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VERBO E DESEJO EM SARGENTO GARCIA : HOMOEROTISMO NO CONTO DE CAIO FERNANDO ABREU.

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VERBO E DESEJO EM “SARGENTO GARCIA”: HOMOEROTISMO NO CONTO DE CAIO FERNANDO ABREU.

Jaider Fernandes Reis* (UNIPAC)

INTRODUÇÃO

A escolha de Caio Fernando Abreu como autor a ser analisado não foi puramente passional, apesar da paixão por sua obra e estilo ter contribuído para essa escolha. Afinal, só usa a razão quem nela incorpora a paixão. A escolha foi, antes de tudo, pela possibilidade de um questionamento sobre o poder estilístico da escritura desse autor que, com um conto povoado de fortes metáforas, imagens e erotismo.

Caio conta com duas fortes armas que transmitem força ao seu texto: o lirismo de sua linguagem e a competente seleção de imagens sensoriais. Sua nar-rativa veloz, repleta de artifícios e recursos, como o fluxo de consciência, facilitam a transposição de suas obra para o cinema. Sua linguagem audaciosa e em alguns momentos agressivas, projetam seus personagens socialmente excluídos para além da margem. O conto “Sargento Garcia” retrata a questão do homoerotismo sem pu-ritanismo; pelo contrário, devassa as diversas abordagens do homossexualismo: a descoberta da identidade sexual e o homossexual enrustido. O encontro homoafetivo entre o sargento e o jovem Hermes é mutuamente transformador, ambos saem dessa experiência modificados. E por que não dizer também que o leitor da obra participa desse processo de mutação?

Neste artigo, os caminhos percorridos foram extensos e sinuosos e, du-rante todo o nosso percurso, inúmeras estradas foram analisadas. Algumas que an-teriormente acreditávamos que nos levariam a lugares especiais foram descartadas, outras nas quais não acreditávamos, ou até desconhecíamos, foram percorridas. São esses caminhos que estão elencados neste trabalho com a certeza de que a per-manência de uma obra é diretamente proporcional ao número de interpretações que sucita. Sendo assim, nenhum estudo sobre a contística de Caio Fernando Abreu pode ser considerado definitivo.

Inicialmente justificamos a nossa escolha pelo termo homoerotismo e realizamos um breve histórico da Queer Theory. Posteriormente, trabalhamos o con-ceito de conto e a trajetória desse gênero literário. Por fim, apresentamos uma leitura do conto “Sargento Garcia”, analisando as partes principais do texto que ressaltam a questão do homoerotismo, como temática na obra.

1 - DESEJO: O PECADO NEFANDO

O debate sobre a existência de uma arte homoerótica essencialmente distinta das demais formas de manifestações artísticas é um tema polêmico, que en-volve questões teóricas, preconceitos sociais e interesses mercadológicos.

Jurandir Freire Costa, primeiro, em A inocência e o vício e, posterior-mente, em A face e o verso, esclarece o fato de preferir não usar a palavra

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homos-sexualismo em algumas situações, fazendo, assim, a substituição pelo termo

homo-erotismo.. De acordo com ele, homoerotismo seria mais adequado, pois atende a

mecanismos baseados na noção de desejo e não necessariamente de sexo e visa afastar o senso comum das noções imputadas à palavra homossexual.

A literatura, em suas manifestações ficcionais, tem tratado do tema, da Antigüidade aos dias atuais. Mesmo em momentos de censura e restrição, o relacio-namento sexual e amoroso entre pessoas do mesmo sexo sempre foi contemplado pela arte da palavra.

Somente no fim dos anos de 1970 e inicio dos 1980 que críticos e lei-tores norte-americanos passaram a considerar a possibilidade da existência de uma arte homoerótica especifica e distinta das demais formas artísticas. Tal fato ocorreu devido à influência de movimentos como o Black Power e a segunda onda do

Mo-vimento Feminista, pois a partir desses moMo-vimentos, outros grupos marginalizados

vislumbraram a possibilidade autônoma de seus próprios movimentos.

Como a desconstrução e outros movimentos contemporâneos, a Queer

Theory usa o marginal – aquele que está além dos limites, o que foi posto de lado

como perverso – para analisar a construção cultural do centro: normatividade hete-rossexual. A Queer Theory tornou-se o espaço de um questionamento produtivo não apenas da construção cultural da sexualidade, mas da própria cultura tal como o fe-minismo e versões dos estudos étnicos antes dele. Ela obtém energia intelectual de sua ligação com os movimentos sociais de libertação e dos debates no interior desses movimentos sobre estratégias e conceitos apropriados.

De acordo com Jonathan Culler, o nome Queer Theory foi adotado re-centemente pela vanguarda dos gay studies, cujo trabalho na teoria cultural se vin-cula aos movimentos políticos para liberação dos gays. O motivo da adoção dessa expressão como seu próprio nome, é devolve à sociedade o insulto mais comum que os homossexuais encontram, o epíteto Queer, gíria traduzida como bicha ou viado, geralmente referindo-se ao homossexual masculino de forma pejorativa.

Uma literatura classificada como queer, não requer que seu autor(a), leitor(a) ou corpo/texto sejam necessariamente gay ou lésbica, pois a relação homo-erótica pode-se materializar de diversas formas e em variados períodos. Essa rela-ção no texto literário pode ser estabelecida por meio de múltiplas combinações entre autor(a), leitor(a) e texto, sendo possível a existência apenas de um desse elementos, ou a interação entres esses. Um bom exemplo para essa explanação é o caso da escritora Hilda Hilst que, embora heterossexual, estabelece um relação queer entre o texto e o leitor(a).

O texto do autor contemplado em nosso trabalho, Caio Fernando Abreu, recebe o rótulo de literatura gay devido à abordagem temática do homossexualismo. E também pela vivência de Caio, enquanto homossexual. Esse rótulo foi imposto ao escritor após a publicação de Pela Noite. Em entrevista concedida a Marcelo Secron Bessa, Caio declara sua recusa em ser classificado como escritor de literatura gay e manifesta seu ponto de vista quanto ao rótulo aplicado à ficção que escreve:

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Refletindo sobre “Pela Noite” cheguei à conclusão de que ela é uma história antigay. Pérsio odeia gay, tem um discurso antigay fantástico. Mas dei uma entrevista enorme para Revista Sui Generis1, onde falo nisso. Acho que literatura é literatura. Ela não é masculina, feminina ou gay. Eu não acredito nisso, acho que existe sexualidade: cada um é sexuado ou assexuado. Se você é sexuado, tem mil maneiras de exercer a sua sexualidade com mulher, homem, vaca, criancinha, velhinho, com buraco de fechadura. E se nós formos compartimentalizar essas coisas, acho que dilui, pois fica uma editora gay, numa livraria gay, que vai ser lido apenas por gays (BESSA: 1997, p.12).

Muito embora, a produção literária homoerótica possa ser, na voz de seus leitores, um referencial possível da subjetivação gay, nem sempre o testemunho que se tem por parte dos escritores implica em admitir a relação co-extensiva entre a sua identidade gay e os textos que escreve. Segundo Caio, ele não se enquadraria como um escritor que busca a confirmação da sua identidade sexual por meio de seus textos.

São recentes os estudos sobre arte homoerótica, seja na literatura ou em outras manifestações artísticas. Vários romances, contos e poemas podem ser conside-rados canônicos, na tradição ocidental, quanto à abordagem do homoerotismo, quan-to ao modo como este se processa pela dicção de cada auquan-tor ou época. As primeiras notícias sobre aids, no início dos anos 80, marcaram profundamente essa literatura do mesmo modo que ocorreu nas produções cinematográficas.

O que podemos constatar é que o debate sobre a existência de uma arte homoerótica distinta das demais formas de manifestações é um tema polêmico, um ver-dadeiro campo minado, que envolve questões teóricas, preconceitos sociais e interesses mercadológicos.

2 – O VERBO: REFLEXÕES SOBRE O CONTO

Segundo a bíblia a palavra verbo é relativa ao nome da segunda pessoa da Santíssima Trindade, ao recorrermos ao dicionário também encontramos essa significa-ção. Embora não tenhamos nenhum apelo bíblico aqui em nosso trabalho, é impossível negar que a sugestão bíblica no nome é intencional. Mas, nossa pesquisa tece um outro significado para o verbo: o de palavra em sua plenitude. Ao trabalhar a visão do homoe-rotismo em Caio Fernando Abreu optamos pela escolha do conto, uma das mais antigas formas de narrar uma estória.

O ato de contar uma estória, do latim computare, surgiu em principio oral-mente, só depois evoluindo para o registro escrito. E posteriororal-mente, a criação por escri-to de conescri-tos, quando o narrador assumiu a função de contador-criador-escriescri-tor de con-tos, afirmando então o seu caráter literário. O conto, de modo geral, não se refere só ao acontecido. É o gênero literário mais antigo e versátil: teve seu início com as epopéias, não possui compromisso com o real. Nele, realidade e ficção não têm limites precisos.

São diversas as definições para o conto, enquanto gênero literário, mas

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uma em especial nos parece oportuna para ser citada antes de prosseguirmos. Se-gundo Massaud Moises, no livro A Criação Literária, conto é:

[...] uma narrativa unívoca, univalente: constitui uma unidade dramática, uma célula dramática, visto gravitar ao redor de um só conflito, um só drama, uma só ação. Caracteriza-se, assim, por conter unidade de ação, tomada esta como a seqüência de atos praticados pelos protagonistas, ou de acontecimentos de que participam. (MOISES: 2003, p.40).

No conto, cada palavra ou frase tem sua razão de ser na economia glo-bal da narrativa, a ponto de, em tese, não poder substituí-la ou alterá-la sem afetar o conjunto. Por esse motivo, os ingredientes narrativos convergem em uma única dire-ção, ou seja, em torno de um único drama ou ação. É uma narrativa curta, que tem como característica central condensar conflito, tempo, espaço e reduzir o número de personagens.

Massaud Moisés registra que “até o século XVI a palavra conto ainda não era empregada literariamente, mas é inegável que a forma já existia como tal” (2003, p. 109). Somente no século XIX surge o termo short-story, mas é importante salientar que nos séculos XVI e XVII autores como Cervantes e Voltaire já optavam por esse estilo narrativo. Foi nos Estados Unidos que o termo short-story se afirmou e, desde 1880, designa não somente uma estória curta, mas um gênero independente, com características próprias.

O conto permanece com a mesma estrutura do conto antigo, também conhecido como conto maravilhoso ou fábula, o que mudou com o passar do tempo foi a sua técnica. Ocorreu uma evolução do modo tradicional para o modo moderno de narrar. No modo tradicional, a ação e o conflito passam pelo desenvolvimento até o desfecho, com a crise e resolução final. Do século XVIII em diante, o caráter de uni-dade da vida e, conseqüentemente, da obra de arte, vai se perdendo. Acentua-se o caráter da fragmentação dos valores, das pessoas e das obras. Nas obras literárias, as palavras passam a se apresentarem sem conexão, soltas como átomos. É justa-mente o que marcou o modo moderno de narrar, ou seja, a narrativa a partir de então desmontaria esse esquema de início, meio e fim, e se fragmentaria numa estrutura invertebrada.

A representação da realidade estava desvinculada de um antes ou um depois e desdobrava-se em tantas configurações quantas são as experiências de cada indivíduo. O texto literário perdeu o ponto de vista fixo — o mundo como um todo — e passou a representar uma parte do mundo que, às vezes, é uma minúscula parte da realidade. A verdade sem seu status de absoluta passaria a representar grupos minoritários. Nesse sentido, evolui-se do enredo que dispõe um acontecimento em ordem linear, para um outro, diluído nos feelings, sensações, percepções, relações ou sugestões íntimas.

Na Literatura Brasileira o conto se instalou em definitivo com a chegada do Realismo/Naturalismo, passando a dividir espaço com o romance. Um dos con-tistas de maior destaque em nossa literatura é Machado de Assis, que no final do século XIX optou por textos breves, de poucas páginas, onde conseguia condensar

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sentimentos e refletir sobre a alma humana. São inúmeros os contistas de renome em nosso país, e entre os contemporâneos citamos Caio Fernando Abreu, autor do conto que conduzirá nossas reflexões daqui por diante.

Em literatura o que prevalece é a força do discurso, a capacidade que o autor tem de exercer seu ofício como compositor das palavras, de modo que elas transformem o fato em significado. Caio inscreveu seu nome no rol da fama justa-mente por sua capacidade de evidenciar temáticas próprias e de fugir dos padrões narrativos convencionais.

2.1 - VERBO E DESEJO: O CONTO DE CAIO FERNANDO ABREU

Caio Fernando Abreu (1948 -1996) é considerado entre os mais impor-tantes contistas de nosso país, um dos grandes nomes da expressão homoerótica na literatura brasileira. Sucesso de público e de critica, o gaúcho nascido sob o signo de virgem, autor de livros como Morangos Mofados, Onde Andará Dulce Veiga, entre diversos outros, recebeu vários prêmios ao longo de sua carreira como escritor. Entre eles destaca-se o Prêmio Status de Literatura (1980) pelo conto “Sargento Garcia”, que será nosso objeto de estudo. Caio tornou-se uma referência para os jovens es-critores, por seu niilismo poético e por sua visão de mundo sem tantos compromissos formais. Faleceu de Aids no ano de 1996.

É comum a crítica literária referir-se ao escritor gaúcho Caio Fernando Abreu como um autor pesado e afeito à melancolia, com uma escrita passional e in-tertextual. Por exemplo, Marcelo Secron Bessa, que afirma o seguinte:

Um escritor pesado e baixo astral. Este, talvez, foi o epíteto-clichê, dentre muitos, que mais caracterizou Caio Fernando Abreu durante a maior parte de sua carreira literária. Certamente, isso se deve ao fato de o escritor ter dado um grande espaço, em sua obra, a temas considerados “pesados” e/ou “não-literários”: sexo, drogas, homossexualismo, loucura, violência, entre tantos outros. Ainda que nem sempre sejam esses os temas de seus textos, certamente eles ficaram consagrados como uma espécie de marca registrada do escritor e explicam, em parte, um certo silêncio da crítica (principalmente dos estudos acadêmicos), que insistiu em acompanhar sua obra enquanto o escritor ainda era vivo (BESSA: 2002, p. 62).

Sua ficção desenvolveu-se acima dos convencionalismos de qualquer ordem, evidenciando uma temática própria, juntamente com uma linguagem fora dos padrões convencionais. Em seus contos, romances e novelas há uma espécie de ve-locidade no que é escrito, que está associada tanto à construção de imagens rápidas, instantâneas, substantivadas, quanto à forma com que estas imagens interagem, se complementam ou se chocam.

São inúmeras e distintas as abordagens que podemos tecer sobre a contística de Caio Fernando Abreu, mas esse estudo privilegia a questão do homoe-rotismo no conto “Sargento Garcia”.

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O conto é narrado pelo personagem Hermes, um jovem em fase de apre-sentar-se para as obrigações com o serviço militar, na década de 70. No quartel, o jovem conhece o Sargento Garcia, ambos envolvem-se em um jogo de sedução que resulta no em uma experiência homoafetiva, ou seja, num encontro corporal, em um motel.

Ainda do conto, podemos destacar um elemento que sempre presente na obra de Caio, em geral: a opção do autor por determinados tipos humanos que estão inseridos no rol dos socialmente excluídos: prostitutas, travestis, michês, entre outros, e que o autor procura integrar à realidade, através de sua ficção. “Sargento Garcia” foi escrito e dedicado à memória de Luiza Felpuda, um famoso travesti da ci-dade gaúcha de Porto Alegre que, no período militar, era responsável por um bordel, onde soldados freqüentavam para se prostituírem. O autor insere, em sua narrativa, a personagem de Isadora Duncan, um travesti cujo nome de batismo é Valdemir. A criação dela é uma homenagem à Luiza Felpuda. Embora Isadora seja um travesti, em nenhum momento da narrativa de Caio percebemos a intenção de ridicularizar a imagem do homossexual, ou seja, reduzi-lo a um ser afetado, ou inserido na narrativa com a intenção do riso.

O narrador tenta organizar seus pensamentos e sua memória, em busca de sua própria compreensão, da compreensão do outro a quem se dirige e que se identifica com o próprio leitor. Destaca-se aqui uma das passagens onde ocorre o flu-xo de consciência do personagem Hermes:

Não me fira, pensei com força, tenho dezessete anos, quase dezoito, gosto de desenhar, meu quarto tem um Anjo da Guarda com a moldura quebrada, a janela dá para um jasmineiro, no verão eu fico tonto, meu sargento, me dá assim um nojo doce, a noite inteira, todas as noites, todo o verão, vezenquando saio nu na janela com uma coisa que não entendo direto acontecendo pelas minhas veias, depois abro As mil e uma noites e tento ler, meu sargento, sois um bom dervixe, habituado a uma vida tranqüila, distante dos cuidados do mundo, na manhã seguinte minha mãe diz sempre que tenho olheiras, e bate na porta quando vou ao banheiro e repete que aquele disco da Nara Leão é muito chato, que eu devia parar de desenhar tanto, porque já tenho dezessete anos, quase dezoito, e nenhuma vergonha na cara, meu sargento, nenhum amigo, só esta tontura seca de estar começando a viver, um monte de coisas que eu não entendo, todas as manhãs, meu sargento, para todo sempre, amém (ABREU: 2002, p. 37-38).

O que temos no trecho acima é um desenrolar ininterrupto dos pensa-mentos do jovem Hermes, um monólogo onde ele relatam seus hábitos, sua relação com sua família, seu interesse pela pintura, pela música, seus conflitos causados pela puberdade, pela descoberta do seu corpo, em suma a crise na formação de sua identidade. No livro O foco narrativo (1997) encontramos a acepção de fluxo de

consciência como expressão direta dos estados mentais, mas desarticulada, em que

se perde a seqüência lógica e onde parece manifestar-se diretamente o inconsciente. O fluxo de consciência é uma constante em todo o conto “Sargento Garcia”, e a sua presença faz com que o texto de Caio pareça fragmentado, uma característica dos contos modernos/contemporâneos. O autor utiliza tal artifício para expressar os

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sen-timentos e as lembranças da infância de Hermes, mostra um menino que não sabe jogar futebol, que brinca com uma lesma e que na adolescência sofre a repressão do pai, com relação ao ato do jovem aprender a fumar.

Com 33 anos, Luiz Garcia de Sousa é um sargento do exército, rude, acostumado a humilhar os jovens que se apresentam para prestar o serviço militar. O sargento utiliza seu oficio para escolher suas vítimas, como poderemos observar:

Olhou para meu peito. E baixou os olhos um pouco mais. — Então tu é que é o tal de Hermes?

— Sim, meu sargento. — Tem certeza? — Sim, meu sargento.

— Mas de onde foi que tirou esse nome? — Não sei, meu sargento.

Sorriu. Eu pressenti o ataque. E quase admirei sua capacidade de comandar as reações daquela manada bruta da qual, para ele, eu devia fazer parte. Presa suculenta, carne indefesa e fraca (ABREU: 2002, p. 36).

Temos, acima, a metáfora da caça, nesse garoto, que Garcia observa como um predador; acompanha os passos de sua presa e Hermes tem plena consci-ência de seu papel de caça. A utilização do pronome possessivo meu indicando o grau de autoridade/obediência imposta pelo sargento ao garoto. Ao repetir diversas vezes o pronome, Hermes sugere sua submissão voluntária, diante do sargento.

Entre algumas afirmações de sua autoridade, ainda no quartel, o sargen-to, em seu longo diálogo com o jovem, demonstra-se disposto a dispensar o mesmo do serviço militar, e é justamente o que ele faz.

No caminho para casa, um chevrolet antigo pára ao lado de Hermes e oferece-lhe uma carona para cidade; trata-se do sargento. O rapaz observa o sorriso de Garcia e aceita a carona. Durante o caminho, eles conversam e o jovem observa que o militar não apresentava mais o aspecto de um leão, nem o de um general es-partano; agora ele parecia um homem comum sentado na direção de seu carro. Ao fim da viagem todas as formalidades entre eles já haviam sido eliminadas e o jovem não mais se referia ao sargento utilizando o possessivo meu. Eis que o surge então um convite feito pelo sargento:

Estendeu a mão. Achei que ia fazer uma mudança, mas os dedos desviaram-se da alavanca para pousar sobre a minha coxa. — Escuta, tu não ta a fim de dar uma chegada comigo num lugar aí?

— Que lugar? — Temi que a voz desafinasse. Mas saiu firme. Aranha lenta, a mão subiu mais, deslizou pela parte interna da coxa. E apertou, quente.

— Um lugar aí. Coisa fina. A gente pode ficar mais à vontade, sabe como é. Ninguém incomoda. Quer? (ABREU: 2002, p. 47).

A imagem homoerótica descrita por Caio é explicita, não fica dúvida so-bre a intenção do sargento. Em uma circunstância mais descontraída, ou menos ten-sa, pode ser evidenciado um envolvimento entre os dois e, uma conversa mais amena

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e prazerosa, incluindo a possibilidade de flertes, mesmo que inocentes, por parte de Hermes. O jovem novamente está tenso, pois recebera um convite do sargento para acompanhá-lo a um lugar cujo nome não é mencionado. Inscreve-se, novamente, uma imagem homoerótica que resultará na iniciação sexual do rapaz.

O Sargento desperta o desejo do rapaz. Ainda no carro, Garcia conduz a situação que reaviva as lembranças da infância de Hermes.

[...] A mão quente subiu mais, afastou a camisa, um dedo entrou no meu umbigo, apertou, juntou-se aos outros, aranha peluda, tornou a baixar, caminhando entre as minhas pernas.

— Claro que quer. Estou vendo que tu não quer outra coisa, guri.

Pegou na minha mão. Conduziu-a até o meio das pernas dele. Meus dedos se abriram um pouco. Duro, tenso, rijo. Quase estourando a calça verde. Moveu-se, quando toquei, e inchou mais. Cavidades-porosas-que-se-enchem-de-sangue-quando-excitadas. Meu primo gritou na minha cara: maricão, mariquinha, quiáquiáquiá. O vento descabelava o verde da Redenção, os coqueiros da João Pessoa. Mariquinha, maricão, quiáquiáquiá. E não, eu não sabia (ABREU: 2002, p. 48-49).

Ao descrever a cena o autor não poupa detalhes, o homoerotimo é des-crito desprovido de preconceito. Novamente, Caio insere em seu texto uma metáfora envolvendo um animal, a mão do sargento é comparada a uma aranha que passeia pelo corpo da vítima, despertando o medo e o desejo. O momento desperta as memó-rias de Hermes, que retorna à infância, quando ainda não possuía consciência de seu desejo, e seu primo o insultava. A repressão à sexualidade é relembrada por meio de fluxo de consciência, evocando a memória das experiências frustradas do menino.

No bordel, Hermes é apresentado a Isadora, um travesti responsável pelo local. Durante o diálogo, Isadora indaga o sargento: “— Esta é sua vítima?”. Era habitual a freqüência de Garcia no bordel. Isadora os leva ao quarto de número sete:

[...] A porta fechou. Sentei na cama, as mãos nos bolsos. Ele chegando muito perto. O volume esticando a calça, bem perto do meu rosto. O cheiro: cigarro, suor, bosta de cavalo. Ele enfiou a mão pela gola da minha camisa, deslizou os dedos, beliscou o mamilo. Estremeci. Gozo, nojo ou medo, não saberia. Os olhos dele se contraíram.

— Tira a roupa.

Joguei a peças, uma por uma, sobre o assoalho sujo. Deitei de costas. Fechei os olhos. Ardiam, como se tivesse acordado de manhã muito cedo. Então um corpo pesado caiu sobre o meu e uma boca molhada, uma boca funda feito poço, uma língua ágil lambeu meu pescoço, entrou no ouvido, enfiou-se pela minha boca, um choque seco de dentes, ferro contra ferro, enquanto dedos hábeis desciam por minhas virilhas inventando um caminho novo (ABREU: 2002, p. 53-54).

Não existe pudor ao descrever o encontro corporal entre dois homens. O cheiro, as ações e reações, cada movimento dos dois corpos é narrado minuciosa-mente. A intenção é, justamente, de expor as personagens ao leitor. Caio não poupa seu leitor de nenhum acontecimento, utiliza-se das riquezas de suas metáforas, mis-turadas às descrições mais realistas, para narrar o ato sexual.

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O cheiro azedo dos lençóis, senti, quantos corpos teriam passado por ali, e de quem, pensei. Tranquei a respiração. Os olhos abertos, a trama grossa do tecido. Com os joelhos, lento, firme, ele abriria caminho entre as minhas coxas, procurando passagem. Punhal em brasa, farpa, lança afiada. Quis gritar, mas as duas mãos se fecharam sobre minha boca. Ele empurrou, gemendo. Sem querer, imaginei uma lanterna rasgando a escuridão de uma caverna secreta. Mordeu minha nuca. Com um movimento brusco do corpo, procurei jogá-lo para fora de mim.

— Seu puto — Ele gemeu. — Veadinho sujo. Bicha-louca. Agarrei o travesseiro com as duas mãos, e num arranco consegui deitar novamente de costas. Minha cara roçou contra a barba dele. Tornei a ouvir a voz de Isadora que mais me podes dar que mais me tens a dar a marca de uma nova dor. Molhada, nervosa, a língua voltou a entrar no meu ouvido. As mãos agarraram minha cintura. Comprimiu o corpo inteiro contra o meu. Eu podia sentir os pêlos molhados do peito dele melando a minha pele. Quis empurrá-lo outra vez, mas entre o pensamento e o gesto ele juntou-se ainda mais a mim, e depois um gemido mais fundo, e depois um estremecimento do corpo inteiro, e depois um líquido grosso morno viscoso espalhou-se pela minha barriga. Ele soltou o corpo. Como um saco de areia úmida jogado sobre mim (ABREU: 2002, p. 54-55).

Encontramos no trecho acima o relato de um jovem virgem em sua pri-meira relação sexual com outro homem. Para Hermes, cada movimento do corpo do sargento é uma descoberta de si mesmo e do corpo do outro. Em meio ao ato sexual, ele escuta a voz de Isadora, cantando um antigo bolero, a excitação é perceptível na narração minuciosa, que não poupa o leitor de nenhuma das minúcias do ato sexual.

Ao final do conto, para o sucesso da empreitada, o olhar do narrador se transforma:

Dobrei a esquina, passei na frente do colégio, sentei na praça onde as luzes recém começavam a acender. A bunda nua da estátua de pedra. Zeus, Zeus ou Júpiter, repeti. Enumerei: Palas-Atena ou Minerva, Posêidon ou Netuno, Hades ou Plutão, Afrodite ou Vênus, Hermes ou Mercúrio. Hermes, repeti, o mensageiro dos deuses, ladrão e andrógino. Nada doía. Eu não sentia nada. Tocando o pulso com os dedos podia perceber as batidas do coração. O ar entrava e saía, lavando os pulmões. Por cima das árvores do parque ainda era possível ver algumas nuvens avermelhadas, o rosa virando roxo, depois cinza, até o azul mais escuro e o negro da noite. Vai chover amanhã, pensei, vai cair tanta e tanta chuva que será como se a cidade toda tomasse banho. As sarjetas, os bueiros, os esgotos levariam para o rio todo o pó, toda a lama, toda a merda de todas as ruas.

Queria dançar sobre os canteiros, cheio de uma alegria tão malditas que os passantes jamais compreenderiam. Mas não senti nada. Era assim, então. E ninguém me conhecia.

Subi correndo no primeiro bonde, sem esperar que parasse, sem saber para onde ia. Meu caminho, pensei confuso, meu caminho não cabe nos trilhos de um bonde. Pedi passagem, estiquei as pernas. Porque ninguém esquece uma mulher como Isadora, repeti sem entender, debruçado na janela aberta, olhando as casas e os verdes do Bonfim. Eu não o conhecia. Eu nunca o tinha visto em toda a minha vida. Uma vez desperta não voltará a dormir. O bonde guinchou na curva. Amanhã, decidi, amanhã sem falta começo a fuma (ABREU: 2002, p. 57-58).

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É impossível para o leitor não se solidarizar com a angústia do persona-gem. A dor da descoberta da sexualidade na adolescência, seguida da solidão impos-ta pelo segredo. A questão traimpos-tada neste conto constitui tema recorrente na literatura

gay, que por sua vez, retrata um sofrimento por que os adolescentes têm de passar na

sociedade contemporânea. O reconhecimento do próprio nome, no final do conto, é exatamente o que subverte o universo de personagens anônimos de Caio Fernando. Os mecanismos de ativação da memória e resgate do passado, que lançam o per-sonagem Hermes aos seus limites, acabam se tornando, também, um sentido para a própria existência. Tendo sido superada a crise de identidade, Hermes resolve come-çar uma nova vida, ciente de sua sexualidade.

CONCLUSÃO

A proposta do trabalho aqui apresentada pressupunha uma análise, sob o viés do homoerotismo. Em termos de linguagens, o homoerotismo se manifesta numa poética do olhar, na insinuação de formas, na dança dos gestos e na possibili-dade do encontro. O complicado é traduzir esses códigos para a literatura, é expressar o desejo por meio das palavras. Por isso, este trabalho busca analisar uma narrativa contemporânea brasileira: o conto “Sargento Garcia”, de Caio Fernando Abreu.

Nesse artigo, não nos propomos esgotar o tema, mas apresentar mais uma contribuição de leitura da obra em foco, diante de tantas outras leituras, que fo-ram feitas sobre a questão do homoerotismo como temática, nas obras de Caio Fer-nando Abreu, em especial no conto que contemplamos.

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JAIDER FERNANDES REIS

Especialista em Literatura Brasileira e Lingüística Aplicada (Centro Universitário de Caratinga – Unec), Graduado em Letras (Centro Universitário do Leste de Minas Gerais – Unileste-MG), Professor dos cursos de Letras, Educação Física e Serviço Social da Universidade Presidente Antonio Carlos (Uni-pac-Ipatinga).

Referências

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