• Nenhum resultado encontrado

Teleologia, causalidade e a ontologia do ser social: objetivação e subjetivação

Capítulo 1 Trabalho e criação no contexto de produção capitalista

1.1. Teleologia, causalidade e a ontologia do ser social: objetivação e subjetivação

De acordo com Lukács (2013), o processo de objetivação é um dos momentos fundamentais do trabalho, no qual ocorre a modificação do mundo dos objetos. Com o objetivo de sociabilizá-los, o sujeito transforma a teleologia (finalidade/consciência que põe um fim/prévia ideação) em causalidade posta.

A causalidade, definida por Lukács (2013, p. 38) como “um princípio de automovimento que repousa sobre si próprio”, consiste em uma cadeia de série causais que são dadas na natureza. Segundo o autor, ela preserva esse princípio mesmo quando orientada (teleologicamente) por um ato de consciência, quando se constitui em causalidade posta.

Nas palavras de Lukács (2013, p. 38):

. . . enquanto a causalidade é um princípio de automovimento que repousa sobre si próprio e mantém esse caráter mesmo quando uma cadeia causal tenha o seu ponto de partida num ato de consciência, a teleologia, em sua essência, é uma

categoria posta: todo processo teleológico implica o pôr de um fim e, portanto, numa consciência que põe fins. Pôr, nesse contexto, não significa, portanto, um mero elevar-à-consciência, como acontece com outras categorias e especialmente com a causalidade; ao contrário, aqui, com o ato de pôr, a consciência dá início a um processo real, exatamente ao processo teleológico. Assim, o pôr tem, nesse caso, um caráter irrevogavelmente ontológico.

Em outras palavras, Lessa (2012) explica que a teleologia é essencialmente “a prévia ideação da transformação da realidade em causalidade posta” (p. 65). Sua realização implica, de modo indispensável, a efetivação de intensas transformações da causalidade, se constituindo como gênese do ser social (uma nova esfera ontológica), que “é essencialmente causalidade posta” (p. 65).

Nessa direção, Alcântara (2014), estudiosa da categoria alienação na ontologia de Lukács, reafirma que teleologia e causalidade são categorias cruciais no processo de objetivação. Tal processo, ao retroagir sobre o sujeito – se objetivando em uma causalidade posta – caracteriza outro momento primordial para o processo do trabalho e constituição do ser social, denominado por exteriorização. Segundo Alcântara (2014) é na exteriorização que se encontra a gênese da subjetividade/individualidade humana.

A referida autora complementa que, no processo de exteriorização, outra categoria que se mostra fundamental é a alternativa, pois é ela que possibilita os atos de escolha do ser humano no trabalho. O sujeito, ao avaliar a realização de seu trabalho, lhe confere sempre um valor, o qual tem como base o processo social real. Nesse sentido, com base nos processos valorativos, são as determinações sociais que definem quais alternativas deverão ser transformadas na práxis humana.

Sobre essa relação entre as escolhas realizadas no processo de trabalho (mediante as alternativas possíveis) e os processos valorativos que as norteiam na práxis social Lukács (2013, p. 91) explica que:

As alternativas são fundamentos insuprimíveis do tipo de práxis humano social e somente de modo abstrato, nunca realmente, podem ser separadas da decisão individual. No entanto, o significado de tal resolução de alternativas para o ser social depende do valor, ou melhor, do complexo respectivo das possibilidades reais de reagir praticamente ante a problematicidade de um hic et nunc histórico-

social. Desse modo, aquelas decisões que realizam em sua forma mais pura essas

possibilidades reais – afirmando ou negando o valor – realizam, em cada estágio do desenvolvimento, uma exemplaridade positiva ou negativa.

Portanto, tais escolhas evidenciam uma determinada subjetividade, a qual está circunscrita por condições concretas (históricas e sociais) e se revelará no resultado de seu trabalho, permitindo o seu reconhecimento e distinção no/do objeto produzido. Assim, o resultado do trabalho revela quem o produziu, registra sua exteriorização, o que implica o próprio sujeito se objetivar no objeto produzido, não se tratando “de mero subjetivismo, mas de um ato que se revela objetivamente nos atos de criação do sujeito” (Alcântara, 2014, p. 41).

Decorre de tais princípios que, no processo de trabalho, objetivação e exteriorização, em uma dialética relação, formam a base essencial dos polos ontológicos do ser sócio-histórico, que são a sociabilidade e a individuação18. A objetivação aponta

18 Lessa (2012), a partir dos princípios lukacsianos, aponta que o indivíduo constrói sua substancialidade

social no decorrer de sua existência, o que significa, nessa perspectiva, que a substância do indivíduo humano é radicalmente social e histórica, sendo o desenvolvimento da personalidade somente possível quando intensamente integrada à formação social a que pertence o sujeito. O autor aponta três momentos chaves dessa articulação da individualidade com totalidade social para que a primeira possa se explicitar: 1) O desenvolvimento objetivo do ser social pressupõe, primeiramente, o afastamento de barreiras naturais, o que torna possível e exige o desenvolvimento de personalidades gradativamente mais ricas, mediadas e complexas. Segundo Lessa (2012), tal processo se caracteriza como um impulso à generalidade humana inerente ao trabalho que se constitui como fundamento ontológico do processo de individuação; 2)

na direção do desenvolvimento das forças produtivas, operando transformações no mundo dos objetos, enquanto a socialização e exteriorização se dirigem para o desenvolvimento dos indivíduos singulares, fazendo emergir, nesse processo, a personalidade humano-social.

Com bases nesses pressupostos lukacsianos, a autora conclui que é justamente nessa fundamental relação entre objetivação e exteriorização em seu díspar desenvolvimento – na antítese dialética entre o desenvolvimento das forças produtivas e das individualidades sociais – que repousa a problemática da alienação. Embora o desenvolvimento das forças produtivas implique, de algum modo, o igual desenvolvimento das capacidades humanas, na sociedade de classes tal processo tem se efetivado a partir do sacrifício dos indivíduos. O sacrifício se dá porque, mesmo sendo levados ao desenvolvimento de algumas capacidades exigidas por suas atribuições e atividades laborais, os indivíduos não desenvolvem, necessariamente, suas personalidades (em sentido omnilateral). Nas palavras de Alcântara (2014, p. 50), “o potencial humano em relação ao pensamento, à criação, ao crescimento de suas habilidades fica limitado ao exercício de atividades repetitivas que tornam o homem um fragmento do processo produtivo”.

Todavia, a autora salienta, baseada na teoria lukacsiana, que, embora a exteriorização da individualidade do sujeito se constitua em uma das gêneses sociais dos

Individuação só pode se realizar em sociedade, pois “seu elemento fundante (as ações dos indivíduos) só existem enquanto síntese de elementos genéricos e particulares” (p. 131). Nesse sentido, todo e qualquer ato social consiste em uma síntese de elementos genéricos e singulares, sendo que a tensão entre esses elementos tem uma função ontológica, a qual permite (na práxis cotidiana) a percepção da contraditoriedade gênero humano/individualidade dentre as alternativas apresentadas na/pela realidade. Tal tensão implica que o indivíduo deve escolher entre possibilidades que tendem a ser mais ou menos genéricas e/ou mais ou menos particulares; 3) No processo de escolha são decisivos os complexos valorativos. Ou seja, o desenvolvimento das individualidades só se dá mediante complexas mediações, que são necessariamente genéricas e que possibilitam ao indivíduo referir (a si próprio, como suas) as exigências/necessidades geradas pela evolução do gênero humano, desenvolvendo complexos como costumes, direito, ética, dentre outros.

processos de alienação, por ela também é possível sua superação. Parte-se do princípio de que, sendo cada homem singular um polo real, ontológico, de cada processo social, a sua exteriorização pode, em condições e realidades objetivas favoráveis, se constituir em um momento positivo que possibilite a constituição da personalidade.

Nas palavras da autora,

. . . a divisão do trabalho determina o crescimento das capacidades a ela necessárias e impulsiona as objetivações a gerar nos indivíduos comportamentos adequados ao desenvolvimento das forças produtivas. Ao passo que o retorno das exteriorizações provoca, nos mesmos sujeitos envolvidos no processo de trabalho, diferenças bastante significativas que podem ser favoráveis ou não ao desenvolvimento da personalidade. Como vimos, diferentemente de Hegel, para quem a exteriorização e a alienação, precisamente pelo caráter idealista hegeliano, são categorias idênticas, em Lukács a exteriorização é um momento positivo que dá origem à constituição da personalidade. Em condições objetivas desfavoráveis, porém, as exteriorizações podem dar origem a alienações (Alcântara, 2014, p. 60). Nesse ínterim, embora Lukács e Vigotski não tenham tido efetivas interlocuções na elaboração de seus estudos acerca do desenvolvimento do que caracteriza a essência da constituição social do homem, eles teceram suas teorizações em áreas afins e a partir da mesma matriz epistemológica: o materialismo histórico dialético. Com efeito, suas teses e principais premissas dialogam e se complementam em muitos aspectos.

Para Lukács (2013), cada ser humano singular se constitui em um polo real e ontológico de determinado processo social (conforme dito em excerto anterior). Para Vigotski (2000, p. 27): “O individual, o pessoal – não é ‘contra’, mas uma forma superior de sociabilidade”. Ou seja, para os dois autores, tudo aquilo que se torna uma função ou capacidade individual é constituído socialmente; foi outrora relação entre as pessoas.

Vigotski (2000, p. 24) aprofunda a questão do ponto de vista psicológico e afirma: “a personalidade torna-se para si aquilo que ela é em si, através daquilo que ela antes manifesta como seu em si para os outros. Este é o processo de constituição da personalidade”.

Desse modo, o desenvolvimento cultural e consequentemente da subjetividade humana, para Vigotski, se dá em níveis, nominados de em si, para os outros e para si. Nesse processo, conforme sinaliza Pino (2005), não apenas os aspectos concretos e materiais das relações são internalizados pelo sujeito, mas as suas significações, os sentidos produzidos na relação com o outro. Sentidos que posicionam esse sujeito socialmente, que definem o que ele é e o que dele se espera, constituindo-o como um ser social e singular ao mesmo tempo.

Essa dinâmica denominada na teoria vigotskiana de internalização, longe de ter um caráter determinista e cartesiano, separando dentro/fora, social/individual, evidencia, na realidade, um processo de transformação no qual o social (para mim) se torna individual (em mim). A esse processo, Pino (2005) denominou por conversão.

O termo conversão, mesmo não tendo sido citado na obra de Vigotski, foi desenvolvido e ampliado por Pino, se constituindo em um avanço teórico do autor acerca do conceito vigotskiano de internalização. Pino (2005) ressalta que a passagem do que era externo para o interno, a determinação do social na constituição do indivíduo, não é algo que se dá de forma mecânica, mas em uma dinâmica de transformação na qual é imprescindível a atividade do sujeito e a significação (Sawaia & Silva, 2015).

Nas palavras de Vigotski (2000, p. 26),

. . . evidentemente, a passagem de fora para dentro transforma o processo. Por trás de todas as funções superiores e suas relações estão relações geneticamente sociais, relações reais das pessoas. Homo duplex. Daí está claro, porque

necessariamente tudo o que é interno nas funções superiores ter sido externo: isto é, ter sido para os outros, aquilo que agora é para si.

Dessa forma, pressupondo que os processos de exteriorização humana e de conversão, que advêm do trabalho social e suas complexas relações, estão na base da constituição das personalidades e subjetividades do homem,

. . . só será possível realizar o patamar da genericidade humana, superar a

generalização da alienação das sociedades complexas, e estabelecer uma teleologia propriamente humana ou caminho da vida com sentido, quando o ser

particular puder expressar em si as potencialidades do gênero humano, quando a genericidade humana for tanto a ascensão do indivíduo ao gênero, quanto a expressão do gênero no indivíduo, o gênero consciente de si. Se a essência humana é social e histórica como ficou demonstrado até aqui, a ascensão do indivíduo ao gênero é “possível” a partir das escolhas dos próprios homens, da inserção de um sentido humano consciente no desenvolvimento social ao escolher alternativas [no futuro] para além do capital. (Namura, 2003, p. 152, grifos da autora)

No entanto, na atual conjuntura capitalista, o ser humano, de um modo geral, tem na relação com o trabalho, uma alienação da sua essência criadora. Esta é distorcida, transformada em uma habilidade ou competência externa ao sujeito, que deve ser adquirida e colocada a serviço da reprodução do capital, conforme analisaremos a seguir.