• Nenhum resultado encontrado

ÁREA TECNOLÓGICA DE MECÂNICA INDUTRIAL: UM MERCADO FECHADO PARA AS MULHERES?

REGIÃO METROPOLITANA DO RECIFE

4.3 ÁREA TECNOLÓGICA DE MECÂNICA INDUTRIAL: UM MERCADO FECHADO PARA AS MULHERES?

Na área de mecânica, visitei a Metalmec34. Segundo o panfleto

que recebi da gerência da empresa, ela possui uma área total de 10.000m2. Foi criada em 1998, e, apesar de seu curto período de atuação, conta com uma grande experiência no mercado tecnológico, dispondo de estrutura e aparato de equipamentos modernos. A empresa, em 2012, quando foi realizada a pesquisa, contava com aproximadamente 200 funcionários. Desse total, havia um contingente de 30 mulheres, que atuava na administração e serviços gerais. Não havia, na época da entrevista, nenhuma técnica em mecânica atuando na empresa, que é bastante conceituada na cidade.

Essa empresa produz todo tipo de máquina para movimentação de materiais (transportadores de correias planos; transportadores de correias em canoa para produtos granulados; transportadores de correntes para indústrias de bebidas e sistemas completos de automação de movimentação de materiais). Também faz parte da sua linha de produção caldeirarias leves e pesadas. Seu corpo técnico é especializado e conta com equipamentos para realizar serviços de vulcanização em esteiras transportadoras leves de PVC, automação de linhas de produção, serviços de vulcanização em correias de transmissão plana, serviços de montagem industrial mecânica e instalação de tubulações.

Nessa empresa fui recebida por Joaquim, um jovem de 28 anos, técnico em mecânica encarregado do setor de maquinaria e responsável pela seleção de estagiários. Assim que cheguei, ele me convidou para conhecer as instalações, pedindo que a entrevista acontecesse durante essa caminhada, pois, assim, ele ia explicando tudo in locus. Joaquim me disse que era ex-aluno do Instituto e costumava acompanhar os professores de lá nesse tipo de visitação. Sorrindo disse: “Mas uma professora é a primeira vez?”. Ele havia entendido que eu estava na empresa para conversar sobre vagas de estágio para mulheres do

34 Os nomes verdadeiros das empresas, que foram o locus da segunda fase dessa pesquisa, bem como o nome dos funcionários entrevistados foram substituídos por nomes fictícios.

Instituto. Eu lhe disse, então, que, de certa forma, esse também seria um de nossos assuntos. E lhe perguntei por que não havia mulheres no quadro de funcionários. Se isso era política da Metalmec. Ele respondeu que não e por que eu achava isso. Expliquei a Joaquim que, nas entrevistas, com o corpo docente e discente da área de mecânica do Instituto, eu havia registrado muitas queixas das estudantes sobre o preconceito e a discriminação que sofriam, tanto dentro do Instituto quando no mercado de trabalho. Disse-lhe também que, segundo as estudantes, elas não eram absorvidas porque havia uma alegação de que sua fragilidade corporal tonava-as inaptas para alguns setores da área. Disse-lhe ainda que esse discurso sobre o corpo feminino era comum entre os homens da área do IFPE e pedi a opinião dele sobre isto.

Eu, particularmente, acho que existem diferenças anatômicas sim entre homens e mulheres. Mas veja bem... A situação é que faz a pessoa. Eu, por exemplo, nasci na periferia do Recife e lá, amiga, essa historinha que mulher não pode pegar peso é balela. [risos] Cresci vendo as mulheres da comunidade. Elas enfrentando tanques de roupa suja e, muitas vezes, sem água encanada. É, pois é, né! Ainda tinham que carregar água. Sem falar das que estavam grávidas, carregando filhos no braço e puxando carrinho de feira. [risos] E são frágeis, é? Eu não acho, né!

Na performance narrativa desse sujeito, reconhecemos que as práticas socioculturais constituem a categoria gênero e, entre essas práticas, está inclusa a linguagem que, com relativa frequência, pode ser objeto de resistência ou de contestação. Por isso, pensar a linguagem discursivamente, não significa sempre um movimento de retorno ao mesmo, ao já-dito, pois a linguagem funciona mediante uma tensão entre os dois polos que, segundo a AD, são representados pela paráfrase e polissemia. Por isso todo discurso é produzido a partir de uma relação entre o mesmo e o diferente.

Portanto, desvendar como os discursos funcionam requer que consideremos um “duplo jogo da memória” que, pelo esquecimento, tanto pode reproduzir e cristalizar o mesmo quanto tornar possível o diferente. São os processos parafrásticos que estão relacionados à memória institucionalizada (o arquivo) que conduz à estabilização e refere-se àquilo que em todo dizer se mantém, ou seja, o dizível. Já a polissemia, usada como recurso nas análises do material empírico desta

pesquisa, está do lado da memória constitutiva (o interdiscurso) aquilo que também pelo esquecimento permite um deslocamento, a elaboração de outro enunciado, ou mesmo a ruptura de processos de significação.

Parafraseando Orlandi (2001), se o real da história não fosse passível de ruptura não haveria nem transformação nem movimento possível dos sujeitos e dos sentidos. Por isso, a incompletude é a condição da linguagem, uma vez que não estão acabados nem os sujeitos nem os sentidos e, por conseguinte, nem o discurso. Eles estão sempre num processo de construção.

Assim, as constantes reiterações de sistemas de percepção constituídos histórico-socialmente se concretizam numa espécie de conhecimento social geral que orientam os comportamentos dos indivíduos na direção daquilo que é aceitável pelos grupos dos quais fazem parte. Em contrapartida, há os processos de polissemia, pois se os sentidos e os sujeitos não pudessem ser múltiplos, não pudessem ser outros, não haveria necessidade de dizer. Portanto, o grande desafio de quem se debruça sobre a análise de práticas discursivas é exatamente conseguir desvendar a relação entre a paráfrase e a polissemia na constituição dos sujeitos e na produção dos sentidos procurando estabelecer a distinção entre o que é efêmero e o que se eterniza, num espaço fortemente regido pela simbolização das relações de poder. Esta compreensão coloca o sujeito numa posição privilegiada e considera a linguagem como o lugar da constituição da subjetividade, uma vez que nem sujeitos nem sentidos estão fixados, tampouco desfrutam de liberdade absoluta. Entretanto, a possibilidade de atravessar as evidências e sobrevir o irrealizado está sempre presente, afinal, se a interpretação das palavras e das coisas – a produção de sentidos – é determinada pelas memórias institucional e constitutiva, não significa que ela seja necessariamente imóvel. (ORLANDI, 2001)

Dessa forma, à luz da AD, ao entender os sujeitos como “reconstrutores” de discursos que não são puramente deles, é possível procurar situá-los entre um paradigma da objetividade, que os ignorava, e outro subjetivista que, ao superestimar sua dimensão criadora, esquece e faz esquecer sua dimensão mediadora entre uma polifonia que precede a ele e a uma manifestação discursiva dela decorrente.

É possível perceber, na fala de Joaquim, esses processos de polifonia e paráfrase, pois ele, ao mesmo tempo em que reproduz ideologias androcêntricas sobre a fragilidade feminina, contrapõe-se a elas.

Ao perceber esses processos discursivos em seu discurso, pedi para Joaquim falar um pouco mais sobre isso. Que me explicasse um pouco mais seu posicionamento e se eu estava certa em afirmar que para ele existiam diferenças físicas entre homens e mulheres, mas essa diferença não era determinante na execução de determinadas tarefas. Joaquim sorriu e me disse:

Acho que vou me complicar em te dizer isso. [risos] Mas vamos lá! Não pegar peso é coisa de menina mimada. Elas sim são preconceituosas e acham que homem é feito pra carregar peso. Eu já ouvi isso, sabia? Ouvi isso de algumas garotas. Você está certa sim. Eu acho que mulheres são diferentes de nós sim, graças a Deus! [risos]. Mas é como eu te disse, na hora de pegar no pesado, todos enfrentam, dependendo da situação econômica. É a necessidade que determina e não o sexo da pessoa. As mulheres do bairro onde cresci não têm opção, tem que trabalhar duro pra sobreviver.

Questionei Joaquim por que não havia, então, mulheres exercendo a função de técnica em mecânica na empresa, já que ele não demonstrava ter preconceito. Indaguei, novamente, se isso era uma política determinada por seus superiores. Joaquim fez um pequeno intervalo na sua fala e me respondeu que talvez essa fosse mesmo uma opinião pessoal.

Nós não temos mulheres no quadro de funcionários da área técnica mesmo. Nunca tivemos. Mas são elas que não procuram as vagas que disponibilizamos. Acho que é porque o trabalho aqui é um pouco insalubre. É uma área em que a gente se suja muito. Eu sou hoje supervisor, mas já trabalhei na linha de produção e sei como é que é. Não tem nada a ver com sexo não. Tem a ver com competência. Mas o fato de ter que pegar no pesado e se sujar assusta sim algumas mulheres. [risos]

Joaquim fez um pequeno silêncio e retomou seu relato.

Aqui na empresa têm uns homens meio machões, que acham que lugar de mulher é atrás do fogão.

A equipe técnica daqui é exclusivamente masculina. Acho que os gerentes da empresa ficariam em dúvida, ficariam... ficariam em dúvida em colocar uma menina no meio deles. Ainda bem que até agora não recebi nenhum currículo de mulher querendo ir pro meio deles. [risos] Eu não teria problema nenhum. Mas acho que não ia rolar não.

Há muito tempo, concepções machistas como essas em relação à mulher criam enormes barreiras para sua inserção em vários setores da indústria. Segundo Claudia Fonseca (2010), nos anos 20 do século XX, por exemplo, as mulheres pobres eram cercadas por uma moralidade oficial fora de sua realidade. As que tentavam escapar à miséria por seu próprio trabalho, em vez de serem admiradas, tinham de defender sua reputação, uma vez que o assédio moral era lendário. As mulheres que trabalhavam fora, mas em atividades tradicionalmente femininas (lavar, passar, engomar) pareciam correr menos perigo moral do que as operárias industriais. O discurso oficial ditava que a mulher deveria ser resguardada em casa e aos homens caberia o trabalho no espaço da rua. Fonseca (2010, p.517) afirma que esse discurso

longe de retratar a realidade, tratava-se de um estereótipo calcado nos valores da elite colonial, e muitas vezes espelhado nos relatos de viajantes europeus, que servia como instrumento ideológico para marcar a distinção entre as burguesas e as pobres.

Essas dificuldades enfrentadas pelas mulheres, como pode ser constatado, ainda se fazem presentes em muitos contextos do mercado de trabalho. O relato de Joaquim, por exemplo, reflete um tipo de discurso que direciona a educação das mulheres, desde a infância, em muitos lares brasileiros. Comumente, as famílias educam seus filhos e filhas para se portarem conforme modelos impostos pela sociedade, que determina o tipo de comportamento que é “natural” ou mais “adequado” aos sexos. Isto favorece a divisão sexual de trabalho, pois o modo de produção vivido pelo homem interfere no seu modo agir na sociedade. O gênero masculino costuma ser definido pelo sucesso profissional. Já a mulher, mesmo que possua sucesso profissional, seu status ainda é articulado à vida familiar, uma vez que a aceitação do trabalho da

mulher não a dispensa de ser responsável pelas tarefas da casa e dos cuidados com filhos, marido, idosos ou familiares doentes.

Para Maria José Ferreira (2008), a identidade feminina, portanto, é construída nas inter-relações que se estabelecem no cotidiano das mulheres e essas inter-relações definirão os significados que cada pessoa adquiriu pelas experiências de vida. Segundo essa autora,

[...] por tradição histórica, a mulher teve sua existência atrelada à família, o que lhe dava a obrigação de submeter-se ao domínio masculino, seja pai, esposo ou mesmo o irmão. Sua identidade, segundo esses estudos, foi sendo construída em torno do casamento, da maternidade, da vida privada-doméstica, fora dos muros dos espaços públicos. E por essa tradição, construída historicamente, a mulher se viu destituída de seus direitos civis. Não podia participar de uma educação que fosse capaz de prepará-la para poder administrar sua própria vida e de ter acesso às profissões de maior prestígio. Assim, por um longo período histórico, a família, a igreja e a escola, elementos inerentes a esse processo, enquanto instituições, vão sustentar esse projeto moralizador, tutelando a mulher ao poder econômico e político do homem brasileiro. (FERREIRA, 2008, p. 15)

Mas esse quadro delineado pela autora tem sofrido alterações. Pode-se constatar uma participação efetiva da mulher na área industrial de mecânica. As mulheres estão, gradativamente, vencendo barreiras e buscando inserir-se nessa profissão que até pouco tempo era reduto masculino. Elas têm enfrentado condições adversas na sua profissionalização, como foi demonstrado no Capítulo 3 desta pesquisa, persistindo as desigualdades sexistas nas relações escolares e familiares, que se traduzem ainda na subordinação da mulher ao homem. Mas apesar de enfrentarem dificuldades, em relação à família para estudarem e exercerem sua profissão, causadas pelo preconceito, elas resistem e concluem o curso de mecânica. Essas dificuldades enfrentadas pelas mulheres são sem dúvida, de cunho histórico e cultural. A sociedade brasileira ainda apresenta uma mentalidade machista, resquícios do patriarcalismo. Nesta perspectiva, a elevação da escolaridade aliada à profissionalização das mulheres nesse setor industrial, torna-se um

requisito importante para a construção de valores identitários femininos, da percepção de que é possível transformar discursos que entravam a realização profissional feminina. (ARAUJO, 2005)

Na sequência da entrevista, perguntei a Joaquim se era casado e se tinha filhos. Ele me disse que tinha duas mulheres em casa: a esposa e uma filhinha de três anos. Pedi que me falasse um pouco sobre a educação que ele e a esposa davam à menina.

Eu quero que ela saiba fazer tudo. Mas acho que nem preciso dizer isso a ela. A mãe dela é danada. Trabalha fora. Mas faz de um tudo. Troca lâmpada. Mexe com ferramenta. E não é só quando eu não estou em casa não. Mesmo eu estando, ela não espera. Se precisar, ela faz. E até melhor do que eu pra falar a verdade. [risos] Indaguei a Joaquim se ele tem ideia de qual será sua postura se sua filha quiser, no futuro, seguir sua profissão. O que ele dirá a ela se quiser trabalhar, por exemplo, na equipe de técnicos da Metalmec. Ele abriu um largo sorriso e disse:

Agora você me pegou de jeito. [risos] Confesso que isso nunca tinha passado pela minha cabeça. Ainda bem que... que... tenho bastante tempo antes dela pensar em namorar ou fazer isso. Sinceramente, acho que não daria força não. Mas é que... porque... Acho que a gente acaba querendo poupar os filhos... poupar do que a gente sabe que vai acontecer. Mulher numa área dessa deve sofrer muito. Piada, assédio, chacota e sei lá mais o quê! Não! [ênfase] Não vou dar força não. Tem outras profissões mais legais, menos sofridas.

Mas se essa for a vocação de sua filha, se ela insistir, indaguei a Joaquim. Falei também sobre as alunas que entrevistei, as quais relataram o sofrimento por não receberem apoio em casa e, que por isso, acabavam frustradas desistindo do curso. Joaquim, entre sorrisos, disse que ia pensar em tudo que eu havia lhe falado, mas que tinha muito tempo ainda.

Penso que a postura de Joaquim seja decorrente da predominância masculina na área em que ele atua. O motivo dessa

hegemonia é antigo e possui explicações que passam por questões de ordem sociocultural, econômica e cognitiva, como foi demonstrado nos capítulos 2 e 3 deste estudo. Para explicar as causas da representação desproporcional de mulheres na mecânica, duas perspectivas têm sido usadas. Uma delas, baseada nas diferenças sexuais, confere a homens e mulheres diferentes disposições para realizarem tarefas distintas. Essa diferença é usada para justificar a desigual presença de mulheres nessa área tecnológica. Assim, o determinismo biológico se manifesta como argumento para colocar a mulher em situação de desvantagem. Outra perspectiva colocada como causa da desigualdade numérica da participação feminina, existente nesses ambientes de trabalho, diz respeito aos discursos das instituições acadêmicas e cientificas que, na sua maioria, são dirigidas por homens, reforçando a posição do estereótipo masculino como o único apto a assumir cargos e posições de mando. Acredito que em muitos casos, os padrões sociais e institucionais determinam as escolhas individuais.

Nessa área, de fato, há uma hegemonia masculina em instituições de ensino e no mercado de trabalho. Isto tem criado um ciclo vicioso que não propicia a inserção profissional das mulheres. Sob esse ponto de vista, a questão da desproporcionalidade do feminino nesses ambientes não resulta da inaptidão das mulheres para a mecânica e, sim da manutenção de estereótipos em relação à profissão reforçados diariamente nos discursos que circulam tanto na educação como no mundo do trabalho.

O discurso vigente nessa empresa evidencia também que não é coisa do passado a divisão sexual do trabalho. A determinação de “profissão de homem” ou “profissão de mulher” ainda é um fator que contribui para o preconceito. Dificilmente essa discriminação é percebida. Mas o preconceito não está somente dentro das empresas, ou nas salas de aula. Está dentro dos lares também. Ainda que muitos saibam da discriminação de gênero, poucos são aqueles que refletem sobre o problema. As mulheres sofrem com esse tipo de discriminação. Esse tipo de discurso é um dos fatores que levam muitas mulheres a desistirem da carreira. Há uma pressão da sociedade que, embora negue, mantém vivo o preconceito de gênero nesse mercado profissional. Até mesmo ao contratar estagiários, as empresas, como fica evidente na fala desse entrevistado, acabam dando preferência ao gênero predominante da profissão, como se uma mulher não pudesse ser uma boa funcionária. Podemos dizer que a discriminação é, de certa forma, velada, pois a especificação de gênero não aparece nos anúncios dessa empresa, nem para vagas de estágio nem de emprego.