura teatral, realizando reflexões por meio de personagens oprimidas por sistemas totalitários, que, em situações-limite, cogitam sobre o que é mais essencial para o homem além da vida.

O teatro de Hilda Hilst elabora questionamentos à vida e à falta de liberdade. Tais questionamentos são explorados por personagens com pouca ação, porém, complexas, pensantes, inseridas num universo de reflexões sempre cunhadas pelo desejo de libertação.

O crítico literário Alcir Pécora, na apresentação do Teatro Completo (2008), afirma que a dramaturgia de Hilda Hilst está dentro de um processo de efervescência cultural, uma vez que as questões políticas são incorporadas de maneira substancial no fazer artístico. Sendo assim:

o fato é importante, pois se trata de um período no qual o teatro em geral, em especial o teatro universitário, adquire grande importância no país, tanto por sua significação política de resistência contra a ditadura militar como pela excepcional confiança na criação jovem e espontânea que se alastrava pelo mundo todo. (PÉCORA,in: HILST,2008, p.7)

De acordo com Pécora (2008), o teatro adquiriu uma função importante no meio da censura instituída no país, não só por se contrapor a ela, mas também pela sua capacidade de diálogo com as transformações estéticas que estavam ocorrendo nos diversos setores artísticos. Surgiu, nesse momento, uma dramaturgia que não foi panfletária. E a escrita dramática surge para Hilda Hilst como uma necessidade de estabelecer contato com os acontecimentos do seu tempo.

Diante de sua trajetória, compreendemos que a escritora tenha optado por fazer teatro justamente em um período tão conturbado do momento histórico brasileiro. A partir de 1964, quando o novo regime militar se instalou no país, diversos artistas utilizaram o teatro, e outras artes, como ferramenta para denúncias e debates. As manifestações artísticas durante o

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regime ditatorial eram força política; sendo assim, refletiram, diretamente e indiretamente, as angústias e os questionamentos pertinentes à sociedade. Com os Atos Institucionais ordenados no Brasil, a Ditadura assumia uma forma autoritária por meio de ações que buscavam manter o controle sobre povo.

Neste período não só o teatro, assim como a imprensa e outras expressões artísticas sofria a censura e a repressão. (...) Dentro deste contexto de regime governamental arbitrário, um grande número de textos é impedido de ser encenado, artistas são presos, estreias de espetáculos são proibidas, cortes e adaptações são exigidas junto às produções teatrais da época. No advento da ditadura no país e na ratificação extrema do exercício opressivo com a proclamação do A-I 5 [em 1968], a atividade teatral torna-se um dos grandes alvos de vigília e intervenção militar. A cena brasileira é tomada por grupos como o Teatro Opinião, o Teatro Oficina e o Teatro Arena, que exerciam uma práxis numa corrente de afronta, resistência e posicionamento diante do contexto (RODRIGUES,2010, p.15-16).

Segundo Rodrigues (2010), a dramaturgia de Hilda Hilst surge num momento em que o Brasil sofria as consequências causadas pela Ditadura Militar que regia o país naquela época. Mas os seus escritos teatrais não atingiram o público de imediato, conforme pretendia a autora, como mostra o fragmento do artigo citado acima. Uma das hipóteses sobre o porquê de não ter atingido o público leitor foi dada por ela mesma, numa entrevista: “foi uma coisa de urgência (...). Mas a maneira complexa com que eu me expressei não deu certo” (HILST,1988,27 mar). Percebemos, nesse trecho, que, ao mesmo tempo em que ela se refere a sua obra como “complexa”, na mesma entrevista, explana não entender onde está a tão falada “complexidade” em seus escritos:

a peça se chama Auto da Barca [de Camiri], eu fiz como um Auto, onde a metáfora tem importância decisiva. E as pessoas acham difícil uma coisa simples e tranquila. (...). É para fazer toda uma metáfora com Che Guevara. Mas como eu escrevi esse texto na época da repressão, eu não queria ser fuzilada, torturada, mas não gostaram da montagem e fica o estigma de que eu sou difícil (HILST,1988,27 mar).

A autora intencionou, com sua tessitura, estabelecer uma relação com os conflitos originados pela Ditadura Militar, mas não obteve o impacto que esperava nem mesmo após o regime Militar; ao contrário de outros autores de sua época, como Leilah Assunção, autora da peça Fala baixo senão eu grito que, apesar de ter sua montagem censurada em São Paulo, depois ganhou significativo espaço na crítica especializada e sucesso de público. Em seus

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discursos sobre suas peças teatrais, Hilda Hilst dizia: “Eu tinha muita vontade de me comunicar com o outro imediatamente”.

Para Pécora (2008), era essa a particularidade da escritura teatral hilstiana, que se pretendia, mas não atendia a uma proposta de continuidade:

Quer dizer, o teatro esteve tão agressivamente no centro do debate político e cultural contemporâneo, e Hilda Hilst, ao escrever todas as suas peças nesses dois anos trepidantes, certamente entendia o apelo único que o gênero parecia capitalizar naquele preciso momento, nunca mais tornando a escrever teatro depois dele. (PÉCORA,in: HILST,2008,p.7)

Ilustre prosadora e poeta, Hilst percebe que esse tipo de escritura, poesia e ficção, não conseguiria dar conta das questões sociais vigentes em 1967. Com a dramaturgia a autora acreditava que iria conseguir discursar sobre as problemáticas em voga na sociedade brasileira. É preciso levar em consideração que é uma voz feminina abordando temas conturbados para a cultura brasileira, tais como: a falta de liberdade de expressão, denúncia de um sistema vigente repleto de injustiças sociais e outros.

No livro Um teatro de Mulher, Vincenzo (1992) abordou essa questão da voz feminina, dizendo que:

Dentro de um clima de luta contra o que se chamava claramente de repressão e que atingira igualmente a todos, luta na qual se empenhavam aparentemente todas as forças vivas do país, as mulheres puderam encontrar sua oportunidade, especialmente no teatro, que se tornara verdadeiro foco de resistência. Como numa guerra em que elas são também recrutadas para o esforço comum, em que seu concurso se torna indispensável. Daí o lugar de preeminência que ocupam as preocupações políticas e sociais em suas primeiras peças e nas que lhes seguem nos anos 70. (VINCENZO,1992,p.15).

De acordo com Vicenzo (1992), a função de uma dramaturgia criada por mulheres tais como Leilah Assunção, Consuelo de Castro, Hilda Hilst, Isabel Câmara, Renata Pallottini e Maria Adelaide Amaral foi de grande valia para a apresentação das problemáticas que afligiam o país com a imposição do regime ditatorial. Hilda Hilst perpassa esse contexto, aderindo à proposta de criar textos teatrais para discorrer aos outros como uma espécie de denúncia, ainda que a censura estivesse presente. Segundo a pesquisadora,

[...] o traço marcante veio a ser o fato de se ter revelado uma produção mais consistente – muito mais resistente – sem aquele caráter esporádico de eventualidade, que assinalara a produção anterior (VICENZO, 1992, p.19)

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Para Vincenzo (1992), as autoras alcançaram a profundidade dos dilemas que o homem contemporâneo, em meio à falta de liberdade, vivia, tornando-o material denso e promissor para o processo de representação na tessitura teatral. Em seu trabalho sobre o surgimento de uma produção dramatúrgica escrita por mulheres, Vincenzo elenca algumas, e dedica-se à análise mais apurada de algumas peças teatrais no livro Um teatro de Mulher.

A estudiosa ressalta que o grupo de dramaturgas se iniciou com: Leilah Assunção, Consuelo de Castro e Isabel Câmara, e a essas foram acrescentados os nomes de Renata Pallottini, que iniciou seu trabalho um tempo antes, e deu continuidade na década de 70 e 80, e Hilda Hilst, que escreveu suas peças entre 1967 e 1969, e, a partir de 1978, de Maria Adelaide Amaral. Vincenzo acredita que Hilda Hilst foi uma das autoras que inauguraram uma vanguarda no teatro brasileiro, e, por esse motivo, é respeitada por ser uma dramaturga competente, comprovando, assim, sua capacidade de transitar por diversos gêneros literários. Entre 1967 a 1969, Hilst produz um total de oito peças, todas engendradas como temáticas que denunciam as questões sociais, políticas e individuais de uma ditatura militar.

As oito peças são: A empresa (ou A possessa), O Rato no Muro, O visitante, Auto da Barca de Camiri, As Aves da Noite, O Novo Sistema, O Verdugo e A morte do Patriarca. Em apenas dois anos, a escritora organizou uma dramaturgia de força singular, uma vez que conseguiu construir uma dramática que se sustenta à medida que as personagens envolvidas em situações-limite, em grande parte, são privadas de liberdade. Tal característica de sua dramaturgia confirma o que Purceno (2010) declarou a respeito do modo de escrita de Hilda Hilst:

A escritora dedicou praticamente a vida inteira à arte, trabalhando de forma disciplinada, lendo muito, como se executasse um trabalho braçal em nome do qual ela pudesse nomear a “inspiração”. Ao contrário do que se comenta, a obra de Hilda como um todo apresenta muita coerência nas questões propostas e mesmo no que diz respeito aos seus aspectos formais. [...] Desejava mudar aquele que a lia, e falar de estados extremos do homem. (PURCENO,2010, p.65)

Foi com o teatro que Hilst se conectou com as discussões políticas do momento da ditadura brasileira. Ao afirmar: “Como não podia haver comunicação cara a cara, então fiz algumas peças, todas simbólicas, porque eu não tinha nenhuma vontade de ser presa, nem torturada, nem que me arrancassem as unhas...”, a escritora deixa claro que o contexto era

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perigoso para qualquer tipo de manifestação às claras contra o sistema. A imaginação, na época da ditadura militar, era perigosa. Mas, era preciso levar para dentro das artes questões como tortura, censura, assassinato, protestos, enfim, era necessário lutar contra o regime militar.

No posfácio de O Teatro Completo, Pallottini (2008) afirma que Hilda Hilst é uma dramaturga que:

está optando por se comunicar com seu público através de situações, na maior parte das vezes, limítrofes, de situações de verdadeira crise. Um grupo de personagens é criado, em cada um dos casos para apresentar-nos um momento de vida em que se chega ao limite extremo de resistência humana. (PALLOTTINI,in:HILST,2008)

Com o teatro, Hilst configura uma migração de gênero literário conveniente, pois ela conseguiu trazer para o plano da dramaturgia aspectos essenciais a sua poesia já consolidada, criando, assim, um estilo diferente, principalmente por utilizar o simbólico para sistematizar e construir os dramas de suas personagens. Apesar de vigorar por um curto período, sua transição de gênero – para o teatral – foi uma escolha consciente, porque foi um modo de lutar junto e através da arte, como afirma Pallottini. Pelo fato de incorporar esses temas da liberdade de expressão, a alteridade e outros em seu fazer artístico, a escritora, além de ser consciente das transformações de sua época, também acreditava que a linguagem seria um modo de transformar a realidade opressiva do momento. Mas sabemos do seu descontentamento com o reconhecimento de sua escritura dramática: “As pessoas vão ao teatro para se divertir; ninguém vai ao teatro para pensar. ” Como afirma Pallottini:

Fazer o público raciocinar, repensar o mundo, e as condições em que estão inseridos os seres humanos é um dos aspectos basilares da dramaturgia hilstiana, que, apesar de curta, é imbuída de grandes achados, tendo em vista que a autora redimensionou sua poesia, e, “toma para si a liberdade da linguagem poética, a liberdade dos recursos líricos”. (PALLOTTINI,in: HILST,2008)

Segundo Mariângela Lima Alves (1980) o momento da ditadura militar no Brasil impediu a participação do cidadão na vida do país. Com os atos institucionais houve uma divisão do país entre os poucos comandantes e os muitos comandados. Sendo assim, “[...] havia apenas o sentimento geral, claramente expresso na produção cultural, de que as trevas

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eram demasiadamente longas e que era muito difícil, embora não fosse impossível, mobilizarse contra elas.” (ALVES,1980,p.52)

Dentro desse contexto, Hilda Hilst cria sua dramaturgia. O país, assolado pelas Regras Institucionais que culminaram no AI-5, que coibiu de forma direta a atuação dos artistas brasileiros, vivia um clima de tensão e de censura das atividades culturais.

A partir da escrita teatral, Hilda Hilst foi capaz de esclarecer as formas de opressão vigentes na sociedade, o que talvez justifique a inserção de instituições como a Igreja e o Estado, que figuram em A Empresa, já que representam espaços de opressão em que o sujeito é convencido a seguir diretrizes, muitas vezes discordando delas. Percebemos, em sua tessitura, que as personagens vivem em constante busca pela liberdade.

Sendo assim, Hilst desenvolve a escrita dramática com uma intenção bastante intensa: dialogar com aqueles que sofriam sob os ditames da censura, qualquer que fosse a sua ordem. As peças têm temas iguais, como a ideia de opressão, que se constrói na relação opressor versus oprimido. Então, a dramaturga, ao refletir de forma artística os acontecimentos do Brasil, propõe algo superior: que, diante das questões que fogem da nossa racionalidade, é preciso lançarmos mão de nossa subjetividade.

Das oito peças escritas por Hilda Hilst, escolhemos A Empresa por entender que possui elementos com sentidos trágico e cômico. As estruturas dramáticas ficam complexas à medida que elementos e funções de cada gênero se invertem e se misturam. Antes de iniciarmos nossa análise, vale ressaltar algumas caraterísticas da tessitura teatral hilstiana.

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Capítulo II

PRESSUPOSTOS TEÓRICOS PARA A INTERPRETAÇÃO DOS

DIÁLOGOS DE LINGUAGENS CÊNICAS EM A EMPRESA

Em conformidade com a trajetória literária de Hilda Hilst, compreendemos que seus textos podem ser lidos e interpretados por diversos vieses, de tal modo que não estejam restritos a regras canônicas de um determinado gênero textual, como no contexto da dramaturgia, do drama ou da comédia.

Por causa dos gêneros literários que a autora trabalhou – prosa, poesia e teatro – encontramos uma mistura de gêneros que possibilita maior amplitude na análise literária. Em sua tessitura teatral, além da mescla praticamente constante com o gênero da poesia e da narrativa, podemos reconhecer traços de diferentes linguagens teatrais que fazem parte de uma mesma peça.

É valido, para um estudo mais cuidadoso das peças de teatro de Hilda Hilst, perceber as linguagens com as quais trabalhou, para refletir sobre as estruturas construídas pela dramaturga. Problematizaremos o trágico e o cômico no texto. É claro que em uma peça de gênero impuro, contaminada por elementos do campo religioso e do sagrado, examinaremos também a linguagem ora erudita, ora popular.

Em A Empresa observaremos a presença de uma noção da tragédia moderna e do cômico, visto que há um sentido trágico e cômico latente em seus textos.

2.1-Mise en abyme

O uso do metatexto na peça A Empresa articula o que podemos chamar de uma narrativa mise en abyme. O termo mise en abyme será usado aqui, com base nos estudos de Dällenbach (1989), como um recurso linguístico do código. Esse recurso linguístico presente no texto ocorre quando a obra artística tem um olhar para si, isto é, existe uma reflexão textual sobre a própria obra com a intenção de revelar o funcionamento da tessitura.

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fragmento de um texto capaz de reproduzir, tal como uma cópia, o texto em seu todo. Para Gide, esse mecanismo poderia ser exposto no texto a partir de analogia como: a imagem da Santa de Guadalupe na qual em seus olhos é formada uma outra imagem da própria Santa.

No ato da escrita, o recurso mise en abyme é articulado nos seguintes termos:

Eu escrevo sobre este pequeno móvel de Ana Shackleton que, à rua de Commailles, se encontrava em meu quarto. Era lá que eu trabalhava; eu o amava porque, no espelho duplo da escrivaninha, eu me via escrever. Entre cada frase, eu me olhava, minha imagem me falava, escutava-me, fazia-me companhia, mantinha-me em meu estado de fervor (GIDE apud CORONA,2009,p.126).

Por meio desse depoimento, Dällenbach diz que podemos articular algumas injunções sobre a noção da escrita em abismo. Elas estão postas no fato de que “[...] a especularização escritural se sustenta pela especularização imaginária”. Num primeiro sentido, isso é posto na medida em que é somente esse aspecto imaginário que consegue construir a mise en abyme ou que, em outros termos, “[...] permite ao sujeito da escrita fruir obsessivamente a imagem, figurando-a tal como ele se quer ver: escritor”. (Dällenbach 1989, p.17).

A Empresa é um texto cuja narrativa ensina e reflete sobre o processo da

linguagem. A narrativa é composta por ao menos três histórias que são retomadas umas nas outras, num processo de encadeamento. A história é a mesma, mas ela se completa e se transforma, gerando outra história, num ritmo que cria novas imagens. Com esta característica de recontar a história, retomando-a, leva-nos à identificação do uso da mise en abyme por parte de Hilda Hilst.

No caso da peça, observamos o cuidado da dramaturga com o processo da criação, que por consequência induz o leitor refletir a escrita, assim como a própria autora. Então, Hilda Hilst consegue fazer com que o olhar não seja fixado apenas no conteúdo e revela que a narrativa é forma, estrutura e possui um papel. Tem-se, então, um processo de auto-reflexão da autora demonstrado através da personagem América. Ao contar história para dizer o que pensa percebemos que cada indivíduo tem um mundo ‘particular’ dentro de si, isto é, cada indivíduo tem o seu mundo ‘particular’. As palavras declaradas estão imersas no sentido e no valor de como eu vejo e entendo dentro mim, e para o outro elas fazem sentido de acordo com a sua visão que tem do seu mundo.

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As diversas formas de narrativas, a partir de um único ponto, possibilitam que a narrativa seja reconstruída. Este efeito faz da obra hilstiana um texto rico e instigante. Ela buscava uma mudança através da linguagem, muito mais do que através de ações; em seus posicionamentos afirmava que, para alterar o presente, é preciso haver um rearranjo das questões interiores:

comecei me desestruturando depois de 20 anos de poesia arrumada. E esta linguagem ordenada, de comportamento que quero desordenar, reflete a época, o momento visceralmente conturbado. É preciso dominar uma desordem para que aconteça alguma novidade real dentro de você. Há uma reformulação da linguagem como deve haver uma reformulação de comportamento (HILST,1985,4 ago).

Percebemos ecos da fala da escritora na personagem América que, através das histórias que conta, envolve os integrantes do colégio e o leitor num jogo que demanda reflexão, dedicação, atenção, mas que também gera satisfação e prazer ao entrar em contato com a narrativa.

De certo modo, talvez seja possível percebermos que a mise en abyme, na peça, causou toda a transformação, repentinamente, no destino da mulher jovem, fazendo-a insatisfeita com sua existência. O texto foi marcado pelo trágico com o recurso da mise en abyme – ou pelo menos por uma aspiração ao gênero.

A transformação da narrativa proposta pela jovem ao tomar outra realidade

permite entender que a personagem é autora da sua própria ação, do seu destino e, em comunhão com o colégio e na constante busca pela sua autonomia, através de transformações, visa um possível convívio com a qualidade de suas relações sociais e das relações com o colégio. Assim, busca, através do diálogo, caminhos para a compreensão da realidade problematizada, e conscientemente sabe que este artifício humano é capaz da transformação individual e coletiva.

De acordo com Cassadei (2012), a especularização também pode ser imaginária na medida em que há uma defasagem necessária entre o ato de escrever e o ver-se em escrita: a superposição dos dois atos é impossível fora de sua constituição imaginária, na medida em que é necessário parar de escrever para ver-se escrevendo.

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série de questões com teor de confissão e até mesmo de testemunho. Ou seja, América testemunha o que a sua criação artística ocasionou. A distorção da simbologia edificada pela jovem, derivada em parte do jogo entre a falta do entendimento da existência humana e o mundo metafísico, desdobra-se nas angústias derivadas da má compreensão do Monsenhor. Como em muitos textos é preciso parar de escrever para ver-se escrevendo, essa defasagem guia o fluxo da narrativa. Quando América começa a viver a história que criou, constrói-se, ao longo da narrativa, uma espécie de “auto-retrato” da própria autora, e pode ser lida como uma encenação de uma memória.

Segundo Duarte (2014) Hilst, desde o início de sua carreira a escritora, ansiou ser popular, lida e reconhecida pelo público leitor. Com a intenção de ser lida, investiu numa poesia de fácil entendimento, feita nos modelos da tradição literária, sem novidade, logo depois escreveu seu teatro (1967-1969), porque, segundo seus discursos, sentia uma premente necessidade de comunicação.

Oscilando entre reflexão e confissão, o texto permite uma leitura do trabalho literário funcionando como a encenação de uma representação dos possíveis sentimentos da escritora quanto sua obra artística. O tema da relação intrínseca entre a existência humana e a alteralidade, assim como o espetáculo do corpo em dor, também presentes na peça, são outras características de atos confessionais.

Gide, em seu romance Les Faux Monnayeurs, de 1925, aponta o que ele acredita ser a mise en abyme, na medida em que um dos personagens é um escritor que, na narrativa, está escrevendo um romance com o mesmo nome do livro que o contém.

Além dessa acepção inicial fornecida por Gide, Cassadei (2012) afirma que o sentido da expressão de uma escrita posta em abismo foi, posteriormente, ampliado para abarcar os mais diversos mecanismos textuais que engendram uma metalinguagem. Nas acepções mais recentes, o termo continua a abarcar essa dimensão reflexiva do discurso, que é evidenciada quando de uma redundância textual dada a partir da inscrição de uma micronarrativa dentro de uma narrativa principal, desde que ela articule uma relação especular com o relato em que está inserida.

Podemos dizer que um relato em abismo se estrutura a partir da narrativa principal e a narrativa menor no seu interior assume a condição de uma metassignificação, na medida em que toma o próprio relato, como o próprio produto ou a própria prática enquanto tema.

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leitor/espectador se compreender como autor da sua própria ação em comunhão com a natureza e na constante busca pela sua liberdade através de transformações nas suas relações sociais e nas relações com a existência. Assim, o homem procura, através do diálogo, caminhos suficientes para a compreensão da realidade problematizada e conscientemente é capaz de transformação.

O código auto referencial articulado na tessitura da peça pode ser entendido, também, como uma narrativa em abismo na medida em que instaura um movimento de encadeamento no qual o texto da peça aborda, na sua trama, uma narrativa sobre a própria tessitura da peça, instalando uma duplicidade semântica entre a narração de uma nova narrativa e a sua feitura no nível prático.

Enquanto produtora de efeitos de sentidos, Dällenbach afirma que a mise en abyme é responsável por causar uma oscilação entre o interior e o exterior da obra, de forma a promover uma fragmentação na linearidade esperada da narrativa. E isso à medida em que a narrativa é, a todo momento, interrompida pela interpolação de uma outra temporalidade, de uma temporalidade vinculada à construção, no nosso caso, da própria história narrada por América.

O uso desse recurso pode ser compreendido, de acordo com Dällenbach, por dois tipos de narrativa: aquelas que intencionam instituir um sentido inequívoco no texto ou, então, aquelas que pretendem afirmar-se enquanto narrativa. Ora, é esse segundo tipo de texto narrativo que possibilita o movimento que faz com que a narrativa confesse, acerca de si mesma, que é literatura e que é essa ou aquela narrativa que a sustenta (DÄLLENBACH, 1989,p.57).

Para Dällenbach, essa confissão está vinculada mesmo a uma rearticulação crítica dos pressupostos que regem uma obra, a partir de uma elucidação dos problemas que envolvem o aspecto referencial da linguagem ou das tentativas de produção de opacidade. E isso nos termos de que:

como um signo secundário, a mise en abyme não apenas enfatiza as intenções significantes do signo primário (a narrativa que a contém), como deixa claro que a narrativa primária é também um signo, como todo tropo deve ser. (DÄLLENBACH,1989,p.57).

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