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1. A água como recurso natural: aspectos físicos e ambientais

1.3. Água como centro de conflitos ambientais

A situação crítica de abastecimento de água em vários locais do mundo é um dos problemas socioambientais que mais suscitaram discussões nos meios científico e político nas últimas décadas. Das diversas conferências internacionais que contribuíram para a inserção das questões ambientais nas decisões políticas e econômicas dos países-membros da Organização das Nações Unidas (ONU), podem-se destacar as que priorizaram a água como recurso vital para a saúde, a produção de alimentos, a preservação dos ecossistemas e o desenvolvimento social e econômico. A primeira em Mar del Plata, em 1977, chamou a atenção para a necessidade da reforma e modernização da gestão dos recursos hídricos e teve como uma das principais recomendações aos países membros que estabelecessem políticas públicas por meio de planos e programas nacionais de abastecimento de água e saneamento até 1990 e que identificassem marcos intermediários dentro de seus contextos socioeconômicos para o desenvolvimento de planos periódicos de recursos hídricos e saneamento básico dando prioridade de atendimento às populações de maior necessidade (UN, 1977). O período entre 1981 a 1990 foi considerado a Década da Água e do Saneamento, cujos programas atrelados ajudaram cerca de 1,3 bilhão de pessoas nos países em desenvolvimento a obter acesso à água potável (UN, 2003). Em 1992, a conferência de Dublin estabeleceu os quatro princípios fundamentais de orientação para conservação da água e desenvolvimento sustentável:

- Princípio n° 1 - A água doce é um recurso finito e vulnerável, essencial para sustentar a vida, o desenvolvimento e o meio ambiente. Já que a água sustenta a vida, o gerenciamento efetivo dos recursos hídricos demanda uma abordagem holística, ligando desenvolvimento social com o econômico e proteção dos ecossistemas naturais. Gerenciamento efetivo liga os usos da terra aos da água nas áreas de drenagem ou aquífero de águas subterrâneas.

- Princípio N° 2 - Gerenciamento e desenvolvimento da água deverá ser baseado numa abordagem participativa, envolvendo usuários, planejadores legisladores em todos os níveis. A abordagem participativa envolve uma maior conscientização sobre a importância da água entre os legisladores e o público em geral. Isto significa que as decisões são tomadas no menor nível possível com participação total do público e envolvimento de usuários no planejamento e implementação de projetos de água.

- Princípio N° 3 - As mulheres formam papel principal na provisão, gerenciamento e proteção da água. Este papel de pivô que as mulheres

desempenham, como provedoras e usuárias da água e guardiãs do ambiente diário não tem sido refletido na estrutura institucional para o desenvolvimento e gerenciamento dos recursos hídricos. A aceitação e implementação deste princípio exige políticas positivas para atender as necessidades específicas das mulheres e equipar e capacitar mulheres para participar em todos os níveis dos programas de recursos hídricos, incluindo tomada de decisões e implementação, de modo definido por elas próprias.

- Princípio N° 4 - A água tem valor econômico em todos os usos competitivos e deve ser reconhecida como um bem econômico. No contexto deste princípio, é vital reconhecer inicialmente o direito básico de todos os seres humanos do acesso ao abastecimento e saneamento à custos razoáveis. O erro no passado de não reconhecer o valor econômico da água tem levado ao desperdício e usos deste recurso de forma destrutiva ao meio ambiente. O gerenciamento da água como bem de valor econômico é um meio importante para atingir o uso eficiente e equitativo, e o incentivo à conservação e proteção dos recursos hídricos.

Estes princípios ainda hoje guiam todos os programas da ONU para promoção do acesso a água para populações em situação de risco em países em desenvolvimento, mas também justificam programas que promovem privatização e a exploração mercantilista deste recurso. Também em 1992, foram realizadas as conferências do Rio de Janeiro, Helsinque e Paris; os Fóruns Internacionais da Água, realizados de 1994 a 2007; a Conferência de Noordwijk, em 1994; a criação, em 1996, do Conselho Mundial da Água e da Parceria Global da Água e, em 2003, a declaração pela ONU do Ano Internacional da Água Doce. Todas essas conferências e ações revelam o grande interesse que autoridades de diversos países tem sobre a água, mais pelo apelo desenvolvimentista, com a água vista como bem econômico, do que pela promoção da equidade de acesso como anunciam os discursos. Como visto no início deste capítulo, muitos dos discursos e apontamentos que circunscrevem o problema da água e de sua importância como bem indispensável à sobrevivência das espécies tratam da questão de forma alarmista, identificando a ameaça no mundo contemporâneo sob o argumento da escassez que assombra os mais diversos habitats, em especial, as grandes cidades e metrópoles.

Conforme aponta Porto-Gonçalves (2004), o discurso da escassez da água associa- se a um novo protagonismo de agentes interessados em controlar a sua produção e distribuição. Cabe acrescentar, neste sentido, que a ideologia que se constrói a partir daí atinge outros níveis de inserção, inclusive governamentais, que, ao se coadunar com determinadas práticas de políticas públicas, acabam por se vincular de alguma forma a tais discursos. Assim é que, nas

discussões sobre a crise hídrica, privilegiam-se as constatações acerca, por exemplo, dos baixos índices pluviométricos que, embora verdadeiras, fazem-se em detrimento de outras questões que estão diretamente vinculadas à produção da água no âmbito de seu ciclo. A desvinculação entre o uso e ocupação do solo e as questões ambientais contribuem, neste sentido, para a disseminação de um ideário que se sustenta a partir da ausência de lógica de ordenamento territorial em que o não acesso da população mais vulnerável à terra urbanizada é o centro da questão. Deste modo, justificam-se, com mais naturalidade, as razões pelas quais os problemas sazonais comprometem a produção da água, reforçando as atitudes omissas em relação às práticas de gestão do uso e ocupação do solo, difíceis de serem resolvidas considerando os entraves na adoção de políticas fundiárias e habitacionais adequadas ao déficit e demanda habitacionais presentes nas cidades brasileiras, principalmente nas médias e grandes cidades.

O Relatório do Programa de Análise Global e Avaliação de Saneamento e Água Potável da ONU (UN WATER, 2012) identificou que habitantes de 80 países, cerca de 40% da população mundial, já vivem sérias dificuldades em manter a disponibilidade hídrica e as previsões não são otimistas: secas provocadas por desmatamentos, mudanças climáticas e poluição de mananciais trará falta de água para mais de um bilhão de pessoas a partir de 2020. Ecos das resoluções e recomendações da ONU são identificáveis nas políticas públicas adotadas em diversos países em desenvolvimento. No Brasil, um trecho2 de um documento produzido pela

Agência Nacional de Águas sobre a evolução da política de dos recursos hídricos no Brasil (ANA, 2002) reforça o crescimento populacional e as mudanças climáticas como principais pressões sobre os recursos hídricos, como se apenas esses fatores explicassem a redução da disponibilidade de água nas grandes metrópoles, ocultando outras fontes de pressão também impactantes como o mal planejamento demográfico e inoperância dos poderes públicos em solucionar os grandes problemas de saneamento das cidades. Diante deste contexto, torna-se imperativo refletir sobre a forma com que os fenômenos naturais - como a própria distribuição não uniforme da água doce pela superfície terrestre –, ou fenômenos relacionados ao crescimento populacional têm sido empregados para justificar a escassez, e tornarem-se instrumentos para a construção de uma ideologia que promova a mercantilização da água e, consequentemente, a exclusão hidrológica das populações mais pobres.

Não se pode descartar as questões demográficas relacionadas ao tema, mas a relação é muito

2 “A atual pressão sobre os recursos hídricos resulta do crescimento populacional e econômico, traduzindo-se nas expressivas taxas de urbanização verificadas nos últimos anos e aliando-se à ocorrência de cheias e secas e à degradação do meio ambiente hídrico, que atingem cada vez maiores contingentes populacionais” (ANA, 2002).

mais complexa do que o mero dilema neomalthusiano entre crescimento populacional e pressão sobre os recursos, o que pode ser percebido pela dificuldade crescente em oferecer água de boa qualidade para consumo humano nas principais áreas urbanas do mundo, apesar dos avanços tecnológicos que ampliaram muito a capacidade de oferta de água em termos da capacidade de tratamento ou captação (HOGAN; MARANDOLA; OJIMA, 2010). Autores como Costa e Braga vêm reforçando que a oposição ou conciliação entre o urbano e o ambiental nas políticas públicas urbanas vincula-se a um amplo campo de conflitos sociais em torno do uso apropriado do território e dos elementos sociais, bióticos e abióticos do espaço urbano. Neste sentido, as autoras destacam que a questão não se resume à mera falta de integração, como muitas vezes pode parecer, mas compreende também objetivos e lógicas contraditórias entre as diferentes políticas formuladas e, mais do que isso, das práticas que se realizam (COSTA E BRAGA, 2004, p. 195). Para Acselrad, há uma importante discussão a ser feita sobre as instituições regulatórias e políticas na esfera pública e as pressões que sofrem dos setores privatistas não só sobre a água, mas também os demais recursos, o que “requererá o esforço de não se enfrentar em separado, por exemplo, a análise da questão da água da discussão das questões fundiárias, de articular a caracterização das dimensões físico-materiais com a explicitação das dimensões simbólicas associadas aos modos de representar o “meio”, ambos elementos indissociáveis na explicação das estratégias dos diferentes atores envolvidos nos processos conflitivos em causa”(ACSELRAD, 2004, p.9)

Faz-se necessário, portanto, ampliar a percepção sobre os modos como a água tem sido empregada no sistema de produção capitalista contemporâneo, que estão tornando os custos de captação e tratamento cada vez mais elevados, especialmente para o abastecimento das grandes aglomerações urbanas. Crises como vivida na Região Metropolitana de São Paulo poderão ser cada vez mais frequentes e prejudiciais, levando ao agravamento de problemas sociais pela falta de equidade no acesso a água. Com custos de captação elevados, as empresas detentoras das concessões de tratamento e distribuição de água podem facilmente justificar o repasse desses custos aos consumidores, e a lógica de pagar para usar um bem comum, além de não inibir maus usos e desperdícios dos setores mais abastados da sociedade, terminará por dar mais uma face à segregação social, a exclusão hidrológica. Esta situação só poderá mudar quando se passar a reconhecer seu valor social e ecológico, não apenas seu valor de mercado, tornando sua conservação prioridade das políticas socioambientais, sua utilização justa e sustentável e seu gerenciamento comunitário. Aspectos centrais do abastecimento de água não podem se constituir em mera fonte de lucro para grandes monopólios privados. Recurso

renovável, a água do planeta não vai acabar, mas pode não estar disponível ao consumo humano se não forem tomadas medidas para sua conservação, a começar pela mudança dos paradigmas de gestão.

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