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Grupo de trabalho: sistemas alimentares e os debates antropológicos em soberania e segurança alimentar e nutricional

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XIII Reunião de Antropologia do Mercosul

22 a 25 de julho de 2019, Porto Alegre (RS)

Grupo de trabalho: sistemas alimentares e os debates antropológicos em soberania e segurança alimentar e nutricional

A ressignificação do rural pelos meios de comunicação, estratégias de hegemonia e poder

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A ressignificação do rural pelos meios de comunicação, estratégias de hegemonia e poder

Resumo:

Este ensaio se refere ao início de minhas pesquisas ao doutorado e conta com dados ainda incipientes. Apresento nele uma discussão envolvendo a presença de um discurso hegemônico para a construção de categorias representativas do trabalhador rural, estas, propositalmente construídas a partir de interesses de grandes grupos transnacionais e locais, mediados pelos meios de comunicação. Utilizo para essa discussão um comercial de um veículo pick up divulgado em nível nacional, pelo qual os valores do agronegócio são reificados através de mensagens subliminares, as quais utilizam como meio e mensagem as práticas, hábitos e rituais tradicionais do homem do campo. Estabeleço os vínculos entre a propriedade da terra e do capital, mediante forças associadas ao capital simbólico e especialmente pelas vias do patrimonialismo. Apresento as várias estratégias utilizadas por tais grupos como forma de homogeneizar as formas de manuseio da terra, as quais ignoram os fatores climáticos, regionais, territoriais, e especialmente os culturais em detrimento da formação da agroindústria como modelo de produção de alimentos.

“Algumas pessoas vão sempre apontar o dedo pra gente que vive do campo, mas nós vamos nos levantar ainda mais cedo, pra cuidar do rebanho, do futuro da fazenda, até do futuro de quem aponta o dedo. Porque sabemos que se pararmos, esse país também para. É hora de valorizar quem carrega o país nas costas, nova ... (assinatura da marca). [Comercial de lançamento de uma pick up 2018]1

Introdução

Em março de 2018 iniciei minhas primeiras disciplinas ao doutorado e com elas novas impressões, formas e desafios para pensar um novo objeto. Defini que daria continuidade às pesquisas iniciadas ao mestrado, porém, deixaria de

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dar enfoque às questões relativas à sociabilidade urbana e sua relação com os mercados municipais e a comunidade goianiense. Entretanto, ampliaria o foco sobre outros elementos que não haviam recebido, por mim, a devida atenção naquela ocasião, mas que entendo serem de grande relevância para pesquisas subsequentes. A relação entre os meios urbano e rural, na minha percepção, deveria receber maior enfoque, especialmente a de pensar nas formas e meios pelos quais as grandes cidades são abastecidas de alimentos. Estabeleci então como objetivo para minha tese de doutorado, o mapeamento de sistemas alimentares e suas formas de representação, segundo as lógicas presentes na produção do conhecimento, associado a um eixo cultural, e baseado nas pesquisas da Antropologia em “soberania alimentar”. Ainda, de identificar peculiaridades no processo e na matriz de produção de pequenos agricultores, voltadas ao incremento de uma matriz produtiva singular, que reconheçam as práticas tradicionais de manejo, especialmente em razão das peculiaridades do bioma Cerrado, estas, associadas ao seu regime peculiar de seca e chuva. Esse recorte à pesquisa, trazia consigo algumas vantagens, sendo que a maior delas era a possibilidade de somar forças aos trabalhos do GECCA – Grupo de estudos em consumo, cultura e alimentação -, grupo multidiciplinar de pesquisas do qual faço parte desde o ano de 2015. Nossos estudos no grupo e minha nova proposta de objeto, possuem grande consonância, notadamente, nos vários pontos de intersecção entre ambos os quais envolvem a possibilidade da análise comparativa do discurso do Estado, do mercado e dos outsiders, vindo à tona as maneiras pelas quais se entremeiam as formas de representação entre o campo e a cidade.

Todavia, meu interesse neste ensaio possui uma abrangência bem menor, mas não menos importante, dado que meus trabalhos em campo são ainda incipientes. Por tais razões, me deterei aqui na análise dos indivíduos que configurarão o contexto da minha pesquisa, naqueles que provavelmente se tornarão meus interlocutores, cujo papel e protagonismo, oscilam entre as condições de trabalhadores rurais, pequenos proprietários rurais, feirantes, produtores urbanos, produtores rurais e afins. Neste ensaio, pretendo analisar as estratégias e formas de representação, atualmente utilizadas – a partir de um viés teórico-metodológico -, e voltadas a estabelecer um perfil identitário a esses

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indivíduos, os quais atuam e trabalham no ambiente rural. Recorrendo a Kuper (2002, p. 298), identidade não como um assunto pessoal, mas aquela que pode ser descoberta dentro da própria pessoa, e que implica em identidade com os outros. Voltarei adiante neste ponto. Me orientarei aqui, por um discurso oferecido por um comercial que atualmente está sendo veiculado tanto nos canais televisivos abertos e fechados, o qual divulga o lançamento de um novo modelo de pick up. A partir de um filme comercial de 45”, outros comerciais de menor duração também passaram a ser veiculados, dentro da mesma temática, constituindo assim, uma campanha publicitária com varias peças. Me detive somente no filme principal, uma vez que os demais são simples reproduções deste. Resumidamente, o filme conta com dois atores, representando pai e filho, sendo que o primeiro aparece já na primeira cena dirigindo por uma estrada de terra, em um momento que lembra o raiar do dia, o veículo objeto da peça comercial. Várias cenas se seguem, nas quais o protagonista pode ser visto transitando entre um rebanho de bovinos, conversando ao celular, utilizando um

laptop; e, trajando calças do tipo jeans e camisas brancas de mangas longas. A

criança que representa o filho, demonstra atenção às orientações fornecidas pelo pai em determinado momento da peça, provocando a percepção pelo telespectador, da preocupação do processo de aprendizagem das futuras gerações. Toda as cenas são acompanhadas por um texto lido, apresentado em BG, por um terceiro elemento da peça, que oculto, representa o narrador, cujo texto se encontra transcrito no início deste trabalho.

Não tenho a pretensão de discutir a qualidade técnica da peça e sim o papel ao qual ela se presta, seus objetivos e pretensões, pois tais fatores vêm ao encontro de meus propósitos aqui. Ocorre que o texto do comercial está imbricado de um discurso que de maneira subliminar, reforça o estereótipo do agronegócio como o elemento, ainda, como solução inconteste para todos os problemas financeiros coletivos do país. Indica ainda, que apesar das constantes críticas a um modelo de produção monocultor, que utiliza defensivos agrícolas condenados em outros países, beneficiário de taxas de juros subsidiadas e que não produz alimentos destinados -soja, cana-de-açúcar, algodão - para o consumo humano; esse modelo de produção persiste gerando riquezas e criando condições e vantagens até mesmo para seus críticos. Desta forma, sob

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uma mensagem subliminar, o termo “agronegócio” se apresenta como substitutivo para o termo “rural”, reconstruindo-o de modo adquirir uma roupagem tecnológica, cuja vanguarda distancia suficientemente da lembrança de um manejo arcaico e rudimentar da terra, característicos da produção agrícola até a última década do século XX. Desta forma, o discurso hegemônico se distancia do passado rural arcaico, pelas vias da tecnologia, mas se aproxima dos elementos tradicionais ao enaltecer antigas práticas, hábitos e rituais.

Mas, essas construções identitárias e culturais cujos alvos são grupos de interesse, não ocorrem ao acaso, requerem estratégias, observação, e principalmente, mecanismos que façam com que tais grupos se sinta representada pelas características que lhes foram atribuídas. Para Kuper (2002, p.299), identidade cultural e política cultural, andam de mãos dadas e, uma vez estabelecida uma identidade cultural, “a pressão passa a ser viver de acordo com ela, mesmo que isto signifique sacrificar a própria individualidade”. De modo que, ainda que não se sintam representados, esses grupos não sejam dotados de agência tal e suficiente, a qual venha a romper ou contrapor o discurso para eles construído. Cabe aqui o desafio de identificar tais estratégias e mecanismos, apresentar os sentidos e propósitos da elaboração e disseminação desses discursos, afinal, este é um papel que me cabe aqui, pois, lembrando Ingold (2011), buscar um entendimento generoso do ser humano de conhecimento, comparativa e criticamente, dentro do mesmo mundo ao qual habitamos é objetivo da Antropologia.

As mensagens contidas nesse comercial me instigaram a pensar e aproximá-las de meu campo de pesquisa. As intersecções entre a peça publicitária, o modelo agrícola agroexportador enaltecido para o estado de Goiás, a conexão característica entre os meios rural e urbano também para o estado, a larga difusão da cidade de Goiânia como a capital da música sertaneja do país, dentre outros elementos, acredito serem motivos suficientes para promover uma análise comparativa plausível entre a realidade e a ideologia do discurso. Aqui veio à tona uma primeira questão: a linguagem do comercial e suas formas de representação se sustentariam frente aos meus possíveis e prováveis interlocutores? Para responder a esta questão é necessário que inicialmente analisemos a matéria prima com as quais os discursos hegemônicos

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se nutrem, constroem estereótipos, desígnios culturais e sociais que homogeneízam regiões e cidades.

A construção de uma identidade para Goiânia

Às grandes cidades, geralmente, são associados atributos que pretensamente respondem a questões relativas ao seu desempenho do ponto de vista econômico, social e político. Além destes, construtos quanto a características identitárias e culturais também são difundidos, os quais passam a constituir um modelo de comportamento esperado, daqueles que nelas residem. Desta forma, para a cidade de São Paulo difundiu-se a metáfora que a associa a uma locomotiva para o país, dada sua expressiva estrutura financeira e geradora de oportunidades (FRÚGOLI Jr. (2000); CALDEIRA (2011) – especialmente até meados da década de 1980 – que nos fazem também lembrar Los Angeles; ao Rio de Janeiro, pelos seu potencial turísticos em razão das belezas naturais, construindo um imaginário de lazer e despojamento para seus habitantes; e de um caráter vernacular do panorama urbano (como Roma e Paris); ou, o cosmopolitismo, atribuídos a San Francisco e Amsterdã; ainda, a “Califórnia brasileira”, denominação dada à cidade de Ribeirão Preto (SP), dada sua pujança nos quesitos economia e política.

Goiânia padece desse tipo de construção, e as estratégias descritas até aqui, também os propósitos almejados, se assemelham. É atormentada por um esforço contínuo de rótulos impostos, pelas vias dos meios de comunicação, que insistem em lhe cunhar uma identidade rural, fiel representante de uma ruralidade vastamente expressada na “cultura”. Inversamente aos propósitos fundantes para a cidade, cujo protagonismo recaia sobre os preceitos de modernidade – o rural, associado ao atraso, e a modernidade, associada ao progresso -, a partir do final da década de 1980 ganha um novo discurso, atribuindo-lhe uma gênese rural, que passa a prevalecer. Provisoriamente, poderia atribuir tal esforço a uma relação direta entre projetos modernizantes e estratégias de tradições compartilhadas (CANCLINI, 1989), pelas quais grupos de interesse se associam e reforçam as tradições populares como forma de legitimação hegemônica. Porém, suponho que tal questão exige um aprofundamento maior, especialmente dos caminhos trilhados pelo fluxo do capital e do domínio da terra, e, mesmo consciente de que tais elementos são

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os sustentáculos para os propósitos hegemônicos, estes só persistem e ganham força pelas vias do discurso. Pelo capital, sua ida em direção à terra, como forma de investimento e seu retorno na forma de excedente, negociado no ambiente urbano, fruto da exploração da terra, no círculo virtuoso/vicioso do capital, pelo mesmo motivo. Tal formato, ao cria um círculo virtuoso para o capital, amparado pelas relações de dependência econômica, devidamente construída, entre o campo e a cidade. Para que essa premissa alcance seus propósitos, intuo que um bom caminho seja o de uma tentativa de seguir as trilhas das duas principais categorias que a envolvem: o capital e a terra.

Breve histórico de domínio e utilização da terra no estado de Goiás

Canclini (1989) busca entender a relação entre modernidade e tradição mediante a análise do patrimônio cultural. O autor considera que para “entender o desenvolvimento ambivalente da modernidade, é preciso analisar a estrutura sociocultural dessas contradições”, tomando para isto os rumos dos usos sociais do patrimônio, porém, aqui tomaremos a direção da análise dos mecanismos do discurso hegemônico em relação às práticas, em relação à realidade ao invés do cunho ideológico presente no discurso. Desta forma, pelo discurso, a histórica categoria “roceiro” segue sendo invisibilizada, tendendo ao desaparecimento, porém, cedendo espaço a uma nova, já devidamente carregada de estereótipos: produtor rural. Entretanto, na mesma proporção em que as duas categorias se distanciam, também se aproximam, amparadas por mecanismos associados às práticas e hábitos do homem do campo, a exemplo de: portar-se de pé antes mesmo do dia amanhecer. Termos técnicos como produtividade, eficácia, ampliação da área plantada, assim como os índices estatísticos que os modelam e legitimam, passam a compor um novo vocabulário. O trabalhador do campo, nesse novo contexto, desaparece, e em seu lugar emerge como protagonista o esforço do investidor e das potencialidades de seu capital. Todas essas mensagens foram agregadas ao texto do comercial em questão, ora de forma subliminar, ora de forma direta. Ainda, o fator geracional, a tecnologia presente no veículo e no aparelho celular, o acesso às várias tecnologias no campo, e mais fortemente, na relação dicotômica: nós trabalhamos enquanto os demais descansam e nos criticam – “apontam o dedo”, nos termos do comercial. Lembrando Latour (1994, p.7-8) ao discutir “tradução”/rede e “purificação”/crítica,

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estas, ocorrências híbridas, pressentimos semelhanças às nossas aqui, com tramas envolvendo produtores rurais, bancos, mercado de capitais, indústrias químicas, indústrias alimentícias, aumento de incidências de câncer, lançamento de novos modelos de veículos e estilos musicais. De um lado, o conhecimento das coisas, do outro, o interesse, o poder e a política dos homens.

Tais digressões são somente para contextualizar as razões pelas quais, tais temas foram se entrelaçando gradativamente, e ganhando consistência. Assim, como primeiro caminho para atingirmos os nossos propósitos aqui, talvez caiba isolar as duas principais categorias, tratando inicialmente a questão da propriedade da terra, para posteriormente adicionarmos o capital, e deste modo encontrarmos seus pontos de intersecção. Aparentemente pareceria impossível essa separação, uma vez que historicamente, capital e terra são elementos que se complementam e frutos da mesma árvore. Mas, vale lembrar que grande parte das terras no estado de Goiás não foram adquiridas pelas vias do capital e sim pelas vias do prestígio, mais especificamente, pelos artifícios do patrimonialismo.

Aqui já podemos fazer uma aproximação entre passado e presente. Até o século XVIII a exploração da terra tinha como único foco a produção de ouro, sendo, inclusive, proibida a extração de açúcar via engenhos, por determinação real. Para Palacin (1989), essa determinação explicaria o baixo desenvolvimento agrícola em Goiás em um período de cinquenta anos, dado que todo esforço de mão de obra estava direcionado à mineração, donde, resumidamente, “esta mentalidade se traduziu na supervalorização do “mineiro” – denominação dada ao proprietário de lavras e escravos - e na pouca estima das outras profissões, especialmente do “roceiro” – proprietário de terras e escravos dedicados à lavoura. Extraímos daqui uma conclusão óbvia: até o final do século XIX a terra não constituía valor expressivo2 nas trocas comerciais. Inversamente, a partir do

esgotamento das jazidas de ouro, a pecuária passa a concentrar a atividade econômica, algo que perpetuou até o limiar do século XX.

Perceptivelmente, a propriedade da terra historicamente se concentra em poucas mãos, fato que permanece. Atualmente, o estado de Goiás conta com

2 Palacin vai além. Segundo o autor, “todos queriam ser mineiros e ninguém queria ser chamado de roceiro, profissão desprezada. Mesmo depois de muitos anos da decadência da mineração, esta continuava a ser a forma de pensar do povo em Goiás” (PALACIN, 1989, pág. 16-20).

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146.4613 propriedades rurais, sendo que destas, somente 16% possuem 50 ha

ou menos, o restante está distribuída entre 29% de propriedades de tamanho intermediário, cuja média é de 292,11 ha, e as grandes propriedades, que somam 12.088 unidades com uma média de 1.391,29 ha, correspondentes a 54% do total da área rural. Além, claro, dos vários latifúndios improdutivos, constituídos por propriedades acima de 10.000 ha. Diante desse breve histórico, duas observações pouco triviais já são possíveis: a primeira diz respeito à perpetuação do modelo monocultor. Se antes era representado pelo gado, atualmente tem na soja e na cana de açúcar seus sinônimos. A segunda diz respeito ao uso e propriedade da terra. Como já visto, a propriedade, em sua grande maioria, permaneceu nas mãos dos mesmos, mas quanto ao uso, presumidamente, atividades de cultivo de soja e cana requerem grande dose de investimentos, indicativos que a exploração não é, pelo menos em sua grande maioria, realizada pelo proprietário, e sim por arrendatários. Nesse modelo, terra e capital aliam-se e corroboram na constituição de um novo tipo, o “produtor rural”; um tipo que explora a terra – de sua propriedade ou não - conforme um discurso de modernidade, cuja vocação e propósito é produzir autonomia econômica e social ao país. Por esse novo modelo o indivíduo que trabalha a terra desaparece, a figura humana historicamente representada pelo trabalho de sol a sol fica invisível e cede espaço para a tecnologia. Está posto o antagonismo do discurso entre realidade e ideologia.

O Capital

No modelo ideologizado para o agronegócio o indivíduo que carrega o “país nas costas” é aquele que detém a terra – própria ou arrendada – também o capital, mesmo que este advenha de políticas públicas que o subsidiem. É esse o indivíduo que é representado no discurso hegemônico, como aquele que “levantará cada vez mais cedo para construir um país melhor”, conforme o texto lido para o comercial. Ele é o detentor dos meios de produção em toda a sua amplitude e o agente que delimita e torna distintiva as classes sociais envolvidas. Na representação dada ao “produtor rural”, é ele quem levanta cedo, quem cuida

3 Segundo tabela de imóveis rurais cadastrados no INCRA, referente a outubro/2003. Disponível em: http://www.imb.go.gov.br/pub/anuario/2005/estfundiaria/tab01_fundiaria.htm

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da propriedade, quem adquire os artefatos tecnológicos possíveis e necessários, que assegurarão o “futuro das suas futuras gerações”, vale ressaltar. De modo oposto, a representação dada ao “trabalhador rural”, permanece a cargo dos indivíduos – proprietários de terras ou não - que lavram a terra, que retiram com sua força de trabalho os produtos para seu sustento e que comercializam os excedentes de produção de forma precária. Assim, a categoria “trabalhador rural”, grosso modo, não detém meios e recursos para “carregar o país nas costas” – mesmo quando na verdade, a “agricultura familiar” brasileira contemple a posição de 8º lugar dentre os maiores exportadores de alimento no mundo -, pois não tem acesso à linhas de crédito, não detém tecnologias, não possui capital, nem são propalados como agentes de transformações e detentores de relevância. Sua produção é ignorada no contexto da produção total, toda relevância recai sobre os frutos do agronegócio. São constituídas classes homogêneas, porém distintas, a partir do binômio terra e capital. Conforme afirma Bourdieu a respeito de “classes construídas”, estas, não são definidas pelas propriedades, independentemente da quantidade delas ou do capital nelas envolvido, mas antes, “pela estrutura das relações entre todas as propriedades pertinentes que confere seu valor próprio a cada uma delas e aos efeitos que ela exerce sobre as práticas”. Nesse sentido, segundo este autor, a construção de classes, implica levar em consideração de modo consciente, a rede de características secundárias manipuladas, implica ainda, em “apreender a origem das divisões objetivas”, as quais possibilitam a seus agentes de as dividirem e voltarem a agrupá-las “realmente em suas práticas habituais, também de se mobilizarem e serem mobilizadas”, segundo e para a “ação política, individual e coletiva” (BOURDIEU, 2008, p.101).

Estratégias hegemônicas que determinam formas de representação

Logo no início deste artigo afirmava que as características identitárias e culturais de algumas cidades são construídas a partir de interesses privados com fito de que o discurso hegemônico medeie a relação entre grupos de interesse e a sociedades por meio de formas de representação. Afirmava ainda que tais construções somente são possíveis mediante estratégias. Denominações como “Goiânia: capital da música sertaneja”, “Agronegócio é a locomotiva de Goiás”, associadas aos discursos de modernidade e progresso, são parte dessas

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estratégias. No ambiente urbano a existência do roceiro vem sendo gradativamente apagada, aquele indivíduo segue à margem da representação que lhe foi dada no ambiente urbano. A categoria construída “produtor rural”, que tem origem no ambiente urbano, é tão invisível para o roceiro, que originalmente é um indivíduo rural, quanto o roceiro é invisível para o produtor rural. Enquanto o roceiro possui uma pequena extensão de terra, produz para subsistência e comercializa o pequeno excedente, não possui acesso ao crédito e ressente pelos filhos que abandonam a propriedade em busca de novas oportunidades na cidade, percebe pelas vias dos meios de comunicação que um indivíduo denominado produtor rural também explora a terra. Para o roceiro, o produtor rural extrai da terra produtos que, apesar de sua longa experiência, jamais extrairia, seja por desconhecimento, seja porque não são úteis para o seu consumo. O roceiro percebe que ambos, ele e o produtor rural, labutam no mesmo ambiente, porém percebe também que possuem condições competitivas diferentes. Nesse caso o discurso hegemônico traz consigo a formação de expectativas e anseios de alcançar aquele que é difundindo como modelo ideal de exploração da terra. Uma das possibilidades de resposta à questão formulada no início deste ensaio, é que a tradução que o roceiro faz da representação construída para ele, se assemelha a uma metalinguagem, na qual ele fala sobre o que falam a seu respeito e apropria-se dessa fala construída como forma de reparação dos danos políticos sofridos, advindos dela. Assim como a relação entre cultura e “cultura” (CARNEIRO DA CUNHA, 2009, p.358-373), “metadiscurso reflexivo sobre a palavra cultura”, uma “autorreferência”, “falar sobre sua própria fala”, sendo “cultura” uma forma da alteridade falar de si mesma dentro de um discurso ocidental; o “roceiro” como categoria analítica toma caminho semelhante. O roceiro vive seu cotidiano dentro de sua cultura, em conjunto com seus pares, cujas práticas de manuseio são reaplicadas à cada ciclo de produção, mas quando fala de si para outros, apropria o discurso vigente que o aproxima do discurso também ocidental e hegemônico, agindo assim, pretende se aproximar dos benefícios prometidos por esse discurso. Comportamento que envolve seus interesses em afinar seu discurso ao discurso vigente, seja como forma de sobrevivência ou de integração ao novo rural construído.

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Se este é o comportamento do roceiro para com o meio externo, é plausível imaginarmos que há também um comportamento esperado pelo indivíduo no ambiente urbano, contaminado ou induzido pelo discurso construído. Supomos que os dois se fundem: há uma falsa verdade na tradução do roceiro e outra falsa verdade no discurso do produtor rural construído.

Uma das estratégias utilizadas para a consolidação dessas formas de representação são originárias da “indústria cultural”. Duplas de artistas do gênero musical atribuído sertanejo; grandes espetáculos em arenas especialmente construídas, grande volume financeiro, abrangência nacional; espaços garantidos em programas de televisão voltados para à grande massa; compõem o ambiente que essa indústria construiu para acolher esse segmento com discurso rural. Para Adorno (1971) as massas são a ideologia da indústria cultural, e é através dessa ideologia que o “conformismo substitui a consciência”, porém o seu receptor não confronta o que ela transmite com o que ela pretende, ou com quais são os reais interesses dos homens envolvidos nela. Mas, para a eficácia de uma presumida ideologização pela indústria cultural, o discurso desta deverá seguir distanciado da perspectiva arcaica histórica do ambiente rural e aproximado da perspectiva emergente, articulando elementos supostamente associados ao “patrimônio cultural” – música sertaneja, música de raiz – às práticas inovadoras de produção e de consumo.

Conclusão

É neste contexto que as estratégias hegemônicas abrem espaço para serem debatidas no âmbito da Antropologia, ou, conforme afirmou Adam Kuper, “o debate sobre cultura voltou a ter um caráter político”. Políticos, mas são também e sobretudo, debates sobre poder cujas ações sugerem que admitamos que as construções edificadas quanto à cultura pelos meios de comunicação são recursos hegemônicos do capital, ainda, que “o instrumento do capital, a mídia, não vende apenas refrigerantes, mas também falsas aspirações”. Se a cultura está sendo utilizada aqui, como meio para manipular expectativas e discursos hegemônicos, consequentemente ela está a serviço do poder. Para Kuper, indiscutivelmente, a Antropologia deve admitir que “a cultura serve ao poder e

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de que ela é (e deve ser) contestada ... e mesmo que não seja exatamente o mesmo que ideologia, com certeza existe um lugar para o relato crítico dos mercadores de cultura” (KUPER, 1999, p.289-293).

Finalmente, mesmo considerando que a abordagem das relações entre o discurso hegemônico presente no texto do comercial e a propriedade da terra e os usos da capital; mesmo considerando a análise da utilização da indústria cultural como estratégia para a disseminação de um discurso hegemônico, cujos alvos são grupos minoritários de pequenos trabalhadores rurais; pressinto que restam dois pontos a serem explorados: o sentido e propósito desse discurso. Ao considerarmos, a partir da veiculação da peça publicitária em questão, que esta possui uma amplitude nacional, portando, homogeneíza o trabalhador rural conforme o estereótipo proposto. Perceptivelmente, o discurso para o agronegócio ignora regionalidades, territorialidades, tradições de manejo da terra e suas peculiaridades. Ao propor homogeneidade, vem à tona pelo discurso, o seu verdadeiro sentido, pois reduz a matriz de produção e apresenta como única possibilidade de exploração da terra as vias do capital, com isto reduz a capacidade do trabalhador e amplia os benefícios da tecnologia e da produção agrícola em grande escala, dentro de um modelo agroindustrial.

Uma vez explorado o sentido do discurso, me resta explorar os seus propósitos, algo que suponho, promoverá o ordenamento das ideias centrais deste ensaio. Propósitos estes que se revertem em desafios para os que persistem em acreditar que a solução para recuperarmos a diversidade alimentar para a mesa dos brasileiros passa pela “soberania alimentar”. Haveria, portanto, um embate entre duas forças, a primeira representada por grupos transnacionais associados com locais, cujos representantes são grandes produtores de defensivos agrícolas (agrotóxicos), fabricantes de alimentos ultra processados, produtores de commodities, além de seus correspondentes atores políticos que destinam políticas de incentivo mediantes recursos públicos subsidiados; cujo propósito recai sobre a perpetuação do histórico modelo de produção e exportação de grãos in natura (especialmente commodities), para posterior aquisição de bens industrializados, via importação. Na outra ponta, defensores de modelo de produção agrícola com recursos democraticamente distribuídos, sejam eles naturais – água e terra -, ou adquiridos, como recursos financeiros e

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tecnologia. Essa segunda vertente entende que uma política soberana para abastecimento alimentar, requer a utilização de circuitos curtos de comercialização, produção e consumo – feiras livres, mercados, venda direta produtor/consumidor, combinados com políticas de agricultura urbana além de outras formas de acesso a alimentos saudáveis. Como se vê são propósitos contraditórios, cujos resultados aparentemente penderiam para o modelo agroexportador, não fossem os resultados positivos do modelo de “agricultura familiar” brasileiro, frente a produção mundial de alimentos, os quais contrariam discursos (também e inclusive técnicos), expectativas e interesses.

Conforme havia alertado preliminarmente, a incipiência de dados de campo implicou na necessidade de análises a partir de conhecimentos prévios ou destituídos da presença de interlocutores que assegurassem a consistência de determinadas afirmações. Definitivamente um risco, no qual, recorrendo a Carolina Branco (2010) na sua análise de Writing Cultures, adverte que “a análise antropológica é uma interpretação sempre provisória, pois o que chamamos de ‘nossos dados’ é, realmente, nossa própria construção das construções de outras pessoas”. Mesmo amenizando meus possíveis riscos neste ensaio, as advertências de Branco, me colocam para pensar nas conclusões de Ingold (2011) para com o que distingue a antropologia das demais disciplinas. Afirma Ingold que tal distinção advém do fato de que a antropologia não é um estudo de, mas um estudo com. Finaliza: “antropólogos trabalham com pessoas”. Admito a falta que me fizeram as vozes.

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Bibliografia

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Referências

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