Capítulo 2: O Conhecimento [Sankhya]
O principal assunto desse capítulo é o Conhecimento da natureza essencial do sujeito. A BHAGAVADGITA
poderia terminar nesse capítulo, pois tudo o que precisa ser dito sobre o Conhecimento está nele. Porém,
considerando que todos nós estamos mergulhados na ignorância, assim como Arjuna, que não entende o
Conhecimento expressando sua dúvida, toda a BHAGAVADGITA torna-se necessária.
Verso 1: O Relator disse: Então Krishna pronunciou essas palavras para Arjuna que estava triste, tomado de compaixão e cujos olhos estavam cheios de lágrimas.
Comentário: O relato é feito ao rei “inimigo”, registrando que o estado mental de Arjuna é de ilusão, e que Krishna a ele se dirige, depois de escutá-lo.
Arjuna está confuso e abatido, não consegue guerrear e tampouco abandonar a guerra. E o exército que defende
o adharma toma ciência da indecisão e torpor de Arjuna. No entanto, Krishna o provoca com palavras fortes e
duras, pois deseja que Arjuna reflita sobre seu estado mental e sobre o objetivo de suas ações.
Versos 2/3: Krishna disse: Nesse lugar inadequado, como recaiu sobre você, ó Arjuna, essa fraqueza que não conduz ao céu, [que] causa má fama [e] não é própria de uma pessoa respeitável? Ó Arjuna, que não caia [sobre você] a efeminação; isto não condiz com você. Abandonando a fraqueza negativa do coração, levante-se ó Arjuna.
Comentário: Krishna sacode Arjuna com palavras.
As palavras de Krishna surtem efeito, e Arjuna, tentando explicar o que pensa e sente, descobre que o que
deseja é o Conhecimento do Absoluto, o que é livre de limitação. Descobre que não será por meio de riqueza,
fama e poder, nem tampouco da fuga de sua missão dhármica que ele poderá resolver o problema fundamental
da vida humana, que é o sentimento de carência constante apesar de tantas conquistas. Percebe que deseja uma
vida de total dedicação à aquisição do bem maior, que é a satisfação completa que independe da presença ou
ausência de objetos. Para obter a liberdade em vida, reconhece que deve adquirir Conhecimento, cumprindo o
dharma e, assim, entregar-se a Krishna como seu discípulo.
Versos 4-8: Arjuna disse: Ó Krishna, como posso lutar, no campo de batalha, com flechas contra meus parentes, que merecem respeito, ó Krishna. Realmente é melhor não matar os veneráveis mestres e viver uma vida de mendicância aqui neste mundo. Pois, matando esses mestres que desejam o bem, eu usufruirei, aqui neste mundo, de prazeres manchados de sangue! E não sabemos qual dos dois é melhor para nós: se é a nossa conquista ou a deles. Não desejamos viver tendo matado os filhos desses veneráveis reunidos à nossa frente. Eu,
dominado por covardia, com a mente incapacitada para decidir o que é certo ou errado, peço-lhe: definitivamente ensine-me, [pois] estou entregue a você, ó Krishna. Eu não vejo o que eliminará a tristeza que seca os meus sentidos, mesmo se eu obtivesse um reinado próspero e sem rivais na terra ou o domínio sobre as criaturas celestiais.
Comentário: Arjuna analisa seu sofrimento e descobre o problema fundamental; pede que Krishna seja seu mestre e o abençoe com o ensinamento necessário.
Krishna aceita Arjuna como discípulo, ensinando-lhe a identificar a solução atemporal, que é no fundo o desejo
maior de todo ser humano, cuja problemática vai além dos problemas relativos pertinente à vida existencial. No
caso de Arjuna, o problema existencial é guerrear ou não, mas que, por meio dele, identificou seu desejo de ser
livre em vida.
Versos 9/10: O Relator disse: Tendo falado a Krishna desta maneira, Arjuna lhe disse: Não lutarei [e] tornou-se silencioso. Ó rei e mestre do exército ‘inimigo’, no meio dos dois exércitos, Krishna, como se estivesse sorrindo, disse estas palavras a Arjuna, que estava pesaroso.
O ensinamento começa no verso 11 desse capítulo 2 com uma palavra na negação, asocyan, que significa
aqueles cujo sofrimento é ilegítimo. Krishna quer dizer que o meio para a liberdade em vida é a negação da
limitação e do conseqüente sofrimento que tem como causa a ignorância. Apesar do sofrimento de Arjuna e de
qualquer ser humano ser verdadeiro, a razão do sofrimento é ilegítimo. E, para tal problema, a solução só pode
ser Conhecimento: o reconhecimento pelo ser humano de sua natureza livre de limitação.
O ser humano sente-se limitado pelo sofrimento, pelo espaço-tempo e por conhecimento. Ou seja,
constantemente sente-se carente, sempre com a sensação de que está faltando alguma coisa. Verdadeiramente,
são muitos os objetos e as condições que não possui. Além disso, sabe que um dia deixará de existir na forma de
corpomente e não tolera a idéia de sua morte, a idéia do universo continuar existindo sem sua presença. Apesar
de tantos objetos e condições de desejos possuídos e de tantos conhecimentos adquiridos, sua ignorância é muito
evidente. Sofre ao se apegar ou desgostar dos objetos e condições, tentando em vão preencher esses vazios.
Advém daí, dessa luta inglória, a idéia de vazio existencial.
Problemas legítimos podem ser resolvidos com diferentes graus de esforço. Um problema ilegítimo tem que ser
reconhecido como tal para ser dissipado. Krishna explica para Arjuna que qualquer experiência envolve um
sujeito que vivencia e os objetos e condições experimentadas. Enquanto ambos mudam constantemente pela
força da impermanência, o sujeito é sempre o mesmo. E isso é verdade, mesmo que o corpomente do sujeito
também mude, isto é, igualmente esteja subordinado a um fim. É verdade, claro, no contexto da afirmação você
é igual à Iswara.
A Verdade do Eu é Aquela que está sempre presente, Aquilo que não pode ser negado, que permanece antes,
durante e depois das experiências e das vivências. O corpo, os sentidos, a mente, o intelecto, conhecimentos e
ignorância são objetos de percepção, apesar de algumas vezes serem identificados como o sujeito, como nas
frases: “eu sou gordo”; “eu sou agitado”; “eu sou pobre”; “eu sou feio”; “eu sou poderoso”. Existe um Eu que
está sempre presente, que é sempre inefável, cuja natureza é Consciência, ou seja, que não depende de nada para
existir.
O Conhecimento ensinado na BHAGAVADGITA é sobre o Eu que é sempre o mesmo, a base constante de
qualquer conhecimento e experiência. Esse Eu é livre de limitação de qualquer gênero e espécie. Esse
Conhecimento, uma vez estabelecido de forma clara e isento de dúvidas, livra e liberta a pessoa de seu
sentimento de carência, que existirá enquanto sua identificação for exclusivamente com o corpomente, que é
limitado por natureza, assim como o são todos os objetos e condições. Por isso, o sofrimento é ilegítimo e
precisa ser reconhecido como tal, para ser dissipado.
Neste capítulo, Krishna também apresenta a Arjuna as qualificações necessárias da mente para a aquisição do
autoconhecimento. Para adquirir Conhecimento, faz-se necessário um estudo sobre o Eu em um processo que
consiste em escutar os ensinamentos, refletir sobre tais ensinamentos e contemplar as palavras e significados
contidos nos Vedas, sob a orientação de um mestre, que expõe os ensinamentos com lógica e ilustrações
relevantes, para, ao fim e ao cabo, oportunizar o autoconhecimento ao discípulo, que passará a ser um liberto em
vida, isto é, um sábio como seu mestre. Para que este estudo e aprendizado sejam bem sucedidos, a mente deve
estar preparada com a capacidade de focar e de não reagir às situações e experiências que emergem em
manifestações impermanentes, quer sejam elas agradáveis ou desagradáveis.
Estas duas capacidades da mente, de focar e de não reagir, são necessárias porque é na mente que estão nossas
conclusões sobre nós mesmos. Tais conclusões decorrem de nossos gostos e aversões, também armazenados na
mente, frutos das situações e experiências passadas. A conseqüência desse processo de apego aos objetos de
desejos concernentes aos gostos e aversões é que passamos a correr atrás de alguns e fugindo de outros, como
fonte de felicidade.
Sobre esse processo, vejamos o que Krishna diz a Arjuna, por meio dos versos 11 ao 38, do Capítulo 2, da
BHAGAVADGITA:
Versos 11-38: Krishna disse: Você está triste por aqueles que não merecem tristeza e, ao mesmo tempo, fala palavras sábias. Mas os sábios não se entristecem por aqueles cuja respiração já se foi [os mortos], tampouco por aqueles cuja respiração ainda não se foi [os vivos]. Nunca [no passado] eu não existi tampouco você ou esses reis. E nós todos não deixaremos de existir no futuro. Assim como para um indivíduo há, neste corpo, a infância, a juventude e a velhice, da mesma maneira [se dá] a aquisição de outro corpo. Com relação a isso, o sábio não se ilude. Os contatos dos sentidos com os objetos de desejos trazem alegria e tristeza, prazer e dor, são de curta duração e impermanentes, ó Arjuna. Ó Arjuna, tenha tolerância com eles. Esses não afligem essa pessoa que tem discriminação, que se mantém a mesma frente aos pares de opostos, ó Arjuna. Essa pessoa está qualificada para a liberação. Para o inexistente, não há existência; para o existente, não há inexistência. Mas a verdade de ambas é conhecida totalmente pelos conhecedores da verdade. Conheça Aquilo que é
indestrutível, pelo qual tudo é permeado. Ninguém é capaz de causar a destruição daquilo que é imutável. Os corpos daquele que habita o corpo, que é eterno, não sujeito à destruição e que não é objeto de conhecimento, são declarados como sujeito ao desaparecimento. Portanto, lute, ó Arjuna. Aquele que considera este Eu como o matador e aquele que o considera como o matado, ambos não conhecem. Este não mata, nem é morto. Este Eu não nasce, nem jamais morre; existindo, nunca voltará a não existir novamente. Este Eu é eterno, imutável, sempre o mesmo. Quando o corpo é destruído, ele não é destruído. Ó Arjuna, como e quem é a pessoa que conhece este EU como indestrutível, eterno, não-nascido, imutável pode matar ou instigar a matar? Assim como uma pessoa abandona roupas velhas [e] põe outras novas, da mesma maneira aquele que habita o corpo, abandonando corpos usados vai para outros corpos. Armas não o cortam, tampouco o fogo o queima. A água não o molha, nem o vento o seca. Ele [o Eu] não pode ser cortado, queimado, molhado nem seco. Ele é eterno, em tudo penetrante, firme, imóvel, antigo, mas sempre o mesmo. Ele [o Eu] é não-manifesto, não é objeto de pensamento nem está sujeito à transformação. Portanto, conhecendo-o desta maneira, você não deve ficar triste. Ademais, se você o considera como continuamente nascendo e morrendo, mesmo assim você não deve ficar triste dessa maneira, ó Arjuna. Pois para aquele que nasce, a morte é certa, e, para o morto, o nascimento é certo. Portanto, você não deve ficar triste por um fato
inevitável. No início, os seres são não-manifestos, no meio, manifestos, e [de novo] não manifestos no final. Por que a tristeza por este fato, ó Arjuna? Alguns vêem este [Eu] como incrível, outros falam dele como incrível; ainda outros escutam sobre Ele como uma maravilha, e outros, mesmo escutando, não o conhecem. Este [Eu], o habitante do corpo no corpo de todos [os seres], é sempre indestrutível, ó Arjuna. Por conseguinte, você não deve ficar triste por nenhuma criatura. E também, levando em consideração o seu próprio dharma [o seu dever], você não deve vacilar. Pois, para um guerreiro, não há nada melhor do que uma guerra justa. Ó Arjuna, felizes os guerreiros que têm uma batalha como essa, que foi alcançada sem esforço e que é uma porta aberta para o céu. Agora suponhamos que você não realize essa batalha adequada; então, abandonando seu próprio dharma [seu dever] e sua reputação, você adquirirá papa [demérito]. Também pessoas falarão de sua infindável má reputação, e, para as pessoas honradas, má reputação é pior do que a morte. Os grandes guerreiros pensarão que você, por medo, retirou-se da batalha. E você, que [até agora] tem sido muito honrado por eles, será alvo de zombarias. E seus inimigos, menosprezando sua capacidade, dirão muitas palavras [sobre você] que nem mesmo posso proferir. Que tristeza maior do que essa poderá existir?
Vencendo, você usufruirá a terra ou, morrendo, alcançará o céu. Portanto, levante-se decidido a lutar, ó Arjuna. Considerando igualmente o ganho e a perda, o sucesso e a derrota, prepare-se para a batalha. Desta maneira, você adquirirá punya [resultado positivo da ação].
Comentário: Krishna responde a Arjuna e argumenta porque deve guerrear. Diz que o Ser é eterno e imortal; e, mesmo se o Ser fosse sujeito à transformação, Arjuna não deveria lamentar-se, pois o que nasce está sujeito à morte, o que morre, nasce em outra forma. Não se deve lamentar por algo que é inevitável, seja a morte ou a separação de pessoas queridas; e, do ponto de vista de um Ksatriya [guerreiro], um príncipe como ele é, Arjuna deve considerar a situação do ponto de vista da sociedade e estabelecer a ordem, sem hesitar quanto à guerra, se esta for necessária; além disso, ele deve guerrear, pois, para um Ksatriya, morrer na guerra é a porta aberta para o céu. Ao fazer o contrário do que deve ser feito, produz papa [demérito], resultado
negativo. Ao menos para evitá-lo, ele deve ir para a guerra. E, por fim, para defender seu bom nome, ele deve lutar.
Para preparar a mente, existe o Yoga, que inclui várias práticas e disciplinas, como o karmayoga. O karmayoga
ensina a atitude correta do sujeito no contexto do dharma, a qual depende da apreciação de Iswara. Iswara é a
causa da manifestação do universo e o próprio universo com sua dualidade, as várias leis que o mantêm
funcionando e a Ordem cósmica que o mantém coeso. Iswara, portanto, é aquele que dá o resultado das ações.
Assim, a apreciação de Iswara capacita o indivíduo a agir, com foco, e a receber, sem reagir, o que vem para
ele, tanto em nível da ação quanto do seu resultado, adquirindo a maturidade emocional necessária para
assimilar o conhecimento do Eu. É a atitude compassiva e contemplativa que confere a atitude adequada e
necessária para a pessoa executar a ação, sem preocupação com seu resultado, que vem conforme leis, na forma
de missão e merecimento. Este processo de conhecimento nega a razão para o sofrimento, pois este se torna
ilegítimo. Vejamos no que e como Krishna instrui Arjuna.
Versos 39-53: Esse conhecimento do Atman foi transmitido a você, mas agora escute sobre o Yoga. Possuindo este conhecimento, ó Arjuna, você deixará de lado a limitação, que é inerente à ação. Aqui não há esforço sem sucesso, nem possibilidade de erro. Até mesmo um pouco de karmayoga protege qualquer um de grande medo. Aqui [na busca da liberação], ó Arjuna, há um pensamento claro e decisivo, mas aqueles sem descriminação têm muitos e variados conceitos. Aqueles sem descriminação encantados com as palavras dos vedas, ó Arjuna, desejosos do céu, que argumentam “não existe nada mais [do que isso]”, cheios de desejo, falam palavras floridas [que se referem a] muitas peculiaridades da ação para a aquisição de prazeres e poder [e] que conduzem a nascimentos e resultados de ação. O conhecimento claro não existe na mente das pessoas apegadas a prazeres e poder, [pessoas] cuja mente foi roubada por esse [palavras]. O assunto dos Vedas está associado aos três gunas [qualidades]. Ó Arjuna, seja livre das três qualidades, dos pares de opostos, esteja sempre estabelecido na qualidade do equilíbrio [sattava], livre da aquisição e retenção dos objetos de desejos e seja uma pessoa com maestria sobre sua mente e sentidos. Assim como é útil um pequeno poço num local repleto de água por todos os lados, da mesma forma são úteis todos os Vedas para a pessoa que tem o conhecimento do Absoluto. Sua escolha é somente quanto à ação, jamais quanto ao resultado. Não queira ser a causa do resultado da ação, tampouco esteja sujeito à inação. [Estando] firme no Yoga, faça ações abandonando o apego, tendo a mesma atitude frente ao sucesso e ao fracasso. Ó Arjuna, a atitude de equilíbrio é chamada Yoga. Desta forma, a ação é muito inferior a buddhiyoga [a ação com atitude adequada]. Que você busque refúgio nesta atitude, ó Arjuna. Avarentos são aqueles que têm o fruto da ação como motivo. Aquele que possui atitude correta abandona, aqui neste mundo, tanto a ação que trará resultado positivo, como a que trará resultado negativo. Portanto, que você se comprometa com karmayoga [a atitude adequada]. Yoga é habilidade na ação. Pois aqueles que são discriminativos, dotados desta atitude, tendo abandonado o resultado que nasce da ação, [tendo se tornado] livres da prisão do nascimento, livre do sofrimento, alcançam a liberação. Quando sua mente atravessar a
impureza chamada ilusão, então você alcançará o desapego de tudo o que já foi escutado e será escutado. Quando sua mente, atormentada com declarações dos Vedas, ficar livre de agitação e firme no Atman, então alcançará Yoga.
Comentário: Krishna apresenta o karmayoga para Arjuna, descrevendo a sua importância para o autoconhecimento. O conceito de karmayoga é que a pessoa pode escolher a ação, mas não o resultado da ação, que depende das leis cósmicas que governam a ação e seus resultados. Ao mesmo tempo, a inação não é uma solução. Assim, tendo realizado a ação, deve-se estar preparado para o resultado. Nesse contexto, Yoga é definido como a capacidade de a mente manter-se firme e equilibrada em qualquer situação, seja no sucesso ou no fracasso. Krishna ratifica a necessidade do karmayoga como atitude necessária e adequada ao se realizar a ação. Com a mente firme e equilibrada na vida por meio do Yoga, o Conhecimento torna-se possível.
Finalizando o diálogo entre Krishna e Arjuna referente ao conteúdo deste capítulo, Arjuna pergunta como é o
sábio e como esse liberto em vida se relaciona com o mundo, aara entender melhor o que acontece com uma
pessoa que possui esse Conhecimento. Krishna explica que a felicidade não advém dos objetos, que são
limitados e estão em constante transformação, tampouco vem de dentro da pessoa. A natureza fundamental do
Eu é de plenitude, ausência de qualquer carência. Esse estado não é totalmente desconhecido de qualquer
pessoa, pois é experimentado em momentos especiais e no sono profundo, quando a pessoa se encontra livre de
desejos e acomoda todo o universo. Seu coração é como o oceano, sempre pleno, apesar de águas entrarem e
saírem dele a todo instante. Essa plenitude é sua natureza e deve ser descoberta para que a pessoa possa usufruir
dela, apesar de situações e experiências de limitação.
Versos 54-72: Arjuna pergunta: Ó Krishna, qual a descrição da pessoa cujo conhecimento é firme [e] está estabelecido no Atman? Como a pessoa de conhecimento firme fala, senta [e] anda? Krishna responde: Ó Arjuna, quando [um indivíduo] deixa de lado todos os desejos que entram em sua mente, estando satisfeito em si mesmo, através de si mesmo, então é dito que seu conhecimento é firme. [Aquela pessoa] isenta de desejo, medo e raiva, livre da sede por prazeres, não afetada por situações adversas [e] cujo conhecimento é firme, é chamado de sábia. Aquela pessoa livre de apego em qualquer situação, que não se exalta ao alcançar o agradável, tampouco se irrita ao alcançar o desagradável, tem o conhecimento firme. E quando, como uma tartaruga que recolhe totalmente [seus] membros, [a pessoa] é capaz de recolher os órgãos dos sentidos [retirando-os] de seus respectivos objetos, seu conhecimento é firme. Os objetos se afastam daquela pessoa que não alimenta os sentidos, mas o gosto [pelos objetos] permanece. Apreciando o Absoluto, até mesmo o gosto desaparece para essa pessoa. Pois os turbulentos órgãos dos sentidos, mesmo daquele que se esforça e tem discriminações, roubam com força a mente, ó Arjuna. Mantendo todos aqueles [órgãos dos sentidos] sob seu comando, que a pessoa discriminativa se sente tendo a mim como o mais alto. De fato, para a pessoa cujos órgãos dos sentidos estão sob controle, o conhecimento é firme. O apego aos objetos nasce para a pessoa que medita neles. Do apego, vem o desejo. Do desejo, nasce a raiva. Da raiva, surge a ilusão mental. Por causa desta ilusão, há a falha da memória. Com a perda da memória, há a incapacitação do intelecto. Com a incapacitação do intelecto, [a pessoa] é destruída. Enquanto que aquele cuja mente foi disciplinada, que se move entre os objetos com os órgãos dos sentidos sob seu comando, livre dos gostos e aversões, alcança a tranquilidade. Quando [a mente] está tranquila, ocorre a destruição de todo sofrimento, pois logo o
conhecimento se torna firme para quem tem a mente tranquila. Para aquele que ainda não está tranquilo, não há conhecimento. Também para aquele que não está tranquilo, não há
contemplação e, para aquele que não contemplativo, não há paz. Para quem não há paz, como pode haver felicidade? Pois aquela mente que segue os errantes órgãos dos sentidos rouba o conhecimento daquela [pessoa], assim como o vento [tira] um barco [do seu caminho] na água. Portanto, ó Arjuna, é firme o conhecimento daqueles cujos órgãos dos sentidos estão
completamente retirados dos [seus respectivos] objetos. Aquele que tem os sentidos sob seu comando está acordado para aquilo que é noite para todos os seres. Aquilo para o que os seres estão acordados é a noite para o sábio que vê. Assim como as águas entram no oceano, que é pleno, sem que ele se altere, da mesma forma todos os objetos de desejo entram naquele [sábio]. É ele que alcança a paz, [e] não aquele que deseja os objetos. Abandonando todos os desejos, aquela pessoa que se move livre de apego [e] do sentimento de ‘meu’ [e] ‘eu’ alcança a paz. Isto é permanecer em Brahman. [Aquele que] obtém isto não se ilude, ó Arjuna. Permanecendo ali, mesmo que seja no final da vida, alcança a liberação.
Comentário: Arjuna quis saber quais as características de uma pessoa firme no autoconhecimento. Então, Krishna relata as características da pessoa que possui o
conhecimento de sua natureza livre de limitação. Para tanto, diz que o conhecimento claro e firme é chamado de o estado de Brahman. Portanto, a pessoa que alcança este estado torna-se livre de ilusão; durante sua vida, ela é jivanmukta [liberada em vida] e, depois da morte, torna-se um com Brahman.