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Pesquisadora: Em que momentos o trabalho de vocês desenvolvido em sala de

aula se torna um trabalho criador? Em que momentos vocês percebem que estão desenvolvendo atividades que podem ser consideradas como atividades criadoras,

atividades inovadoras? Vocês acham que isso acontece? Como que vocês percebem? Ou vocês nunca perceberam?

Tania: Teve uma atividade que nós fizemos que eu acho que atendeu a todos, que

foi a “Caravela”. Atendeu a todos os alunos, inclusive a aluninha dela [se referindo a

uma aluna com deficiência intelectual da turma da Renata]. Porque a gente trabalha

muito juntinhas. O que acontece na sala dela eu sei. O que acontece na minha ela sabe. Então, assim... somos unha e cutícula! [Tania encosta os dedos indicadores um no outro

e mexe, sinalizando que ela e a professora Renata são muito unidas]. [Renata e Tania riem].

Tania: E assim... foi a sala toda. Deu trabalho, não foi? [pergunta direcionada à Renata]. Mas eles trabalharam tudo direitinho. Todo mundo! Foi muito bom para gente.

Chegamos ao final do dia assim... Todos chegaram juntos!

Renata: A Luciana [aluna de sua turma que acompanhada pela Equipe Especializada de Apoio à Aprendizagem - EEAA da escola] nunca tinha concluído uma

atividade. Ela nunca tinha conseguido começar e terminar uma atividade. Foi a primeira vez! [Renata fala em tom enfático]. Foi bom que ela (...)

Pesquisadora: Como que era essa atividade? Tania: A atividade era sobre as caravelas (...)

Renata: Sobre o descobrimento do Brasil. Contamos a história (...) Fala! [Renata pede que Tania explique a atividade].

Tania: Nós pegamos, fizemos o livro “A menina que viu o Brasil neném”. Aí,

colocamos a história no power point, projetamos e lemos a história com as figuras projetadas para as duas turmas juntas [as turmas de Renata e Tania]. Depois, nós falamos

sobre o falso descobrimento do Brasil44. Aí, falamos das caravelas e o trabalho que nós íamos fazer sobre elas. Colocamos a palavra “Caravela” e trabalhamos os sons do “C”, do “K”, o “CA” e o “CU”, o “CE” e o “CI” e o cedilha nesse dia. Nós trabalhamos com essas dificuldades ortográficas. Aí, depois separamos as turmas para fazer o trabalho artístico. Eles foram pintar, recortar e montar a caravela de Cabral para depois montar o painel. Nesse dia a aula saiu até bacana! [Tania sorri demonstrando satisfação].

Pesquisadora: E vocês perceberam que foi uma atividade que pode ser

considerada inovadora?

Tania: Penso que sim [professora balança a cabeça para os lados como se estivesse em dúvida]. A gente está tão acostumada a avaliar por baixo o nosso trabalho! [risos].

Pesquisadora: Está vendo! Por isso que eu queria muito que vocês começassem a

observar isso no trabalho de vocês. Em que momentos que vocês percebem que vocês estão criando, inovando. Porque às vezes são coisas pequenas que a gente está fazendo, mas que estão trazendo um caráter criador para o nosso trabalho, que está transformando (...) Por que não é uma transformação? O tempo todo isso pode acontecer. Mas às vezes a gente não tem consciência!

Renata: Às vezes, a gente não está percebendo que criou, que inovou! Ilda: Exatamente!

Tania: E uma aula assim, por exemplo, nós não temos recursos financeiros para

investir nisso. Sério! Eu colaborei com um pouco de dinheiro para comprar o livro, para fazer a projeção. A minha colega também tirou do bolso dela para a gente poder comprar cartolina. Não tinha tinta na escola. Eu rodei na minha casa. Ela rodou na casa dela.

44 Ao se referirem ao falso descobrimento do Brasil, as docentes estão fazendo alusão a historiadores que

apontam que o Brasil já teria sido descoberto por outros exploradores, por meio de expedições anteriores à expedição de Pedro Alvares Cabral, não sendo por acaso, nem acidental sua rota rumo às terras brasileiras. Elas também se referem ao fato do Brasil, ao ser “descoberto” pelos portugueses, já ser habitado por nativos, no caso os indígenas, aos quais os exploradores tentaram dominar e escravizar, como se ao chegarem ao território brasileiro se tornassem donos de tudo e de todos que aqui já viviam.

Então, tem a questão financeira também. A falta de um bônus específico para compra de material, para preparação de material didático. Isso faz falta para gente também! Porque se for uma atividade, assim, sempre! Se a gente for comprar material toda vez?! A gente já recebe pouco! Vai fazer falta! Não é?

[...]

No episódio 2 pode-se notar que as professoras Renata e Tania descrevem uma atividade por elas realizada que, na visão delas, foi positiva por ter comtemplado todos os alunos da turma (alunos com e sem deficiência) e por ter sido planejada e executada de forma conjunta pelas duas professoras. Embora as docentes afirmem que a atividade exigiu delas muito esforço e utilização de vários recursos como o livro de histórias, a projeção de figuras no data show, materiais de pintura, recorte e elaboração de um painel com os alunos, elas assinalam que o trabalho realizado foi prazeroso para elas e para os alunos.

Tais aspectos podem ser evidenciados na fala de Tania ao relatar que “Teve uma

atividade que nós fizemos que eu acho que atendeu a todos, que foi a “Caravela”. Atendeu a todos os alunos, inclusive a aluninha dela [se referindo a uma aluna com

deficiência intelectual da turma da Renata]. Porque a gente trabalha muito juntinhas. O

que acontece na sala dela eu sei. O que acontece na minha ela sabe.” E, ao afirmar

“Nesse dia a aula saiu até bacana!” esboçando um sorriso de satisfação. Em outro momento Tania também ressalta que “Deu trabalho, não foi? [pergunta direcionada à Renata]. Mas eles trabalharam tudo direitinho. Todo mundo! Foi muito bom para gente.

Chegamos ao final do dia assim... Todos chegaram juntos!

Entretanto, ao serem questionadas pela pesquisadora se elas consideravam aquela atividade realizada inovadora, Tania responde de modo pouco confiante: “Penso que sim [professora balança a cabeça para os lados como se estivesse em dúvida]. A gente está

tão acostumada a avaliar por baixo o nosso trabalho!” A docente demonstra certa

insegurança ao afirmar que a atividade realizada poderia ser criadora, o que é reiterado por Renata ao afirmar que “Às vezes a gente não está percebendo que criou, que inovou!” e enfatizado por Ilda que, imediatamente, demonstra concordar com Renata dizendo: “Exatamente!”.

Em seguida Tania desabafa, demonstrando indignação acerca das condições

encontradas no contexto escolar para realização de atividades que envolvem recursos e materiais didáticos simples que deveriam ser disponibilizados pela rede de ensino. Ela se queixa que “uma aula assim, por exemplo, nós não temos recursos financeiros para

investir nisso. Sério! Eu colaborei com um pouco de dinheiro para comprar o livro, para fazer a projeção. A minha colega também tirou do bolso dela pra gente poder comprar cartolina. Não tinha tinta na escola. Eu rodei na minha casa. Ela rodou na casa dela.”

Voltando à questão abordada anteriormente, no trabalho docente, o ato de produção e de consumo do produto estão imbricados, pois, ao mesmo tempo que o professor está ministrando a aula, desenvolvendo atividades para transmissão e produção de conhecimento, o aluno, como co-participante desse processo, também já está se apropriando e reelaborando o conhecimento internamente, atribuindo-lhe novos significados. Dessa forma, se os processos de alienação das professoras já são verificados na produção (criação?) do serviço por elas prestado, eles também permearão a sua relação com o produto ou resultado de seu trabalho pedagógico. Como argumenta Marx (2003, p. 460),

. . . o estranhamento não se mostra somente no resultado, mas sim no ato da

produção, dentro da atividade produtiva mesma. Como poderia o trabalhador

produção ele não se estranhasse a si mesmo? O produto é, sim, somente o resumo

(Resume) da atividade, da produção.

A partir dessa lógica, quando Tania demonstra dúvidas com relação ao caráter inovador da atividade realizada por ela e Renata, ou quando Renata afirma que elas não sabem quando criaram, evidencia-se pouca consciência laboral por parte das docentes acerca não só dos processos, mas dos resultados de seu trabalho. Embora elas descrevam que a atividade foi positiva, que conseguiram alcançar todos os alunos, que utilizaram vários recursos didáticos e até artísticos, elas afirmam que sempre avaliam seu trabalho “por baixo”. Ou seja, elas não conseguem se apropriar de seu trabalho como autoras e criadoras, pois não reconhecem a si mesmas em suas objetivações.

Com efeito, nesse processo, a própria teleologia ou finalidade (prévia-ideação) da atividade desenvolvida não é estabelecida por um sujeito (consciência que conhece), mas a partir de finalidades alheias (posta por outros), conhecida parcialmente ou ignorada em sua essência por aquele que realiza sua objetivação.

Na verdade, a produção imaginária que precede toda e qualquer atividade consciente, que está na gênese dos processos de criação, conforme assinala Pino (2006), e que se objetiva em um produto novo, singular, caracterizando o que Vigotski (2013) denominou de experiência duplicada, se dá de forma atrofiada e limitada pelas condições adversas do contexto.

Partindo-se do princípio do

. . . conceito de imaginário, como uma instância primordial que designa o poder criador do ser humano. O próprio modelo do “trabalho social” justifica o status do imaginário de fonte de toda e qualquer forma de atividade produtiva que, antes de consumar-se nos planos do real concreto ou do simbólico, é um processo da subjetividade restrita do sujeito produtor. (Pino, 2006, p. 47)

Desse modo, ao se restringir e despontencializar o trabalho docente da intencionalidade e direcionamento de suas atividades, restringe-se também o desenvolvimento de sua produção imaginativa, que constitui a própria subjetividade. Mesmo nessa aula, para a qual foram elaborados materiais e recursos didáticos diferenciados, e que foi planejada e sistematizada com antecedência por Tania e Renata, evidenciam-se dificuldades por parte das docentes em perceberem-se como autoras e criadoras.

As professoras não reconhecem suas marcas no processo de realização de seu trabalho e no resultado produzido, que engloba a atividade em si e a aprendizagem do aluno. Conforme discutido por Alcântara (2014), o resultado do trabalho realizado não revela o sujeito que o produziu, não registra sua exteriorização e não se distingue como algo novo/diferente, criador. Nesse processo de objetivação/exteriorização, as escolhas realizadas pelo sujeito em seu trabalho (dentre as alternativas possíveis) não revelam plenamente sua subjetividade e, embora até exijam o desenvolvimento de capacidades e competências, não favorecem o desenvolvimento dos indivíduos singulares, de cujo processo emerge a personalidade humano-social, se caracterizando como processo alienador.

Tanto a finalidade do trabalho tem como base interesses alheios (apresentado pelo sistema na forma de metas de desempenho pré-estabelecidas) como o produto/serviço (no caso, o rendimento escolar dos alunos, em termos de notas) também é apropriado por outras instâncias, que o transformam, por meio de estatísticas, em ferramentas para avaliação de desempenho dos professores. Muito comumente, a docência é avaliada com base em dados quantitativos, menosprezando-se as especificidades, as diferenças e estilos profissionais desenvolvidos por cada escola ou por cada educadora, suas singularidades,

na realização do trabalho educativo (Silva & Morais, 2007). As professoras não são reconhecidas ou avaliadas por desenvolver um trabalho inovador ou diferenciado.

Contudo, é importante salientar que as docentes reconhecem e associam as atividades criadoras (que elas consideram como atividades desafiadoras, dinâmicas, que envolvem a participação coletiva) ao desenvolvimento dos alunos, não somente a sua aprendizagem.

EPISÓDIO 3 - O trabalho coletivo como espaço para a criação - 3º Encontro com o