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MEU CORPO É UM PROCESSO INACABADO

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“MEU CORPO É UM PROCESSO INACABADO”

Melissa Bittencourt Jaeger1

Resumo: A fim de problematizar os movimentos de descontinuidade do sistema normativo sexo,

gênero, desejo e prática sexual, fiz uma análise de um trecho do audiovisual “Eu não quero me finalizar” de Mc Linn da Quebrada, acessado via YouTube. Partindo de uma perspectiva queer e pós-feminista, é possível observar que Mc Linn da Quebrada atua de modo a fazer estremecer os modos de vida enrijecidos e pautados em categorias fixas no que se refere a sexo, gênero e sexualidade. Ao propor uma estética “que não é estática”, “que se move, que é trânsito” e problematizar o corpo como “um processo inacabado”, Mc Linn da Quebrada afirma a possibilidade de modos de vida dinâmicos, complexos e em constante transição, desestabilizando os discursos normativos de categorias sedentárias e identidades fixas. Neste sentido, ao afirmar a existência de “tantos gêneros”, “tantos sexos” e “tantos corpos”, parece reconhecer a multiplicidade de modos de vida singulares e colocar essas categorias de gênero e sexo em espaço de transição. Portanto, para além das categorias binárias, considera a existência de gêneros, sexos e corpos impensados que escapam da matriz de inteligibilidade da ordem social. Ao investir na persistência de performatividades desviantes, o corpo aqui é pensado como um território de resistência, com potência criativa, inventiva e política: “Nem ator, nem atriz, atroz. Bailarinx, performer e terrorista de gênero”.

Palavras-chave: Artivismo. Gênero. Sexualidade. Pós-feminismo. Estudos queer.

Para problematizar a respeito do sistema cisheteronormativo que exige uma continuidade entre sexo, gênero, desejo e práticas sexuais (Butler, 2003/2015) há que se considerar a importância das instituições religiosas, judiciárias, pedagógicas, médicas, psis (psicologia, psiquiatria, psicanálise) e midiáticas nesse processo de regulação e classificação do sexo, do gênero e das práticas sexuais. Nesse sentido, por meio de práticas discursivas, essas instituições produzem verdades sobre os sexos, os gêneros e as sexualidades, classificando o certo e o errado, o normal e o patológico e o que está dentro e fora da norma (Foucault, 1996/2002).

Em História da Sexualidade I, Michel Foucault (1988) empenhou-se em traçar uma genealogia do modo pelo qual nos tornamos sujeitos de uma sexualidade. Segundo ele (1988), a partir do século XVII, as práticas sexuais passaram a fazer parte do discurso ocidental. Com o movimento de Contrarreforma da Igreja Católica, passou-se a policiar os discursos nos países católicos através da confissão. Deste modo, as práticas sexuais não deveriam mais ser mencionadas sem atenção, mas deveriam ser descritas nos seus mínimos detalhes, impondo, com efeito, regras minuciosas de exame de si. Assim, através da confissão, o cristianismo provocou mudanças no modo como o sujeito se relaciona com seu comportamento sexual, reforçando um modelo baseado

1 Mestranda na linha de Processos de Subjetivação, Gênero e Diversidades, Programa de Pós-Graduação em Psicologia, UFSC, Florianópolis, Brasil.

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na monogamia, na fidelidade entre pessoas casadas e na procriação (Foucault, 2012). Desde então, houve uma multiplicação dos discursos sobre as práticas sexuais, de modo que estas passaram a ser analisadas e reguladas (Foucault, 1988).

A partir do século XVIII, junto a emergência de uma sociedade burguesa e capitalista, a epistemologia sexual passou a ser entendida a partir de um sistema de oposições, e não mais de semelhanças e graus de desenvolvimento (Preciado, 2015/2008). Ou seja, passou-se a marcar as diferenças biológicas entre homem e mulher, produzindo-se dois sexos opostos, masculino e feminino. Inclusive, linguisticamente instituiu-se nomes diferentes para dois tipos distintos de órgãos: pênis e vagina. Criou-se uma estética da diferença sexual, em que o sexo feminino não era mais entendido como uma variação inferior e imperfeita do sexo masculino, mas como um sexo totalmente diferente, com formas e funções próprias (Laqueur, 2001).

Mais tardiamente, a partir do século XIX, se desenvolveu um conjunto de discursos científicos e institucionais para questionar a sexualidade e buscar conhecer uma “verdade” sobre o sexo, que Foucault chamou de “Ciência Sexual”. A partir desse novo campo do conhecimento, as práticas sexuais passaram a ser analisadas em termos médicos e as categorias modernas relacionadas a sexualidade foram criadas, produzindo-se sexualidades periféricas, patológicas e pervertidas (Foucault, 1988). Através desse novo saber, passou-se a regular as práticas sexuais e as formas segundo as quais os sujeitos devem se reconhecer como “sujeitos de uma sexualidade” (Foucault, 1984).

Neste sentido, aquilo que até então eram apenas práticas sexuais, se transformaram em categorias e em condições políticas que passaram a ser estudadas, perseguidas, castigas e curadas. Assim, os sujeitos passaram a ser marcados e identificados de acordo com uma classificação das sexualidades, e corrigidos por meio do que Preciado (2015/2008) chamou de “políticas ortopédicas”. Portanto, além da diferença sexual anatômica que surgiu no século XVIII, apareceram também diferenças entre homossexualidade e heterossexualidade, entre normalidade e perversão. Neste sentido, a invenção das categorias provocou uma mudança no modo como os sujeitos se relacionam com sua própria conduta sexual, e produziu a ideia de que haveria um modelo verdadeiro para exercício da sexualidade (Preciado, 2015/2008).

Segundo Judith Butler (2003/2015), essa noção de que poderia existir uma “verdadeira sexualidade” é estabelecida através de uma matriz cisheteronormativa que regula a continuidade entre sexo, gênero, desejo e prática sexual. Ou seja, são estabelecidas linhas causais entre o sexo biológico, o gênero culturalmente constituído e a expressão de ambos por meio do desejo e da

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prática sexual. Assim, para que os sujeitos sejam inteligíveis, eles devem manter uma coerência e uma continuidade cisheterossexual entre sexo, gênero, desejo e prática sexual ao longo da vida. Por outro lado, aqueles que não atendem a essas normas de inteligibilidade são considerados como falhas do desenvolvimento ou como impossibilidade lógica. É deste modo que as homossexualidades, as bissexualidades, as transexualidades, as transgeneridades e outras expressões sexuais e de gênero dissidentes às normas da cisheterosexualidade vêm sendo estigmatizadas, discriminadas, violentadas, excluídas, mas também diagnosticadas, tratadas e em alguns casos, até mesmo assassinadas (Peres, 2011).

Neste sentido, as perspectivas queer e pós-feministas tem contribuído ao problematizar a imposição binária, fixa e contínua dos conceitos de sexo, gênero e prática sexual para dar legitimidade ao sujeito. No que se refere a noção de “gênero”, vale retomar que antes de se tornar uma ferramenta teórica do feminismo norte-americano, foi utilizada pelo médico John Money na tentativa de “normalizar” a morfologia sexual de crianças intersex e pessoas transexuais. Assim, as modificações cirúrgicas e hormonais precoces em crianças começaram a ser feitas para que o sexo biológico estivesse de acordo com a expressão de gênero. Foi posteriormente, nos anos 80, a partir da chamada “segunda onda” do feminismo, que a noção de “gênero” passou a ser um instrumento teórico feminista para conceituar a construção social, histórica e cultural da diferença sexual (Preciado, 2011). No entanto, partindo do entendimento de que o gênero seria socialmente construído e o sexo biologicamente dado, reproduziu-se o binário natureza-cultura e essencializou-se o gênero feminino e o gênero masculino (Toneli, 2012).

Para problematizar esta questão, Judith Butler (2003/2015, p.27) sugere que “o gênero não está para cultura como o sexo para a natureza”. Nessa perspectiva o caráter imutável do sexo é contestado, já que a própria categoria “sexo” é produzida discursivamente. Assim, o próprio termo “sexo“ pode ser considerado tão culturalmente produzido quanto “gênero”. Portanto, o gênero não deve ser entendido como uma interpretação cultural de um sexo previamente e verdadeiramente dado, mas sim como uma ação performativa, complexa, múltipla, errante. Nesse sentido, apesar de o gênero ser considerado performativamente produzido e imposto por práticas reguladoras que demandam uma coerência de acordo com interseções como raça, classe, etnia, sexualidade, ele não é pensado como uma categoria fechada, fixa e homogênea.

A partir de uma perspectiva semelhante, Rosi Braidotti (2002) aponta que a própria subjetividade não dever ser compreendida como uma essência metafísica, como algo biológica, psíquica ou historicamente determinado, mas como um processo em construção incessante. Partindo

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deste entendimento, ela propõe a noção de “sujeito nômade” como uma ficção política que permite pensar a subjetividade como um processo dinâmico e em constante transformação. A noção de nomadismo, já proposta por Gilles Deleuze e Félix Guattari (1997) no “Tratado de nomadologia”, é retomada por Rosi Braidotti a fim de problematizar as identidades fixas, as categorias sedentárias, os modelos com pretensões universais e as noções clássicas de sujeitos. Assim, ao afirmar a complexidade do processo de subjetivação, a autora enfatiza a necessidade de considerar a intersecção de vários eixos de diferenciação como classe, raça, etnia, gênero, sexualidade, idade, cultura, entre outros, na constituição das subjetividades.

Como diz Paul Beatriz Preciado (2011), existe uma “multidão queer”, uma multiplicidade

de corpos2 que desterritorializa constantemente o sistema cis-heteronormativo e que rompe com a

linearidade entre sexo, gênero, desejo e prática sexual. Nesse sentido, assim como na perspectiva

queer, alguns movimentos utilizam de identidades desviantes como recurso político, como por

exemplo, no Brasil, as identificações “sapatão”, “bicha”, “preta”, “travesti” e “vadia” são frequentemente ressignificadas. São corpos que investem na posição de sujeitos abjetos, em performatividades desviantes, na ideia de “maus sujeitos” e fazem dessas posições territórios de resistência a norma. Nesse sentido, a persistência e a proliferação de “falhas” do sujeito, é pensada como um recurso político de expor os limites da matriz de inteligibilidade, produzindo matrizes subversivas a norma (Preciado, 2011).

Deste modo, o corpo não é pensado apenas como um território passivo por onde opera o biopoder, mas é também um espaço de resistência, com potência criativa e inventiva. Nesse sentido, os corpos não são exclusivamente dóceis e o gênero não é o efeito direto de um sistema de poder fechado. Assim, para além dos modelos identitários e binários, existem corpos impensados, corpos inclassificados, corpos abjetos que não são considerados como vidas e que escapam da matriz de inteligibilidade da ordem social. São corpos que desviam as tecnologias que produzem sexualidades e gêneros “normais” e “anormais”, e possibilitam uma desestabilização das categorias habituais (Butler, 2003; Foucault, 2002; Prins & Meijer, 2002).

Neste sentido, a fim de problematizar esses movimentos de descontinuidade entre sexo, gênero, desejo e prática sexual do sistema cisheteronormativo, faço uma análise de um trecho

transcrito do audiovisual “Eu não quero me finalizar”, acessado via YouTube3, de Mc Linn da

Quebrada para compor com a discussão.

2 O corpo aqui não é entendido como uma categoria biológica, nem sociológica, mas como um espaço de entrecruzamento entre o físico, o subjetivo e o sócio-histórico (Peres, 2012).

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“Eu não quero me finalizar”

Minha aproximação com Mc Linn da Quebrada se deu ano passado, em 2016, quando

escutei pela primeira vez o áudio “Eu não quero me finalizar” no programa Políticas Radiofônicas4

da estação de rádio online Dinamico FM de Porto Alegre. Desde ano passado, venho elaborando, em minha pesquisa de mestrado, a noção de “desejo nômade” a fim de dar passagem para a multiplicidade de movimentos que desestabilizam as categorias supostamente fixas de sexo, gênero e sexualidade. Assim, ao escutar “Eu não quero me finalizar”, me senti interpelada a fazer minhas produções acadêmicas dialogarem com as produções artísticas de Mc Linn da Quebrada. Para tanto, busquei o audiovisual no YouTube afim de transcrever alguns trechos e propor uma análise crítica do material a partir dos aportes teóricos das perspectivas queer e da filosofia da diferença. Neste sentido, ao considerar a arte como um potente material para analisar contextos históricos-políticos, trago os trechos de Mc Linn da Quebrada para o debate:

“É uma estética que não é estática É uma estética que se move, que é trânsito, que é trans [...] Eu sinto que o meu corpo Ele é um processo inacabado Eu não quero me finalizar Ou finalizar uma obra E é justamente por isso que eu venho experimentando meu corpo em diversas instâncias, espaços e territórios. Teatro, dança, performance, rua, casa, palco, música, silêncio Acho que existem tantos gêneros e tantos sexos, quanto os corpos existem Só que a gente tá habituada a reproduzir apenas dois [...] A sociedade e as pessoas nos oprimem, porque elas só sabem tratar dois tipos de pessoas: homens e mulheres [...] Pra mim terrorismo de gênero tem a ver com isso

Tem a ver como uma estética onde a gente se posiciona de forma violenta a esse CIStema5

que nos obriga a agirmos e sermos de uma forma somente [...] E a gente vai tá em todo lugar, a gente vai tá onde você menos esperar Você vai poder sentir a nossa respiração bem próxima de você Você já tá ouvindo os nossos passos A gente já tá mais próxima do que você imagina” Linn da Quebrada

4 Para escutar a gravação do programa do dia 14 de outubro de 2016, ao qual me refiro, basta acessar o link: http://dinamicofm.com.br/politicas-radiofonicas-10-sex14out/

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Desestabilizando a cis-heteronormatividade

Como dito anteriormente, a performatividade de corpos desviantes pode ser pensada como um movimento de resistência a cisheteronoma, podendo esses corpos se expressarem de maneira criativa e inventiva. Neste sentido, podemos considerar esse trecho de Linn da Quebrada como uma produção artística potente para problematizar os discursos normativos e as categorias sedentárias no que se refere a sexo, gênero e sexualidade. Sendo a arte uma atividade ligada a manifestações de ordem estética, feita por sujeitos artistas a partir de percepções, emoções e ideias, ela pode causar estranhamento a outras pessoas e produzir um deslocamento das zonas de conforto em direção ao desconhecido (Alves, Souza & Moreira, 2017). É nesse sentido que a arte pode operar por meio de linhas de fuga, possibilitando a invenção de posições dissidentes, sendo assim as poéticas artísticas também podem ser entendidas como um modo de ativismo (Sant’ana, 2017). Neste sentido, é possível observar nos trechos transcritos que Mc Linn da Quebrada, ao produzir sua arte, se posiciona de maneira dissidente e atua de modo a fazer estremecer os modos de vida enrijecidos e pautados em categorias fixas no que se refere a sexo, gênero e sexualidade. Neste caso, sua arte parece agir no terreno da micropolítica ao se efetivar por meio de linhas de fuga às categorias rígidas e dar espaço para novos modos de vida (Guattari & Rolnik, 1993).

“É uma estética que não é estática É uma estética que se move, que é trânsito, que é trans” [...] “Eu sinto que o meu corpo Ele é um processo inacabado Eu não quero me finalizar Ou finalizar uma obra E é justamente por isso que eu venho experimentando meu corpo em diversas instâncias, espaços e territórios. Teatro, dança, performance, rua, casa, palco, música, silêncio” Neste trecho é possível observar os movimentos nômades que se dão no próprio processo de subjetivação, deslocando os lugares fixos e subvertendo as categorias normativas e imutáveis. Ao problematizar essa estética “que não é estática”, “que se move, que é trânsito, que é trans” e discutir o corpo como “um processo inacabado”, Mc Linn da Quebrada afirma a possibilidade de modos de vida dinâmicos, complexos, em constante transição, sem destino pré-determinado e sem terra natal, desestabilizando a concepção tradicional de identidade fixa, original, homogênea e verdadeira. Deste modo, é possível problematizar a existência de estéticas e corpos que resistem a se ajustar às categorias e comportamentos codificados (Deleuze & Guattari, 1997; Braidotti, 2002).

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Só que a gente tá habituada a reproduzir apenas dois” [...] “A sociedade e as pessoas nos oprimem, porque elas só sabem tratar dois tipos de pessoas: homens e mulheres” Ao afirmar a existência de “tantos gêneros”, “tantos sexos” e “tantos corpos”, Mc Linn da Quebrada reconhece a multiplicidade de modos de vida e coloca essas categorias de gênero e sexo em espaço de transição. Ou seja, para além das categorias binárias constantemente reproduzidas e desses “dois tipos de pessoas: homens e mulheres”, Mc Linn da Quebrada considera a existência de infinitos gêneros, sexos e corpos. Neste sentido, se aproxima da proposta de Deleuze e Guattari (2010) que propõem subverter a ordem dos sexos e considerar a existência de n sexos.

Assim, apesar da ordem social sempre buscar codificar, classificar e categorizar, existem modos de vida que dão passagem para a inventividade do desejo, desorganizando e desestabilizando

binários como pênis/vagina, homem/mulher, feminino/masculino,

heterossexualidade/homossexualidade. Deste modo, esses outros modos de existência parecem ser capazes de produzir falhas, trepidações, quebraduras nesses binários e nas pretensões de categorias universais, originais e verdadeiras (Deleuze & Guattari, 2010). Neste sentido, podemos pensar que, assim como a subjetividade, o sexo, o gênero e a sexualidade também implicam uma dimensão dinâmica, mutante e rizomática: são como mapas abertos com infinitas entradas e saídas (Deleuze & Guattari, 1995).

“Pra mim terrorismo de gênero tem a ver com isso Tem a ver como uma estética onde a gente se posiciona de forma violenta a esse CIStema

que nos obriga a agirmos e sermos de uma forma somente” [...] “E a gente vai tá em todo lugar, a gente vai tá onde você menos esperar Você vai poder sentir a nossa respiração bem próxima de você Você já tá ouvindo os nossos passos A gente já tá mais próxima do que você imagina” Neste trecho é possível observar uma interseção das poéticas artísticas de Mc Linn da Quebrada com o ativismo queer. Ao propor um “terrorismo de gênero” como uma estética de resistência e de enfrentamento “a esse CIStema que nos obriga a agirmos e sermos de uma forma somente”, considera que, apesar das normas sociais, o gênero não é apenas um território de reprodução, mas também de reinvenção. Assim como os ativismos queer, Linn da Quebrada parece investir na persistência e na proliferação de performatividades desviantes como recurso político, a

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fim de produzir territórios subversivos a norma: “a gente vai tá em todo lugar, a gente vai tá onde você menos esperar” (Preciado, 2011).

Além dos trechos problematizados, é relevante considerar que Mc Linn da Quebrada se autodenomina:

“Bicha, trans, preta e periférica. Nem ator, nem atriz, atroz. Bailarinx, performer e terrorista de gênero” Neste sentido, é necessário problematizar e localizar as questões de raça e classe que atravessam a experiência de Mc Linn da Quebrada, apesar de essas não aparecerem diretamente nos trechos analisados anteriormente. Segundo Bell Hooks (2015), o discurso feminista por muito tempo não questionou se suas perspectivas contemplavam as experiências de pessoas não-brancas e assim não problematizou os preconceitos relacionados a raça e classe. Embora o debate sobre esses preconceitos tenha tido maior visibilidade nos últimos anos, o racismo ainda é bastante presente nos textos de feministas brancas. Isso reforça a supremacia branca e nega a possibilidade de que sejam feitas conexões políticas que cruzem as fronteiras étnicas e raciais. Nesse sentido, na tentativa de romper com essa tendência, considero indispensável, apesar de desafiador, levar em conta a intersecção de raça e classe neste trabalho, já que Mc Linn da Quebrada se autodenomina “preta e periférica”.

Segundo Sueli Carneiro (2003), os eixos de raça e classe produzem gêneros subalternizados e diferenças significativas na qualidade de vida e na posição social dos sujeitos. Há que se considerar que as desigualdades raciais no Brasil estão presentes em diversas áreas, como no mercado de trabalho, na saúde, na educação e nos meios de comunicação. Nesse sentido, os gêneros hegemônicos são marcadamente corpos brancos, sendo que a mídia brasileira reforça um padrão branco de beleza, ao, por exemplo, frequentemente exibir mulheres loiras na televisão. Além disso, uma minoria de mulheres negras aparece nas mídias, sendo sua presença condicionada a categorias específicas, como a escrava e a empregada doméstica, por exemplo.

Considerando essas intersecções de raça, classe e gênero que atravessam seu corpo – de modo semelhante a proposta de Adrienne Rich (1984), em “Notas para uma política da Localização” –, Mc Linn da Quebrada localiza sua arte politicamente. Nesse sentido, além da intenção de que essas autodenominações “Bicha, trans, preta e periférica” localizem sua experiência, Mc Linn da Quebrada parece reapropriar-ser desses termos, já usados como discurso de ódio, e dar um novo significado político a eles. Ou seja, assim como nos ativismos queer, utiliza

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de identificações desviantes como recurso político. Tal prática pode ser pensada também como uma estratégia de pirataria, em que a estética artística – “que historicamente foi associada aos grupos de elite e que agora começa a ser reconhecida nas periferias” – é tomada como uma estratégia de reinvenção política (Preciado, 2011, Sant’ana, 2017). O corpo aqui é pensado como um território de resistência, com potência criativa, inventiva e política: “Nem ator, nem atriz, atroz. Bailarinx, performer e terrorista de gênero”.

Considerações Finais

Neste trabalho foi possível observar a criação artística como um ativismo político de dissidência sexual e de gênero, sendo possível observar, nos trechos de Mc Linn da Quebrada, estratégias de desconstrução das normas essencialistas de sexo, gênero e sexualidade. É possível observar uma rejeição aos binarismos de sexo e gênero, e aos discursos normativos e sedentários sobre as subjetividades. As dissidências de gênero parecem ser tomadas aqui como uma arma contra as formas de docilização dos corpos, lembrando que MC Linn da Quebrada se autodenomina “Terrorista de gênero”.

Os trechos analisados colaboram muito a problematizar o sistema cis-heteronormativo, que exige uma continuidade e coerência entre sexo, gênero, e sexualidade e a desestabilizar os contornos habituais dessas categorias. Assim como a subjetividade pode ser pensada como um processo inacabado, o sexo, o gênero e a sexualidade também implicam uma dimensão dinâmica, mutante, rizomática e nômade. Neste sentido, Mc Linn da Quebrada parece não se limitar a uma verdade identitária absoluta, nem a categorias fixas, mas sim a dar passagem para potencias criadoras de novos campos possíveis. Ao enfatizar a multiplicidade e as singularidades, afirma o direito de ser diferente e considera a possibilidade de infinitos sexos, gêneros e sexualidades (Braidotti, 2002; Deleuze & Guattari,1995).

Considerando o potente ativismo artístico de Mc Linn da Quebrada e o importante lugar que as produções de artistas dissidentes a cis-heteronorma tem ocupado recente nos espaços públicos e midiáticos no Brasil, finalizo, enfatizando a necessidade de apostarmos cada vez mais em modos outros de produção de conhecimento e de ativismo, a fim de dar passagem para novas estéticas e poéticas artísticas.

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Referências

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"MY BODY IS AN UNFINISHED PROCESS"

Astract: In order to problematize the discontinuous movements of the normative system sex,

gender, desire and sexual practice, I did an analysis of an excerpt from the audiovisual "I don’t want to finalize myself" by Mc Linn da Quebrada, accessed via YouTube. From a queer and postfeminist perspective, it is possible to observe that Mc Linn da Quebrada acts in such a way as to shake the rigid modes of life and based on fixed categories as regards sex, gender and sexuality. By proposing an aesthetic “that is not static", "that moves, that is transit” and problematizing the body as "an unfinished process", Mc Linn da Quebrada affirms the possibility of modes of life dynamics, complexes and in constant transition, destabilizing normative discourses of sedentary categories and fixed identities. In this sense, by affirming the existence of "so many genders", "so many sexes" and "so many bodies", Mc Linn da Quebrada seems to recognize the multiplicity of singulars modes of life and to put the categories of gender and sex into a transitional space. Therefore, beyond the binary categories, Mc Linn da Quebrada considers the existence of unthought genders, sexes and bodies that escape the matrix of intelligibility of the social order. By investing in the persistence of deviant performativity, the body here is thought as a territory of resistance, with creative, inventive and political power: "Neither actor nor actress, atrocious. Dancer, performer and terrorist of gender".

Referências

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