Samuel Simon
ORGANIZADORFilosofia e conhecimento
Das formas platônicas
ao naturalismo
Com
duas co n fe r ên ci a s inéditas de
J o h n Watkins
EDITORA
00
Capítulo 11
Conhecimento, ciência e natureza:
cartas sobre o naturalismo
P aulo A b r a n t e s * H i l a n B e n s u s a n '*
H á algum te m p o os autores deste artigo têm divergido sobre o n a tu r a lis m o e n q u a n t o p ostu ra m e ta - filo s ó fic a , que te m m u ita s im p lic a ç õ e s n a m a n e ira co m o se c o n c e b e a re la ç ã o e n tre a filosofia e a c i ê n c i a . D e c i d i r a m , e n t ã o , e x p o r as su a s p o s i ç õ e s a d o t a n d o , d e l ib e r a d a m e n t e , um estilo ep istolar que p reserva, em g ran de m e dida, o das c a r ta s que foram, e fe tiv a m e n te , tr o c a d a s e n t r e eles. Es- p e ra -se , c o m esse estilo inform al, n ão so m e n te m a n te r o c a r á te r v í vido de um d e b a te que prossegue, mas ta m b é m c o n t r ib u ir para que os l e i t o r e s se s i n t a m p a r t i c i p a n d o do m e s m o . A s m i s s iv a s sã o id e n tific a d a s pelas iniciais de cad a autor, seguidas do n ú m e ro in d i c a n d o a sua se q u ê n c ia : H l , H 2 e H 3 para H ila n ; P I e P 2 para P a u lo. A s missivas a p a re c e m em laudas n um erad as para fa c ilita r as r e f e r ê n c ia s q u e são fe ita s a d e t e r m in a d a s passag en s. A o fin a l, c a d a um faz u m a a v a lia ç ã o do debate. O s au tores se e s fo rç a ra m para i n cluir, m u itas vezes em notas, e s c la r e c im e n to s c o m p le m e n ta r e s sobre os a ssu n to s d isc u tid o s e definir, na m edid a do p ossív el, os te rm o s t é c n i c o s , de m od o que aqueles que n ão t e n h a m tido c o n t a t o prévio co m a t e m á t i c a possam co m p re e n d e r o que está em jogo. T em as mais gerais em te o ria do c o n h e c i m e n t o são abordados ao long o do d e b a te, de m a n e i r a que essa c o r r e s p o n d ê n c ia pode t a m b é m servir para
D outor pela Universidade de Paris, professor adjunto do Departam ento de Filosofia da U nB. " Doutor pela Universidade de Sussex, professor adjunto do Departam ento de Filosofia da U nB.
P a u lo A b r a n t e s e H ila n B c n s u s a n
i n t r o d u z i -l o s a m u ito s le it o r e s . C a b e r á a ca d a um a v a lia r em que medida, ao final, as posições dos autores convergiram , ou se a d istâ n cia que in ic ia lm e n te as separava a m p lio u -s e .1
Missiva H l
Paulo, W h y is it t h a t s c ie n t is t s a n d m a t h e m a t i c i a n s c a n b e s o p a t i e n t, a n d p h il o s o p h e r s s e e m s o im p a t ie n t? It h a s t a k e n m o r e t h a n 3 t h o u s a n d y e a r s to u n d e r s t a n d t h e c ir c le a n d th e s p h e r e , a n d th e y a r e still w o r k i n g a t it. A n d y e t, w e , p h il o s o p h e r s , a r e p r e p a r e d to g iv e u p a t h e o r y a b o u t r e a lit y a s a w h o l e a t t h e d r o p o f a h a t , b e c a u s e o f s o m e f lim s y a r g u m e n t s a n d b e c a u s e t h e r e a r e h o le s to b e f i l l e d u p . H o w u n r e a s o n a b l e c a n o n e b e ? 2Osw aldo Chateaubriand
1. A epígrafe de C hateau briand é uma provocação. Em um d eb a te entre o naturalista e o não-naturalista, ambos podem dizer que tudo o que precisam é tempo para preencher alguns detalhes e tudo ficará bem. O adversário sempre pode retrucar: sim, mas eu não acredito que seja possível p re e n c h e r estes detalhes a c o n t e n to ; nem que trabalhes mil anos poderás tapar os teus buracos. U m dos lados pode dizer apenas que perdeu as esp eran ças de que o outro p rojeto possa ser levado a term o . U m arg um ento de Q u in e para naturalizar a epistem ologia foi que devemos abandonar toda a esperança na idéia de uma fundam
en-1 Q uerem os agradecer ao professor Sam uel Sim on pela cuidadosa leitura do tex to e por suas sugestões. A s in co rreções que tenh am perm anecido são de responsabilidade exclu siva dos autores.
2 Tradução m inha: “Por que os cientistas e m atem áticos são tão pacientes e os filósofos tão impacientes? Foram necessários mais de 3 mil anos para que entendessem o círculo c a esfera, e eles ainda estão trabalhando nesses temas. E nquanto nós, filósofos, estam os prontos para abandonar uma teoria sobre a realidade com o um todo cm um instante, por causa de alguns argum entos controversos e porque há brechas a serem preenchidas. Q u ão pouco razoável pode alguém ser?”
Conhecimento, ciência e natureza: cartas sobre o naturalismo
ta ç ã o do c o n h e c im e n to por meio da redução da ciê n c ia à observação por m e io de u m a t r a d u ç ã o de s e n t e n ç a s da c i ê n c i a e m te r m o s observacionais, lógicos e c o n ju n tístic o s (“W e m ust d esp a ir o f an y su ch
red u ctio n . C a r n a p h a d d isp a ired o f it by 1 9 3 6 1 9 8 7 a , p. 2 1 ) . Em seguida, ele o b serv a que “ [t]h e em p iricist m a d e o n e m a jo r c o n c e s s io n
w h en he d esp a ired o f d edu cin g the truths o f n atu re fr o m sen sory e v id e n c e ”3
( 1 9 8 7 a , p. 2 2 ) . A re tórica parece sugerir que todas as esp eran ças no p ro jeto que ele co m b a te são infundadas. Q u in e quer fazer seu leitor desistir de uma f u n d a m e n t a ç ã o da c i ê n c ia qu e seja a c e it a v e l m e n t e co m p leta sem fazer uso de c iê n c ia ; o empirista, ele m esm o, desistiu. A d e s is tê n c ia , é cla ro , n ã o é uma d e m o n s t r a ç ã o - os m a t e m á t i c o s que desistem de provar uma proposição não d eixam provado que ela é inválida - e n em é, ela m esma, um argum ento. E n tã o eu qu ero usar a p ro v o c a ç ã o da epígrafe co m o uma p ro v o ca ç ã o a m im m esm o no s e gu inte sen tid o : vou te n ta r e s t a b e le c e r porque, a meu ver, o p ro jeto n atu ralista é in c o rre to sem apelar para os buracos que faltam p r e e n ch e r na sua p a v im e n ta ç ã o . E m outras palavras, te n ta r e i n ão utilizar apelos do tipo: “m elhor d esistir!”.
2. Para começar, acho que eu deveria explicar de que ponto de vista penso que o naturalism o é in correto. O u seja, o que esp ecifica m e n t e eu p e n so q u e e stá in c o r r e t o . O s ap elos de Q u i n e c o n t r a o f u n d a cio n a lism o m uitas vezes n ão d eixam cla ro que e x is te m muitas alternativas para quem o rejeita; o naturalismo qu in ean o é apenas uma delas. V ocê cita as duas com p onentes centrais do naturalism o segundo K itc h e r (A brantes, 1998, p. 14) com o sendo a re je ição do a priori e o psicologismo. Eu n ão posso sim plesm ente a ce ita r essas duas teses do mesmo modo com o o naturalista supostamente rejeita-as, uma vez que elas não p arecem claras o suficiente. Vou apresentar um c o n ju n t o de teses que os naturalistas defendem e que eu aceito sem problemas:
1 Tradução m inha, antes: “Nós devemos desistir de uma tal redução, C arnap desistiu dela por volta de 1 9 3 6 ”. E depois: “O empirista fez grandes concessões quando ele desistiu de deduzir verdades sobre a natureza a partir da evidência sensória”.
P a u lo A b r a n t e s e H i l a n B e n s u s a n
a) E x tern a lism o : é possível que A c o n h e ç a p sem ser capaz de apresentar uma ju stificação para p, desde que uma ju stifica- ção para p possa ser apresentada.
b) S ellars: nossos sistemas de con h ecim en to (por exemplo, a c iê n cia) são racionais não porque estão bem fu n d am en tad os em bases sólidas, mas porque cada um dos seus elem entos pode ser colocado em cheque, ainda que não todos ao mesmo tempo. c) B oy d : o papel da epistemologia não é tratar da origem ou do
fu n d am en to das crenças, mas de com o as cren ças se regulam. d) D es co b erta : o c o n t e x to de descoberta deve ser levado em c o n sid e ra ç ã o pela ep istem olog ia, uma vez que a d e s c o b e r t a se re lacion a de muitas maneiras co m a justificação.
e) P r a g m a tism o : as norm as surgem das práticas - mas n ã o são cap tu ráveis em forma de regularidades.4
f) C iên c ia cogn itiva: nossos instintos cognitivos in fluenciam o modo co m o argumentamos, as justificações que aceitam os e, de um modo geral, o que con cebem os com o racional.
N ã o são essas teses que disputo; podemos tratá-las c o m o pano de fundo. M e u pro b lem a c o m o n atu ra lism o , c o n t u d o , n ão a p are ce apenas c o m as suas versões mais fortes.5 O problem a a p are ce no n a t u ralism o de G o ld m a n se ele pensa que j u s t if ic a ç ã o e n o rm a tiv id a d e p od em ser e n t e n d id a s em term os i n t e i r a m e n t e p sico ló g ic o s. M in h a c r ít ic a ao n a tu ra lism o o rig in a-se da a c e it a ç ã o de uma im ag e m mais ou m e no s k a n t ia n a do c o n h e c i m e n to , segundo a qual “j u s t i f i c a ç ã o ” p e rte n c e a uma família de termos epistêm icos re lacio n ad os co m res p o n sab ilid ad e e c a p a c id a d e de dúvida.
4 Endosso aqui a posição de W ittgenstein acerca das norm as que regem nossos co n ceitos em co n texto s específicos e de sua irredutibilidade à regras explicitam en te form uladas (ver W ittg en stein 1948, p. 1 4 3 -1 9 0 ).
5 Susan H aack fala que Q uine defende alternadam ente duas versões de naturalismo, uma mais moderada e outra mais radical (H aack, 1993). Você uma vez fez uma lista de teses naturalis tas (em filosofia da ciência) postas em ordem crescente de força que eu adaptei na m inha tese de m estrado.
Conhecimento, ciência e natureza: cartas sobre o naturalismo
3. Para dar o primeiro passo no debate, vou te n ta r en fren tar im e d ia ta m e n te a pro v o cação da epígrafe, analisando a c o n je c tu r a de um projeto naturalista com pleto. Imagino assim um projeto natu ralista bem- sucedido: temos um c o n ju n t o de leis da natureza que substituem , r e duzem ou dissolvem todo discurso e toda p re o c u p a ç ã o ep istê m ica e sem ântica. N ã o im porta se essas leis estão unificadas (se, por exemplo, o fisicalismo6 vingou). D e todo modo, temos um c o n ju n t o de leis que torn am re du ndante qualquer m e n ç ã o a predicados epistêm icos ou s e m â n tic o s ( ju s tific a ç ã o , verdad e, re fe r ê n c ia ) . N ã o h á mais n e n h u m a n ecessid ad e de apelar para esp ontaneid ade, a u to n o m ia , re sp on sabili dade ou crític a quando falamos do co n h e cim e n to , de sua aquisição e, em algum sentido, de sua legitimidade. N ão im porta se todo discurso n o rm a tiv o foi tornad o redu n d an te (dissolvido, substituído ou reduzi do); pode ser até que ainda falemos em livre-arbítrio e em responsabi lidade e c r ít ic a q u an d o tratam os de ações, im agin and o q u e se possa ter uma distinção baseada em algum princípio b em -e sta b e lec id o entre a ju s tific a ç ã o das ações e a ju stific a çã o das c r e n ç a s .7 A p e n a s q u a n to ao c o n h e c im e n to - e q u anto à ace itação ou à fix ação das cre n ça s - há um determ inism o segundo o qual o que co n ta com o c o n h e c im e n to pode ser previsto ou explicado por meio de leis físicas, fisiológicas, psicológi cas e/ou sociais. Todo discurso acerca das razões para aceitarm os uma c r e n ç a e, de modo geral, toda a racionalidade te ó rica foram tornados redundantes dado o arsenal de leis que agora disporíamos.
Penso que, em uma tal situação, meus dois personagens da p a lestra que dei nos Se m in ário s In tern os do D e p a r t a m e n t o de Filosofia (S IP -F IL ) (Be n su san , 2 0 0 1 ) ficariam sem resposta. To m em o s dois per sonagens para ilustrar meu po n to de vista. O primeiro p ersonagem é o tr a d icio n a l c é tic o . O c é tic o diz assim: duvido daquilo que vo cês d i zem que eu devo acreditar. Bem , uma vez que tem os uma c o m p leta
6 D e um modo geral, o fisicalismo procura inserir todos os processos naturais no âm bito da física (por vezes da física fu tu ra).
7 C ertam en te, eu duvido que uma tal distinção seja possível, mas não posso fazer uso de argum ento baseado nessa dúvida dado o meu compromisso referente à epígrafe.
P a u lo A b r a n t e s e H ila n B e n s u s a n
e xp lic ação por meio de leis de todo o m ecanism o de ace ita çã o de c r e n ças, a dúvida do c é tico poderia ser explicada - e mesmo descartada - por uma e x p lic a çã o que envolvesse uma deficiência, por exem plo, na ativação de uma fibra, digamos, a fibra C. M as se levarmos a dúvida do cé tic o a sério e tentarm os respondê-la, teremos de apontar para as leis que, tam b ém parte da nossa ciência, nos levaram a termos as crenças que temos. Essas crenças, nós diríamos, são mais adaptadas, mais confiáveis ou o que fosse. O cético , entretan to , poderia insistir que não vê razões para acred itar nelas, pois tam b ém não acred ita nas leis às quais nós fazemos apelo. Para justificar tais leis, é claro, nós apelamos para outras leis, ou talvez para as mesmas leis, se elas forem leis qu e to rn a m o discurso epistêm ico tradicional redundante em todos os casos. O c é t i co poderá dizer que nós não estamos mais arg um entando, mas apenas re p etin d o o que dissemos antes; em todo caso poderá c o n t in u a r duvi d an d o. A q u a lq u e r m o m e n t o , nós pod em os d e s q u a lif ic a r o c é t i c o , dizer que sua fibra C está co m defeito, ou c h a m á - l o de ir relev a n te. N o e n t a n t o , ele sem pre p o d erá nos le m b rar qu e, talvez em ou tros tempos, teve discussões sem elh an tes co m os astrólogos, discussões nas quais ele era re b a tid o c o m arg um ento s que ap e lav am para mais a s trologia (v ocê n ão a cred ita no zoodíaco porque v o cê n asce u em j u lho, e t c . ) . D e fato, o c é tic o pode dizer que qu alqu er c r e n ç a pode ser d efen d ida da m e sm a m an eira: apelando para ou tras c r e n ç a s d en tro de um sistem a; e sempre é possível interp retar a dúvida nos term os de um sistem a de m odo que n u n c a seja admitida q u alqu er posição que v e n h a de fora d e le .s Penso que poderíam os sem pre d e s c a rta r ou e s q u e c e r o c é tic o , e poderíamos ter bons in stru m entos para dissolver ou d esc o n sid erar suas dúvidas - in stru m en to s r e a lm e n te efetivos e que nos façam , de fato, não ter n en h u m a p re o cu p ação c é tic a . M as penso
8 O cético talvez pudesse acusar o naturalista de adotar uma postura que cu com paro com a do alraiate da fábula da nova roupa do rei. O alfaiate diz: “se alguém não enxergar a roupa do rei, é estúpido”. O alfaiate en tão garante a aceitação de sua proposição (“o rei não está n u ”) pois dentro de sua própria teoria (conjunto de postulados) há uma interpretação para a negação da proposição. O u seja, o cético pode fazer ao naturalista uma crítica do tipo da que Popper, por exem plo, fez à psicanálise.
Conhecimento, ciência e natureza: cartas sobre o naturalismo
que nos e n c o n tra ría m o s em uma posição em que teríam os pou co es p aç o para o fe re c e r resp o stas ao cé tico .
N o te que eu com partilho com o naturalista a tese que eu cham ei de S ellars. O u seja, não se trata de pensar que as cre n ça s devam ser justificadas sem apelo às outras. O naturalista pode acusar o c é tico de estar pressupondo uma arq u itetôn ica fundacionalista para a ju stific a ç ã o e insistir que ele não está disposto a oferecer nada deste gênero, vima vez que arg um entos m ostram que isto n ã o é possível. O c é tic o poderia e n tã o dizer algo assim: eu apenas quero saber o que me impele a acreditar no que você acredita, dadas algumas crenças que eu c o m partilho c o m v ocê (por exemplo, nós estamos de acordo acerca do que f a la m o s). Eu qu ero apenas, prosseguiria o c é tic o , c o n v e n c e r -m e das suas cren ças, dadas algumas outras crenças que eu tenho; posso pensar nas m inhas dúvidas inteiram ente em termos de outras crenças e não de um fu n d a m e n to - e o c é tic o aqui aceitaria a nossa tese B oy d . E n tão nós poderíamos c o n ta r alguma estória nô m ica acerca das crenças que c o m p a r tilh a m o s c o m o c é tic o , mas o c é t i c o poderia q u e stio n a r esta estória e não re c o n h e c e r as suas crenças dentro da estória nô m ica que nós co n tam os. Eu aceito crenças, ele poderia dizer, se elas me parecem justificadas e o m ecanism o de aceitação que vocês propõem (adaptabi lidade, confiabilidade, etc.) não me parece justificado - a justificação que v o cê s ap re sen tam para elas não é aceitável. Nós ainda podemos insistir que ele se re c o n h e ç a na contraparte nôm ica do seu m ecanism o de a c e it a ç ã o de crenças. O c é tico então poderia afirmar: a cr e n ç a de qu e uma c r e n ç a é ju stific á v el porque o b ed e ce a ce rtas propriedades definidas em uma lei é uma cren ça que eu não posso por em dúvida dentro do sistem a de vocês. E ele continuaria: “está bem, eu desisto de fundacionalism o e aceito S ellars, e por isso mesmo eu considero que o sistem a de vocês n ã o é racional, certas coisas não podem ser postas em c h e q u e ”. T alv ez e n t ã o p ossam os te n t a r usar a te se c o m p a r t i lh a d a
E x tern a lism o para dem over o c é tic o de sua in sistê n cia em possuir, ele m e sm o, u m a j u s t if ic a ç ã o que seja para ele a c e it á v e l. Ele, o c é ti c o , pode saber que estam os certos sem saber disso, ele pode saber porque nós ju stific a m o s sua c r e n ç a . Porém ele sempre poderia retru car: “vocês
P a u lo A b r a n t e s e H ila n B e n s u s a n
re alm ente possuem uma ju stific ação ?”. Eu penso que em um tal diálogo nós estaríamos em uma posição em que, de novo, poderíamos descartar ou d isso lv e r as c r e n ç a s c é t i c a s (por m e io de u m a te ra p ia q u e nos c o n v e n c e s s e de que nós n u n c a estivemos na posição de não re c o n h e - c e r q u e ju s t i f i c a ç ã o é ad a p ta b ilid a d e ou c o n f ia b ilid a d e , e t c . ) , mas n ão poderíam os o fe rec er respostas à dúvida c é tic a .
4. A lgo s e m e lh a n te se passa com o segundo p ersonagem , o des- cr e n te . O d e sc re n te diz assim: “eu não penso que vocês, c o m todas as leis qu e vocês defend em , e ste ja m falando sobre o m u n d o ”. E le pensa que n ão apenas n ão estam os descrevendo o m undo, co m o pensaria o re a lista c i e n t í f i c o (de c u n h o re alista m e ta fís ic o de P u t n a m , 1 9 7 8 ) , mas que n em sequer sofremos qu alqu er in flu ên cia do m u ndo n a c o n s tr u ç ã o de nossas teorias. So frem o s, ele diz, in flu ê n c ia de um ersa tz m undo, ou seja, de um arrem edo postulado por nossas teorias (talvez co m base naqu ilo que nós p ercebem os e na nossa cap acidad e de p r e ver e c o n tr o la r nossas p e rce p çõ e s). O arrem edo de m u ndo - tal co m o a ersa tz ju s t if ic a ç ã o que n ão c o n v e n c e r a o c é tic o - n ã o é o m u n d o no qual o d e s c r e n t e se en x e rg a . Ele n ã o c o m p r e e n d e o sig n ifica d o do que nós falam os, e qu and o nós insistimos em falar no que, no nosso sistem a, faz os papéis de r e fe rê n c ia e de verdade (seja por m e io de uma re d u ção destes predicados a predicados físicos, seja por uma su bs ti tu iç ã o deles por p re d ic a d o s físico s), o d e s c r e n t e te m um diálogo c o n o s c o m u ito parecido co m aquele que o c é tic o teve - o d e sc ren te nos acu sa de preparar tam b ém uma ersa tz verdade, uma e rsa tz r e f e rên cia. N ó s podem os insistir em apontar para partes do m u ndo a fim de d eixar e x p lícito do que estamos falando. O d e sc ren te e n t ã o insis tiria que nós n ão podemos estar falando daquilo que nós apo ntam os; ele in siste qu e u m a g e n u ín a r e la ç ã o de r e fe r ê n c ia n ã o se dá. A q u i nós podem os en viar o d esc ren te para tr a ta m e n to ou varrer sua a ti tu de por b a ix o do ta p e te do que nós podem os agora d e s c re v e r co m o m u ndo co m p a rtilh a d o ou ainda deixarm os de nos p reocu par c o m ele depois de algum tem po de terapia. Mas, aqui tam bém , penso que não teríam os co m o o fe re c e r respostas.
Conhecimento, ciência e natureza.- cartas sobre o naturalismo
N o te que esse argumento não está apenas querendo mostrar que o naturalism o não é desejável. N ão se trata apenas do que é desejável, esto u t e n t a n d o a p o n ta r para pro p ried ad es f u n d a m e n t a is da esfera epistêmica, tais co m o a dúvida e a capacidade de responder ao o bjeto de co n h e c im e n to , que não podem ser preservadas no projeto natu ralis ta. Penso que essas propriedades não podem ser ab and onadas9 se a lm e jam o s uma c o n c e p ç ã o racional do mundo.
Missiva P I
H i la n ,1. U m a das d ific u ld ad es em d isc u tir o n a tu r a l is m o - m esm o se nos re strin girm os às suas versões mais r e c e n t e s em te o ria do c o n h e c i m e n t o - é a v aried ad e de o r ie n ta ç õ e s e n g lo b ad as sob esta d e n o m i n a ç ã o . 10 C o m o disse em ou tro lugar, “n ã o é ó b v io q u e h a ja um n ú c le o c o m u m de com p rom isso s a c e ito s por todas as v aried ad es de n a t u r a l is m o ” ( A b r a n te s , 1 9 9 8 , p. 14).
Isso é um problema para quem queira discutir qu alqu er um dos “is m os” filosóficos (penso na variedade de racionalism os, empirismos, realismos, etc.) e não pode ser apontado com o uma d eficiência parti cular do naturalism o co m o p o s tu r a filo s ó fic a . E, p o r t a n t o , crucial que se faça distinções, que se te nte uma tipologia de posições naturalistas, que se elenqu e teses naturalistas com variados graus de “força”, com o tentei fazer tempos atrás (e você se refere a isso num a n o ta ). Feito esse esforço preliminar, algumas das teses naturalistas podem mostrar-se mais
9 Sellars, em Philosophy an d the scientific imane o f m an diz: “to com plete the scientific im age we
n eed to enrich it not with w ays o f saying w hat is the case, but with the language o f com m unity and individual intentions" (Sellars 1963, p. 4 0 ). Tradução m inha: “para com pletar a imagem c ie n tífica [do m undo] ela precisa ser enriquecida não apenas com m odos de dizer o que é o caso, mas com a linguagem da com unidade e das intenções individuais”.
“ D evem os restringir o debate ao naturalism o em epistem ologia (pois há posturas naturalistas em outros dom ínios da filosofia, com o a m etafísica, a ética, e t c .) .
P a u lo A b r a n t e s c H ila n B c n s u s a n
fáceis de se defender, mais fáceis de se aceitar, mais c o n s is te n te s e, sobretudo, mais férteis do que outras. Você mesmo está disposto a acei- tar diversas teses que você qualifica de “natu ralistas”, mas não outras. Eu tam bém, co m o ficará claro a seguir.
G ostaria de co m e ça r fazendo um com e n tário a respeito de cada uma das seis teses que você acredita que sejam defendidas por natura- listas e aceitáveis para você, e que são nomeadas de E x tern a lism o, S ellars,
B oy d , D es c o b erta , P ragm atism o, C iên c ia C ogn itiva. C o m elas v ocê pre- tende tornar mais “clara” a caracterização que propõe K itc h e r do n a turalismo, conform e a apresentação que fiz em A bran tes (1 9 9 8 ).
Externalismo
2. O “e x te rn a lis m o ” em teoria da ju stific ação é, de fato, usual m ente considerado uma posição naturalista. O externalism o distingue- se do “in tern a lism o ” en q u an to teoria da justificação.
Para efeito da discussão que se segue, distinguirei, c o m o é de praxe, os seguintes tipos de “estados d o xástic o s” em que pode se e n co ntrar um sujeito s:
A s p , J A s p , C sp ,
que se lêem, resp ectivam en te, “s acredita (ou crê) que p", “s acredita ju stificad am ente que p ”, “s co n h e c e p ”, onde p c uma proposição.
Se g u n d o a tra d icio n a l c o n c e p ç ã o tripartida do c o n h e c i m e n t o , um sujeio 5 possui c o n h e c im e n to de que p (Csp) se as seguintes c o n d i ções são satisfeitas: i) p; ii) Asp; iii) Jasp.
C ada uma dessas co n d içõ es é necessária e as três são, c o n ju n ta m e n te , su ficientes para que s c o n h e ç a que p (Csp). Essa análise de “c o n h e c i m e n t o ”, e m b ora v e n h a sendo c o n t e s t a d a desde os fam osos argumentos tipo G e ttie r ,11 será aceita no que se segue. O que está, no
11 G ettier (1963) criticou a concep ção clássica dc “co n h ecim en to ” com o “cren ça verdadeira justificad a”, que rem onta a Platão. Essas três condições, ele m ostra, são necessárias, mas não suficientes para que haja conhecim ento.
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m om ento, em jogo na nossa discussão sobre o naturalism o é a condição (iii), ou seja, o que co n ta para que s seja ju stifica d o na sua crença.
O internalista tipicam ente defende que as cond içõ es estabelecidas para a ju stificação de uma cren ça sejam “re co n h e c id a s”, sejam “direta ou tran sp aren tem e n te acessíveis” ao sujeito (5) do c o n h e c im e n to . Em outros termos, o internalista exige que o sujeito creia (acredite), creia justificad am ente ou c o n h e ç a as condições necessárias para a justifica- ção de uma c r e n ça particular que ele tenha.
Para facilitar a exposição, cham em os de t à cláusula (iii) da a n á lise tripartida anterior. O in te rn a lista exige, p o rta n to , que o su je ito esteja, c o m respeito a t, num dos seguintes estados doxásticos:
A s t , J A s t , C s t ,
que se lêem, respectivam ente: “s acredita que t" (isto é, s acredita na - ou “ r e c o n h e c e ” a - j u s t i f i c a ç ã o da su a c r e n ç a ) ; “s a c r e d i t a ju stificad am en te que t”; “s co n h e c e que t”.
H á, p o rta n to , vários graus de in tern alism o , c r e s c e n te s em sua “força” (o primeiro deles é o mais fraco), e cada uma dessas condições internalistas co lo c a problemas particulares que não p reten do discutir aq u i.12 O externalism o é visto com o uma ten tativ a de responder a algu mas dessas o bjeções ao internalismo.
A n t e s de a b o r d a r o e x t e r n a l i s m o , g o s t a r ia de m e n c i o n a r o internalism o atípico de Pollock (1 9 8 6 ). Ele considera-se um natu ralis ta, mas defende que as normas epistêmicas devem instan ciar-se e x c lu sivam ente em “estados in tern o s” do sujeito (e não im plicam qualquer relação desses estados internos co m estados de coisa no m u ndo). Pollock caracteriza as teorias internalistas com o aquelas que fazem depender a ju s t if ic a ç ã o u n i c a m e n te de estados in tern o s do su je ito. Tais estados internos são aqueles aos quais o sujeito tem “acesso d ire to” (“que são diretam ente acessíveis aos mecanism os em nosso sistema nervoso c e n
12 Alguns desses graus de internalism o (mas não todos) conduzem , com o se pode verificar facilm ente, a uma regressão ao infinito na análise de “co n h ecim en to”.
P a u lo A b r a n t e s e H i l a n B e n s u s a n
trai que dirigem o nosso ra c io cín io ”, id. ibid., p. 13 4 ). M as para Pollock tais estados não se restringem a estados epistêmicos (doxásticos) com o os de c r e n ç a - co m o na caracterização do internalism o por D an cy (1 9 8 5 ) - mas in clu em tam bém estados perceptuais e de mem ória (estados não- doxásticos). O u seja, para que um estado seja “d iretam ente acessível”, na perspectiva de Pollock, não é necessário que tenham os cren ça s (muito menos, cren ças justificadas ou c o n h e cim en to ) a respeito desse estado. Podemos, portanto, classificar as teorias da ju stificação em duas c a t e gorias, as doxásticas e as n ão-doxásticas.
a) Nas teorias doxásticas, a justificação de uma c r e n ça depende ex clu siv am e n te do “estado doxástico” do sujeito, ou seja, das outras cren ça s que ele possui no m om ento. As teorias da justi- ficação doxásticas incluem o fundacionalismo e o coerentism o. b) Nas teorias n ão-doxásticas, a justificação depende de fatores
extern os ou de estados internos do sujeito qu e n ã o sã o cren ça s (por ex e m p lo , estados perceptu ais e de m e m ó r ia ). A teoria i n t e r n a l i s t a da ju s t i f i c a ç ã o q u e P o llo c k a r t ic u la i n c lu i- s e , p ortanto, nesta última categoria.
O internalism o de Pollock qualifica-se, no e n ta n to , co m o “n a t u ralista” (ao lado do e x tern alism o , mas n ã o se c o n fu n d in d o c o m ele) porque a ju stificação de uma cren ça dá-se por um processo ou m e c a nismo que pode, em princípio, ser descrito e explicado pela psicologia: “N u m sentido im portante, descrever nossas normas epistêmicas reais é parte da psicologia” (id. ibid., p. 173).
C o n tra ria m e n te ao internalista típico (doxástico), o externalista exige sim p le sm en te qu e as c o n d iç õ e s necessárias para a ju s t if ic a ç ã o estejam , de fato, o b jetiv a m e n te satisfeitas, ou sejam verdadeiras. N ão se exige (com o faz o internalista) que o sujeito esteja num estado doxástico particular (de um dos graus que distingui acim a).
S e g u n d o a c o n c e p ç ã o tripartida do c o n h e c i m e n to , além de sa tisfazer à co n d iç ã o de verdade, nossas cren ças devem ser justificadas para habilitarem -se com o con h e cim en to . Para o externalista, é a re la
Conhecimento, ciência e natureza: cartas sobre o naturalismo
ç ã o co m um estado de coisas no m u ndo (um estado “e x t e r n o ”) que e s t a b e l e c e a ju s t if ic a ç ã o da c r e n ç a (su p o sta m en te v er d a d e ira ). Essa justificação, para o externalista, é função de fatores aos quais o sujeito não tem acesso direto. Lehrer (um internalista, diga-se de passagem) apresenta o externalism o de modo especialm ente claro:
A tese cen tral do extern alism o é que algum a relação com o m undo externo, responsável pela verdade de nossa crença, é suficien te para converter uma crença verdadeira em conhecim ento, sem que tenhamos q u alq u er id éia d aq u ela relação. N ão é a n ossa c o n cep ção de com o nós estam os relacio n ad os com um fato que gera con h ecim en to, mas sim plesm ente o fato de estarm os relacionados com ele (Lehrer, 1990, p. 153).
Nas teorias externalistas, a relação (naturalista) en tre c r e n ç a e verdade, ou en tre o estado m ental e os “fatos” que fazem a cr e n ç a ser justificada, pode ser de tipo causal, nomológico, informacional, probabilista, de d e p e n d ê n c ia c o n t r a fa c tu a l, etc.
O e x t e r n a l i s m o é u m a b o a t e o r i a p a r a o c o n h e c i m e n t o p e r c e p t u a l: n ã o te m o s “a c e s s o ” d ir e to aos p ro c e s s o s g e ra d o re s de nossas c r e n ç a s p e rce p tu ais, o que n ão im pede, por e x e m p lo , qu e eu t e n h a c o n h e c i m e n t o ( c r e n ç a v erdad eira ju stific a d a ) de qu e h á uma te la de c o m p u t a d o r d ia n t e de m im n e s t e m o m e n t o . B a s t a q u e se e s t a b e l e ç a a r e la ç ã o n a tu ra lista dos meus órgãos dos sen tid o s c o m o o b j e t o e x t e r n o p ara q u e eu e s t e j a ju s t i f i c a d o n as m i n h a s c r e n ç a s p e r c e p tu a is . C o m re s p e ito a o u tra s form as de c o n h e c i m e n t o (por e x e m p lo , o c o n h e c i m e n t o c i e n t íf i c o de p ro c esso s n ã o - o b s e r v á v e i s , o c o n h e c i m e n t o m a t e m á tic o , e t c . ) , o e x t e r n a lis m o e n f r e n t a d if ic u l dades q u e n ã o c a b e d isc u tir aqui.
E x e m p lo s de teorias e x t e r n a lis t a s in c lu e m a te o ria c a u sa l do c o n h e c i m e n t o e o confiabilism o, que G o ld m a n d efen d e a tu a lm e n te . Se g u n d o a te o ria confiabilista da ju stific ação , um su je ito s está ju s t i ficado na sua c r e n ç a se a te rce ira c o n d iç ã o da análise tripartida do c o n h e c i m e n t o for:
_ P a u lo A b r a n t e s c H ila n B e n s u s a n
iii) A c r e n ç a de 5 de que p foi adquirida por meio de um proces- so/método confiável.
O confiabilismo de Goldman é externalista porque não exige que 5
acredite (creia), reconheça, ou mesmo compreenda que o processo/mé todo que gerou a sua crença é confiável; mesmo assim, s tem uma crença justificada de que p se o processo/método utilizado é, de fato, confiável.
D e m odo mais geral, L eh re r ( 1 9 9 0 ) a p re sen ta o e x t e r n a lis m o confiabilista co m o a tese de que é a “história n a tu r a l” da c r e n ç a , ou seja, o modo (“n a tu ra l” ou “físico” ou, ainda, “o b je tiv o ”) co m o a cren- ça se c o n e c t a co m a verdade, que a habilita a ser c o n h e c im e n to , in d e p e n d e n te m en te do sujeito - de qualquer sujeito - ter ou não “acesso ” a tal h istória.13
3. U m a primeira crítica que se faz ao externalism o distingue pos suir inform ação (correta) de algo e ter c o n h e c im e n to de algo (Lehrer, 1 9 9 0 , p. 1 6 4 ) . O u seja, o tipo de re laç ão n atu ralista e n tre c r e n ç a e verdade pode ser suficiente para se ter informação, mas não para se ter c o n h e c im e n to . Para ter c o n h e c im e n to o sujeito precisa possuir infor m ação adicional (ou inform ação “de fundo”) a respeito da relação n a turalista (e.g. da história natural da sua cr e n ça ). N ão basta, portanto, que a re lação n atu ralista o b jetiv a m e n te se dê. O sujeito precisa crer, crer ju stific ad am en te ou c o n h e c e r isso. Em outros termos, a in fo rm a ção que o su jeito possui precisa ser “resultado de p e n s a m e n t o ”, para habilitar-se a c o n h e c im e n to .
B Pollock qualifica a teoria de G oldm an de externalista porque, para este últim o, a “co rreção ” dos processos cognitivos (sua confiabilidade) não seria uma propriedade essencial desses processos, mas dependeria de com o o mundo real é “estruturado”. O u seja, um processo cognitivo poderia ser confiável em nosso mundo - e portanto justificar uma cren ça de um sujeito vivendo neste m undo - mas não ser nada confiável num outro m undo possível (e a cren ça resultante desse m esm o processo seria, neste outro mundo, inju stificad a). O u seja, a confiabilidade de um processo é uma questão contin gente, e não necessária (Pollock, 1986, p. 2 3 ). O internalismo, ainda segundo Pollock, exigiria que “se uma com binação particular de entradas [inputs] perceptuais e de raciocínio produzem crença justificada no mundo real, então produzirá cren ça justificada em todos os mundos possíveis” (id■ íbicl., p. 116).
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U m a outra crític a, re lacionad a à anterior, é que o e x tern alista c o m e te a “falácia cau sa l” (Lehrer). O ex tern alism o con fu n d e a ra z ã o para termos uma cr e n ç a com a ca u sa dessa cren ça. O que im porta para termos c o n h e c im e n to são as razões que temos para justificar nossas cren- ças, e não a história natural (causal, inform acional, etc.) dessas últi mas. E m suma, devem os distinguir a ex p lic a ç ã o de uma c r e n ç a (com base na sua história natural) da sua ju stifica çã o (com base nas razões ou evidências do su jeito).
Em bora você diga que aceita a tese E xtern alism o, parece c o n c o r dar co m essa crítica, tom ando o partido do c é tico “que não vê razões” ( H l : 3) para acreditar na história natural que apresenta o naturalista. M ais adian te, v ocê volta a c o lo ca r-se no lugar do c é tic o : “eu aceito crenças, ele poderia dizer, se elas me parecem justificadas e o m e c a n is mo de a c e i t a ç ã o qu e v o cê s [natu ralistas] propõem (adap tabilidad e , c o n fia b ilid a d e , e t c .) n ão me p are ce ju stific a d o - a ju s t if ic a ç ã o que vocês ap resen tam para elas não é a c e it á v e l” ( H l : 3 ) . O c é tic o exige poder co n tin u ar duvidando das descrições ou explicações (nomológicas, causais, e t c .) propostas pelo n atu ralista (que, na a p r e s e n ta ç ã o deste último que v ocê nos oferece, pretende anular essa possibilidade de dúvida por interm édio de manobras reducionistas ou eliminativistas, co m o discuto a seguir). Em outras palavas, o c é tic o não ace ita uma ju stific a çã o de tipo n ã o -d o x á stica (externalista), pois isso implicaria abdicar de seguir c o lo ca n d o em dúvida algumas das crenças do naturalista.
N ão haveria com o escapar, você afirmaria, de uma teoria doxástica da justificação. Apelar, com o faz o naturalista, para, por exemplo, uma lei, é c o m p rom ete r-se co m uma cren ça. O c é tic o pode c o n tin u a r di zendo que duvida dessa c r e n ça (duvida que a relação nom ológica, no caso, seja verdadeira, seja um fato objetivo). N ão podemos, diria você, escapar da esfera doxástica - sair do “espaço de razões” e postular, por exem plo, uma c o n d iç ã o n ã o -d o x á s tic a , co m o a de co n fiab ilid ad e de processos psicológicos/métodos de geração de crenças - a qual não t e mos acesso direto, “c o n s c ie n te ”. Ponto para o cético: ele exige razões - uma genuína justificativa epistêmica - para a ace ita çã o de uma c r e n ça, e não leis (causas, etc.).
P a u lo A b r a n t e s e H ila n B e n s u s a n
4- D e toda forma, tam pouco um apelo a razões satisfaria o cético: ele pode c o n tin u a r sempre duvidando das nossas razões (justificativas doxásticas). Por exemplo, se você é um coeren tista em teoria da ju sti fic a ç ã o - c o m o me p arece traduzir a sua tese B oy d - , uma c r e n ç a é ju stificad a se for co eren te c o m todo um c o n ju n t o de cr e n ç a s. O ra , o c é tic o pode sempre duvidar de uma ou mais dessas “crenças de fundo” para neutralizar a oferta de justificação, de razões. A propósito, eu não incluiria, com o você faz, a tese B oy d no “c red o ” naturalista, tendo em vista o seu ca rá ter internalista e doxástico.
N a su a t e n t a t i v a de a r t ic u l a r um a r g u m e n to t r a n s c e n d e n t a l a p l i c á v e l ao c é t i c o e ao d e s c r e n t e , na p a l e s t r a d a d a n o S I P - F I L (Be n su san , 2 0 0 1 ) , v ocê defende a au ton o m ia do “esp aço e p is tê m ic o ”, a sua irred u tib ilid ad e:
Im porta que se o espaço das razões é explicado em termos quaisquer, mas de natureza não-epistêm ica, estes termos impedem algum a dúvida. A redução do epistêm ico ao que quer que seja atrela a dúvida a algo não-epistêm ico (...). O caráter especial do espaço epistêm ico é o que permite crer e duvidar (id. ibid., p. 6).
J u n t a n d o os argum entos c o n tra o c é tic o e c o n tra o d e sc re n te , v o cê arre m a ta mais adian te: “O s pressupostos da c o m p re e n s ã o e da dúvida a p o n ta m para um esp aço ep istêm ico g en u ín o ( ...) . O esp aço epistêm ico é o espaço da interp retação das crenças e o espaço da dúvi da” (id. ibid. p. 7).
O argum ento fundam ental contra o naturalismo parece ser, e n tão, que som ente um espaço epistêmico irredutível é capaz de garantir o e x e r c í c i o da dúvida (além do e x e r c íc i o da c o m p r e e n s ã o , que são interd epend entes, co m o você mostra bem ).
Isso le m b ra um a rg u m e n to c o m u m e n t e a c e it o em é t ic a : se cad a um de nós n ã o é n ad a além de um sistem a físico regido por cau sas d e te rm in ista s, e n t ã o n ão há “e s p a ç o ” para a liberdade e a re s p o n s a bilid ad e por n ossos atos. A n a l o g a m e n t e , se não h á um g e n u ín o e s p aço de razões, a u tô n o m o c o m respeito ao esp a ço físico, o n d e vigora
Conhecimento, ciência e natureza: cartas sobre o naturalismo
a cau salid ad e, e n t ã o n ão podemos co m p ree n d e r e n ão podem os e x e rc e r a d ú v id a.
R e s ta saber se a te n ta tiv a de vincu lar uma teoria do c o n h e c i- m e n to a uma ou mais teorias científicas, co m o pretende o naturalista, elim ina a possibilidade da dúvida.14 Diz você, repetindo um trech o já cita d o acim a:
A redução do epistêmico ao que quer que seja atrela a dúvida a algo não-epistêmico. Assim, por exemplo, se “passível de crítica” é entendido como “evolucionariamente desvantajoso”, atrela-se qualquer juízo sobre o que é passível de crítica a um critério evolucionário. Note que mesmo que o que seja considerado evolucionário mude de acordo com as eta- pas e as modas da história da biologia teórica, haverá certas coisas que, de fato, não podem ser ditas passíveis de crítica por não serem (na me lhor biologia teórica possível) evolucionariamente desvantajosas (Bensusan, 2002, p. 6).
U m a rg u m e n to que se baseia na e q u iv a lê n cia e n tre os predicados “ser p a s s ív e l de c r í t i c a ” e “ser e v o l u c i o n a r i a m e n t e d e s v a n t a j o s o ” (au torizad a, su p o s ta m e n te , por uma ep istem olog ia e v o lu c io n is ta ) não m e p a r e c e p a r t i c u l a r m e n t e e l u c id a t iv o e c o n v i n c e n t e c o m o uma c r ít i c a a q u a lq u e r e sp éc ie de n a tu ra lism o . E pressup osto, aqui, um n a t u r a l is m o de tipo m e t a - e p i s t ê m ic o (na c l a s s i f i c a ç ã o q u e propõe G o ld m a n , 1 9 9 8 ) :
Por analogia com o naturalismo em ética, Goldman caracteriza algu mas espécies de naturalismo como posições meta-epistêmicas, a saber, a respeito do status ontológico das propriedades epistêmicas normativas (justificação, racionalidade, garantia [voarrant], etc.). Pode-se defender
14 D eixo de lado a possibilidade de com preensão e de interpretação de crenças, que rem ete às questões delicadas (num a perspectiva naturalista) do significado, da intencionalidade e da verdade. N ão pretendo, portanto, alinhavar aqui uma resposta ao “d escren te” (você pode defender que não o faço tam pouco com respeito ao cé tico !).
P a u lo A b r a n t e s e H ila n B e n s u s a n
q u e e s ta s p r o p rie d a d e s re d u z e m -s e a p ro p rie d a d e s f ís ic a s , o u a in d a q u e s u p e rv ê m a e s ta s , g e ra n d o d u as o r ie n t a ç õ e s d is tin ta s . U m a t e r c e ir a p o s i ç ã o , m a is r a d i c a l , s e r i a a d e q u e as p r o p r i e d a d e s e p i s t c m i c a s (n o rm a tiv a s ) d e v e m sim p le sm e n te ser e lim in a d a s, d e m o d o q u e s o m e n te p r o p r ie d a d e s fís ic a s o u b io ló g ic a s ( d e s c r itiv a s ) p o s s a m t e r lu g a r n u m a t e o r ia d o c o n h e c im e n t o q u e se p r e te n d a n a tu r a liz a d a ( A b r a n te s , 1 9 9 8 , p. 1 6 ).
Por um lado, além de existirem outras espécies de natu ralism o, um n a t u r a l is m o m e t a - e p i s t ê m i c o n ão te m de ser n e c e s s a r i a m e n t e re d u cio n ista ou elim in ativista, co m o sugerimos no tr e c h o a c i m a . 15
Por ou tro lado, é preciso enfatizar que há m uito se ab an d o n ou o infalibilism o em filosofia da ciên cia. O fato de v inc u lar uma teoria do c o n h e c i m e n t o a uma te o ria c ie n t ífic a n ã o im pede q u e e sta últim a seja c o lo c a d a em dúvida e su bstituída por uma outra teoria que seja con sid erad a m e lh o r (co m base em alguma n o rm a m e to d o ló g ica a c e i t á v e l) ,16 co m o v o cê admite na passagem citada a n te rio rm e n te (Bensusan,
op. c it.). A lgu m as espécies de natu ralism o podem, p ortan to, co n v iv er p e rfe ita m en te c o m o e x e r c íc io da dúvida e co m a no rm ativ id ad e . Um exe m p lo disso seria o n atu ralism o n orm ativ o de Laudan, que não a d m ite uma re d u ção do discurso m eto d oló gico (bem co m o do axiológico) ao discurso cie n tífico , mas os vê co m o interd e p en d e n tes.
O status do norm ativo é, c e rtam en te , uma das dificuldades que enfre n tam algumas posturas naturalistas mais radicais (com o a que Q u in e defendeu in icialm e n te ). Mas há espécies de naturalismo que não p re tendem eliminar ou reduzir o normativo.
15 Da mesma forma que um naturalista não tem de, necessariam ente, defender uma elim inação da psicologia de senso com um (folkpsychology), com o pretende E Churchland. Ver as minhas referências à tese da superveníência com o abrindo espaço, talvez, para uma posição ao mesmo tempo naturalista e não-reducionista.
16 Supõe-se que uma m etodologia aceitável rejeitaria meras m odificações ad hoc nas nossas teorias, com o a sua personagem do cético (H l: p. 3) acusa, com razão (op a!), os astrólogos com parando-os, sem razão, aos naturalistas.
Conhecimento, ciência e natureza: cartas sobre o naturalismo
Naturalismo e ceticismo
5. T e n t a r re sp o n d e r ao c é t i c o é um p ro b le m a q u e e n f r e n ta m todas as teorias do c o n h e c i m e n t o e n ão só as de c u n h o natu ralista. H á q u em defenda, inclusive, a tese h istó ric a de qu e a teoria do c o n h e c im e n t o to rn o u -se uma área c e n tra i da filosofia n a m o dernidade, e m f u n ç ã o do d esafio c é t i c o qu e, por e x e m p lo , D e s c a r t e s resolveu en fre n tar.
O que talvez distinga o naturalista de outros filósofos é que ele tende a não levar a sério o cético, não se esforçando em lhe dar uma resposta. O u então, o naturalista ten ta mostrar que os desafios céticos são formulados a partir do c o n h e c im e n to científico e, portanto, c o m e tem p e tiç ã o de princípio ao co lo c a re m este ú ltim o em q u estã o. U m exem plo típico dessa atitude é Q u i n e .17
Pode ter sido simplesmente um erro histórico da filosofia m oder na considerar que responder ao c é tico deva ser o p onto de partida, a m o tiv ação básica de qualquer teoria do co n h e c im e n to .
Naturalismo e fisicalismo
6. Talvez seja um equívoco considerar que o natu ralista co m p ro m ete-se necessariamente com uma ontologia particular, com o o fisicalismo, ou mesmo co m um fisicalismo redutivo. O fisicalista é aquele que r e je ita entidades além das postuladas pela física, c o lo ca n d o , por e x e m plo, sob suspeição o dualismo de substância (mente/corpo). Para o fisicalista só existe a substância física.
A s so c ia -se f re q ü e n te m e n te ao fisicalismo (e, c o n s e q ü e n te m e n t e , ao n a tu r a l is m o , para a q u e le s qu e v in c u la m am b as as d o u t r in a s ) a proposta de reduzir as c iê n c ia s de “nível a l t o ”, ou “esp ec iais” (co m o a psicologia, por exemplo) às ciências “fu ndam entais” (co m o a biologia ou a física).
17 U m a atitude sem elhante seria tam bém saudável com respeito à figura do d escrente.
P a u lo A b r a n t e s e H ila n B e n s u s a n
É preciso, co n tu d o, lembrar que n em todo fisicalismo te m de ser redu tivo. U m fisicalista pode, por ex em p lo, a c e ita r um dualism o de propriedades em que propriedades (como as m entais) são supervenientes às propriedades físicas.18 H á naturalistas, com o Kornblith (1 9 9 3 , 1 9 9 8 ) , por e x e m p lo , qu e defen d e m a e x is tê n c ia de esp écies natu rais genuí- nas, irredutíveis, nas ciên cias especiais.
H á ainda uma outra espécie de naturalismo, o m etodológico, que discuto em outro artigo:
H á quem d efen d a (...) que o n atu ralism o é o n to lo g ic am e n te n e u tro, co m p ro m eten do -se som en te com um a p articu lar m eto d o lo gia, a das ciên cias. O u seja, o naturalism o pressuporia, n essa leitura, um m onism o m eto d o ló gico e não um m onism o o n to ló g ico (com o o fisicalism o). O naturalismo defendido por Quine é de tipo m etodológico, na classificação que propõe G oldm an (1 998). M esm o aqui, as d iv er gên cias entre os n atu ralistas são, porém , com uns. E nquan to Q uine é um m onista m etodológico, Goldm an, apesar do seu professado n atu ra lismo, adm ite um dualism o [m etodológico] no qual a filosofia disporia de m étodos próprios e distintos dos métodos científicos. A epistem ologia con tin u aria com a tarefa de explicar [explicate] o sign ificado dos ter m os ep istêm ico s - o que rem ete ao m étodo de an álise co n ceitu ai a id en tificar a con du ta cognitiva ad eq u ad a, os valores e ob jetivo s da co g n ição , etc. Á ciên cia cab eria, en tão , verificar se os su jeito s epistêm icos possuem os m eios (capacidades) para atingir os objetivos da cognição, fixados previam ente; ou ainda, a ciência procuraria iden tificar os m étod os que m elhor prom ovem a co n d u ta cogn itiv a a d e q u ad a, conform e estipu lad a pela epistem ologia. G o ld m an opõe-se a Q uine por defender claram ente o status norm ativo da epistem ologia, o que im plicaria, no seu entender, que esta últim a dispõe de m é to
18 N ão éclaro, en treta n to , depois dos trabalhos de Kim , se essa posição é co n sisten te. A n te riorm ente, apontei a tese (não-redutiva) de que as propriedades epistêm icas supervêem às propriedades físicas.
Conhecimento, ciência e natureza: cartas sobre o naturalismo
dos próprios, não-científicos. Goldm an distingue, assim, diferentes graus de en volvim en to das ciên cias no projeto ep istem ológico n orm ativo, indo de naturalism os brandos até um “naturalism o ilim itado” , no qual as ciên cias seriam relevan tes m esm o para a id e n tifica çã o dos fins epistêm icos (Abrantes, 1998, p. 20-21).
7. D e m in h a parte, eu tendo a c o n c o r d a r c o m K o rn b lith e sus te n t a r q u e o n a tu r a lis t a te m co m p rom isso s o n to ló g ic o s , desde que sejam co m p atív eis co m as m elhores teorias cien tífica s c o n t e m p o r â n e as ou m esm o d eriv ad os.19 Eu considero, por ex em p lo, qu e é in e scap áv el, para um h o m e m c o n t e m p o r â n e o ( o c id e n ta l, e d u c a d o , e t c . ) ad m itir e l e m e n t o s de uma im a g e m de n a tu re z a a p o ia d a n o c o n h e c i m e n t o c i e n t íf i c o d isp o n ív e l.20 U m deles é que as m e n t e s su rgiram a partir de processos p u ram en te fís ic o s . C o lo c a n d o em o u tros term os, as m e ntes são, na h is tó ria do u niverso, coisas b a s t a n t e tardias (c o m o a vida, por s i n a l ) . 21
Portanto, se aceitam os uma tal tese ontológica, o “espaço de ra zões” deve ser posterior, cr o n o lo g ic a m e n te , ao “esp aço de c a u s a s ” e inserido neste último de forma, digamos, “orgânica”. Esse compromisso “fisicalista” m ínim o p a re ce -m e in co n to rn áv el.
H á, p o rta n to , uma história a ser c o n ta d a (algum dia) a respeito da origem, do surgim ento do espaço de razões (e ta m b é m do signifi cad o , da in t e n c io n a li d a d e , e t c .) e de sua a r t ic u l a ç ã o c o m o esp aço de leis/causas. Essa história, e v id e n te m e n te , n ão poderá pressupor a e x istê n c ia de um esp aço de razões antes que este te n h a surgido (e m bora q u alqu er h istória que c o n tem o s deverá ser r a c io n a lm e n te legiti m ada - afinal, as hipóteses e teorias cien tífica s são expressões de um c o n ju n t o de c r e n ç a s ju stific ad as e, esp eram os, v e r d a d e ira s).
19 N ão seria o m om ento, aqui, de defender, além do mais, a interdependência entre metodologia e ontologia, o que colocaria em dúvida a possibilidade de um naturalism o m etodológico neutro com respeito a compromissos ontológicos.
20 A dm ito, portanto, que o naturalism o seja, em alguma medida, cientificista. 21 Essa cren ça, por sua vez, pressupõe um robusto realismo.
P a u lo A b r a n t e s e H ila n B e n s u s a n
8. A dm itir uma precedência histórica da esfera de leis com res- peito à esfera racional, contudo, não implica admitir uma redução do m e ntal ao físico ou algo co m o uma teoria da identidade m e n te -co rp o . E u, p a r t i c u l a r m e n t e , sou s i m p á t i c o às t e n t a t i v a s de a r t i c u l a r um fisicalism o n ã o redutivo. M as não vejo co m o abrir mão de um fisicalismo “m ín im o ”. O externalism o, portanto, deve ter algo de correto, em bora talvez o in tern alista - e Pollock é co n v in c e n te nesse sentido - te n h a contribu ições a dar a uma teoria do c o n h e c im e n to que seja com patível co m o estado atual do c o n h e c im e n to científico.
V ocê parece tam bém re co n h e c e r que a questão de co m o o “espa- ço de razões” interage co m o resto do mundo não pode ser co lo cad a de lado ou ignorada, co m o defende M cD ow ell, a ce ita n d o-se “um dualismo co m uma cortina de ferro mais alta do que a que separa corpo e m e n t e ”
(Bensusan, 2 0 0 1 , p. 7).
9. U m a m o d alid ad e e s p e c ia lm e n te a m e n a de n a tu ra lis m o d e fende, sim p lesm ente, que o ep istem ólogo não pode ignorar os re su lta dos das ciên c ia s, c o lo c a n d o -s e nu m a pre p ote n te posição de isolam en to e de a u t o - s u f ic i ê n c ia . P o d e -se form ular essa m od alid ade de n a t u r a lismo de m odo positivo: a) as ciên c ia s podem fo rn ece r subsídios im p o rta n tes para o ep istem ólogo en fre n ta r e dar solu ções para os p r o b le m a s tr a d i c i o n a i s da e p is t e m o lo g ia (e, talv ez, para r e o r i e n t a r a e p is te m o lo g ia , c o l o c a n d o n o v o s p ro b le m a s ); b) q u a lq u e r te o ria do c o n h e c i m e n t o pressupõe, e x p lícita ou im p licita m e n te, teses em píricas (p o rtan to, co n tin g e n te s ) a respeito do m u ndo e de nós próprios e n q u a n to “e n g e n h o s e p is t ê m i c o s ” ( C h u r c h l a n d ) . E m o u tras palavras, as teses/teorias filosóficas não teriam um c a rá ter a p riori, c o m o ad m i te a e p istem o lo g ia n ã o -n a tu r a lis ta .
C om o afirmei em outro lugar,
a epistemologia perde, assim, o seu status privilegiado dc “filosofia pri meira”, de ponto fixo que permitiria alavancar uma crítica, digamos “ex terna”, às pretensões (epistêmicas) da ciência. A imagem do barco de
Conhecimento, ciência e natureza: cartas sobre o naturalismo
N e u r a t h é r e p e tid a m e n te in v o c a d a p e lo s n a tu ra lis ta s n e s s e c o n t e x t o (...) (A b r a n te s , 1 9 9 8 , p. 1 5 ) .22
10. Para finalizar a discussão das teses que v ocê atribui ao n a turalista, e que lhe p arecem aceitáveis, c o n c o r d o que as teses C iê n
c ia co g n itiv a e D e s c o b e r ta têm um ca rá ter n atu ralista. A tese C iê n c ia
c o g n it iv a , a m e u ver, i d e n t i f i c a - s e c o m o q u e K i t c h e r c h a m a de “p sico lo g ism o ”. A re je iç ã o do a priori e o psicologismo, segundo Kitcher, são os dois c o m p o n e n t e s c e n t r a i s de u m a p o stu ra n a t u r a l i s t a em ep istem olog ia. T ra te i rapidam ente, nos últimos parágrafos, do prim ei ro c o m p o n e n te .
Q u a n t o à tese P ragm atism o, suponho que v o cê e steja pensando na posição de B ran d o m . Em Bensu san ( 2 0 0 1 ) , B ra n d o n é apresentado c o m o um “d e s c r e n t e ”, um “in feren cialista” que faz abstração do c o n teúdo das cr e n ç a s: cre n ça s conduzem “apenas a outras cr e n ç a s e n u n c a t o c a m o m u n d o ” (id. ib id ., p. 5 ) . N ã o sei se alé m de d e s c r e n t e , a p osição de B r a n d o m tam b ém teria, segundo v o cê, “c o lo r a ç õ e s ” n a t u ralistas, ao propor uma redu ção das normas às práticas. Esse assunto seria, talvez, por demais específico para nos debru çarm os no m o m e n to sobre ele.
Missiva H 2
Paulo,Pode -se criticar um costume, uma instituição, uma crença, etc., porque tais coisas podem ser mudadas. Mas não faz sentido criticar fatos da natureza [...]. [Os naturalistas almejam tornar] os processos epistemológicos imunes à crítica.M a r c o s B a rb o s a d e O liv e ir a
” A m etáfora é que estam os num barco em alto mar e, eventualm ente, temos de repará-lo sem poderm os ancorá-lo num porto.
P a u lo A b r a n t e s e H ila n B e n s u s a n
1. C o n c e b o o naturalismo, co m o indiquei c o m outras palavras na primeira missiva, co m o a te ntativa de enten d er com o n atu rais os pro- cessos epistêmicos. A qu i, “n a tu ra l” d eno ta aquilo que p e rte n ce ao es paço lógico das leis da natureza. Nesse sentido, “n a tu ra l” se contrapõe ao espaço das razões. O naturalismo advoga que não há um espaço sui
gen eris das razões.23 C e rta m e n te , se “n a tu ra l” significa algo diferente, tam bém “n atu ralism o” haverá de significar algo diferente. Você diz em P l : 4 que o naturalism o não está necessariam ente com p rom etido co m a redução de estados e processos epistêmicos a processos em última ins tâ n c ia descritíveis por leis e nem co m a e lim in a çã o destes estados e processos. Em seguida v o cê insiste que tudo o que p re cisam o s para podermos vincular uma teoria do c o n h e c im e n to a uma teoria científica é de um falibilismo. O problema, contudo, é co m o pode o naturalism o en ten d er a substituição de uma teoria por ou tra.24
2. V ocê e n tã o aponta para o naturalismo norm ativo (e o modelo reticulado) de L au d an ( 1 9 8 4 , 1 9 8 7 , 1 9 9 0 ) . O natu ralism o norm ativo (1 9 8 7 , 1990) aponta para a ex istência de regularidades na história da c iê n c ia - estas regularidades teriam de ser n ô m ic as para satisfazer o anseio naturalista.25 N o modelo reticulado (1 9 8 4 ), a articulação de te o
2íN ote que a distinção en tre espaço das razões e espaço lógico das leis da natureza não se com prom ete com a validade do argum ento de Davidson, segundo o qual razões são causas. Podem ser causas, claro, mas isto não implica que, enquanto razões, elas possam ser expressas em term os de leis.
24 A substituição de teorias, é claro, só é um problem a para o naturalista se ela for entendida com o um exercício da razão, um processo epistêm ico. Se ela for explicável inteiram ente por m eio de regularidades nom ológicas (da sociologia ou da psicologia), não haverá problemas. 25 Naturalizar normas é uma empresa problemática em todo caso. A possibilidade de tal naturali
zação tem de enfrentar os argumentos de Wittgenstein, segundo os quais as normas são reguladas por práticas e há muitas regularidades que podem ser encontradas nas práticas. Um naturalismo norm ativo teria de justificar com o escolhe as regularidades (nômicas) que usa para descrever práticas que sustentam normas. Com o diz Brandom (1994, p. 28) "T here simply is n o such thing
as the p attem o r regularity exhibited. To say this is to say that som e regularities raust b e picked out as
ones that ought to be con fom ied to, som e pattem s as the ortes that ought to be continued". (Tradução minha: “Sim plesm ente não há o padrão de regularidade exibido. Dizer isto é o mesmo que dizer que certas regularidades devem ser tomadas com o aquelas às quais se deve conformar, regulari dades que devem contin uar"). Brandom apóia-se em Wittgenstein para concluir que não parece haver uma boa m aneira de justificar as regularidades escolhidas.
Conhecimento, ciência e natureza: cartas sobre o naturalismo
rias, m étodos e valores teriam de formar um m ecanism o (seguramente p sico-sociológico) descrito em termos de leis, mais uma vez se o anseio natu ralista tiver de ser satisfeito. N ão quero dizer que isso n ão possa ser feito - n ã o posso fazê-lo se ace ita r a p ro v o c a ç ã o da epígrafe de C hateau b riand ( H l ) . C ontudo, se isso for de fato feito, e a epistemologia assentar-se tranqüilam ente com o o departam ento de alguma disciplina científica ou muitas delas, o reticulado e as leis da história da ciência estarão eles mesmos sujeitos às leis da história da ciên cia e ao reticulado. As n o rm as que regem a su bstituição das teorias estariam justificadas apenas d e n tro do sistem a de leis que trataria da su bstitu ição de t e o rias. U m a c r ít ic a a tais normas poderia ser rebatida assim: não é de fato por m eio de críticas co m o esta que as teorias são substituídas. Se isto a c o n te c e s s e , teríam os um sistema fech ad o que n ã o pode ser c r iti cado sen ão in te r n a m e n te - pô-lo em c h e q u e seria re je itá-lo .
M as v o cê sugere que m étodos, valores e sua in te rd e p e n d ê n cia c o m as teorias n ã o precisam ser expressos em termos de leis ( P l : 4). V o cê ta m b é m sugere que o n atu ralism o possa c o n v iv e r c o m norm as que não se reduzam a leis (o naturalismo não precisa se com prom eter co m reduções ou elim inações). Imagino que você esteja sugerindo uma espécie de naturalism o emergentista, uma vez que você se com p rom ete co m o fisicalismo ( P l : 7) e com a não redução ( P l : 6). Isso implicaria dizer que haveria “uma história a ser contada (algum dia) a respeito da origem, do surgim ento, do espaço das razões (...) e de sua a rtic u la çã o c o m o esp aço das c au sas” ( P l : 7). A epígrafe de C h a te a u b ria n d im p e d e -m e de dizer que isso é impossível. Digo apenas o seguinte: essa história pode n ão ser suficiente para satisfazer o n atu ra lista (ou seja, a possibilidade de e n te n d e r o espaço ep istêm ico em term os de leis). O caso m ais in t e r e s s a n te de uma h istó ria (e sp e cu la tiv a ) do esp aço das razões é o M it o de Jones, de Sellars ( 1 9 6 3 a ) . Sellars pensa que a nossa visão c ie n t ífic a do m undo deve a co m o d a r todo o v ocabu lário c o n c e r n e n t e a pessoas (intencionalid ad e, ação, co n teú d o s, etc .) para q u e possa in t e r a g ir c o m o e s p a ç o e p i s t ê m i c o . 26 N o M it o de Jo n e s ,
P a u lo A b r a n t e s e H i l a n B e n s u s a n
en tre os nossos a n c e stra is in t e ir a m e n t e ryleanos, a p are ce u uma vez um g ênio (p ale o -)filo só fico ch am ad o Jones, que introduziu o v o cab u - Iário de “a p a rê n c ia s ” e de “p e nsam entos” para explicar c o m p o rta m e n tos de discordância. N o esboço de história de Sellars, o espaço epistêmico surge do d esenvolvim ento da nossa linguagem. É um esb oço ch e io de lacunas (que duram milênios), mas é uma história não -n atu ralista.
B em , n ã o -n a t u r a lis t a no sentido de que ela não perm ite que se e n te n d a o esp aço ep istêm ico em termos de leis. M as v ocê ap on ta ( P 1: 7) para uma modalidade de naturalismo que você ch a m a de “esp ecial m ente a m e n a ”. E claro que eu c o n c o r d o que o ep istem ólogo n ão pode se isolar e que n ão pode ignorar os resultados da c iê n c ia . E n tr e ta n t o , a pergunta sempre é assim: em que sentido esses resultados são r e l e vantes? D e todo modo, uma posição assim seria fraca demais para que eu a consid erasse n atu ralista; ela n ão se en c a m in h a ria em d ire ção ao que descrevi co m o um p rojeto n atu ralista b em -su ce d id o ( H l : 2 ) . Eu penso que o natu ralism o, tal co m o eu o c o n c e b o , é um po n to de par tida para explorarm o s as relações entre o esp aço das razões e as leis; de alguma forma, o espaço das razões está posicio nado e n tre ev e n to s e processos natu rais - nossos instintos cognitivos (cf. B en su san , 2 0 0 0 ) , nossas c a p a cid a d e s de p ro c essa m e n to , nossa p e rc e p ç ã o e nossa m e m ória, e t c . M as o n atu ra lism o , isto é, um p ro je to n a tu r a lis t a bem - su ced id o, é in c ap az de o fe re c e r respostas satisfató rias às nossas i n q u ie ta ç õ e s q u a n to a ju s t if ic a ç õ e s (e é por cau sa delas que o c é t i c o sempre ap arece, de uma forma ou de outra) e q u a n to à o bjetivid ad e do nosso c o n h e c i m e n to , isto é, a sua c o n e x ã o co m o m undo. O n a t u ralismo, c o m o diz M cD o w e ll, abando na (opts o u t) essa área da in v e s tigação. Ele diz que o n atu ralism o procura responder a perguntas s o bre te m a s c o m o a r e la ç ã o e n t r e a p e r c e p ç ã o e o m u n d o “in, so to
sp ea k , en g in eerin g term s, w ith a p ersp icu o u s d esc rip tio n o f the req u isite m a ter ia l con stitu tion , [ an d this is] plainly u n helpfu l; it [is] is like resp on d in g to Z eno by w alk in g a cross a r o o m ’21 ( 1 9 9 4 , p. x x i).
27Tradução m inha: “em, por assim dizer, termos de engenharia, com uma descrição dos requisi tos m ateriais, e isso é claram ente inútil: é com o responder a Zenão andando pela sala".