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RELATOS DAS ESTUDANTES DO IFPE 273 ANEXO A – EMENTA DO CURSO DE MECÂNICA

1.1 ALGUMAS PALAVRAS SOBRE O CORPUS

A presente pesquisa não alude a um fato histórico específico. Entretanto, como afirma Alessandro Portelli (2010), mesmo que o assunto - ou fato social como ele denomina - não remeta necessariamente a um fato histórico, estamos sempre relatando a história, embora haja uma diferença entre “contar histórias” e “contar a história”. Para ele, “contar histórias” é a transmissão oral de relatos no seio da própria família e da comunidade. Já “contar a história” é uma forma narrativa que pressupõe a figura do entrevistador/pesquisador, tendo neste espaço físico e narrativo o compartilhamento de alteridades e diferenças em confronto no momento da entrevista. Assim, o discurso de sujeitos pertencentes a segmentos sociais geralmente excluídos da historia oficial, como os deste estudo, podem ser registros para análises sobre sua visão de mundo e do grupo social a que pertencem. Segundo Liliana Cabral Bastos (2008, p. 80),

as histórias estão nas mais diversas instâncias de nossas vidas, e estudá-las é uma forma de compreender a vida em sociedade. Nessa atividade de narrar, não apenas transmitimos o sentido de quem somos, mas também construímos relações com os outros e com o mundo que nos cerca. (BASTOS, 2008)

Compreendo que de nossas narrativas emergem ideologias que direcionam nossas práticas discursivas, as quais influenciam, e até determinam, nossa relação como os nossos interlocutores.

Bastos afirma que pesquisadores das mais diferentes áreas das ciências humanas e sociais vêm se interessando cada vez mais pelo estudo dessas histórias, sobretudo aquelas que são contadas em situação de entrevista. Para essa autora, esse interesse ocorreu num contexto de mudança de paradigma científico que colocava em xeque metodologias tradicionais. Assim, para uma pesquisa pós-positivista, de natureza qualitativa e interpretativa, a complexidade envolvida nos fenômenos sociais não pode ser atingida com o aparato metodológico tradicional. Por isso, segundo Bastos (2008), o estudo das histórias narradas durante entrevistas contribuirá sobremaneira para a compreensão não somente do sentido que os sujeitos fazem deles mesmos, mas, sobretudo sua compreensão do mundo e de suas experiências nesse mundo.

Como meu propósito nesta tese é “contar” a história da inserção de mulheres nos cursos de mecânica, eletrotécnica e refrigeração do IFPE - Campus Recife e a entrevista constituir o principal meio de captação do material empírico para “contar” essa história, o primeiro passo na constituição do corpus foi o aprofundamento epistemológico sobre o ato de entrevistar. Ao concluir essa etapa, iniciei o trabalho de campo, partindo da premissa de que uma entrevista só se torna realmente significativa quando se estabelece um diálogo entre e além das diferenças, como afirma Portelli (2010). Entretanto percebi, após as primeiras tentativas, que havia necessidade de um roteiro, mesmo que flexível, para dar conta das questões a que me propunha na investigação. Elaborei, então, um roteiro (conforme Apêndice A), para os encontros com as estudantes. Com os demais entrevistados, foram sugeridos blocos temáticos para o encadeamento do diálogo.

Em razão de as entrevistas serem, como já foi mencionado, meu principal meio de captação de informações, algumas definições e delimitações mostraram-se necessárias à medida que esse processo avançava. Era necessário definir o tipo de entrevista para eleger a que

estivesse em consonância com os pressupostos teórico-metodológicos deste estudo.

Segundo Verena Alberti (2005), em se tratando de uma pesquisa científica, há dois tipos de entrevistas que podem ser usadas como método de pesquisa: a temática ou a de história de vida. A primeira terá um tema específico e não precisa ocorrer, necessariamente, em mais de uma sessão; já a segunda, terá como tema a trajetória da vida de um sujeito, sua relação com algum tema investigado na pesquisa, implicando, obviamente, em um conjunto de sessões de entrevistas. Levando em consideração esses pressupostos, optei pela entrevista temática, uma vez que a discussão aqui proposta terá como ponto central a formação acadêmico-profissional das estudantes das áreas de mecânica, eletrotécnica e refrigeração.

Por isso, ao entrevistar os sujeitos presentes nesta tese, procurei concentrar minhas atenções em apenas um período específico de suas vidas, com o intuito de dar destaque ao registro das narrativas acerca das experiências vividas pelas entrevistadas durante seu processo de formação profissional, a fim de identificar o surgimento de um novo posicionamento delas em relação aos discursos sobre as profissões pelas quais fizeram opção.

Entendo que ao registrar os depoimentos dos sujeitos aqui evidenciados, poderei de alguma forma contribuir para a compreensão do passado recente, pois como afirma Alberti (2005), uma entrevista é, simultaneamente, um relato de ações pretéritas e um resíduo de ações implicadas no próprio ato de entrevistar, na qual há no mínimo dois autores: o entrevistado e o entrevistador.

Sendo assim, mesmo que o entrevistador pouco se pronuncie – ação que tentei ao máximo evitar -, para permitir que o entrevistado tenha a oportunidade de narrar suas experiências, a entrevista que o pesquisador conduz é parte também de seu próprio relato: científico, acadêmico. Identifico-me plenamente com esse perfil de entrevistador traçado por essa autora, pois, por ser mulher e professora, os relatos que compõem este estudo também me dizem respeito.

Munida dessa base teórica sobre o ato de entrevistar, realizei os encontros com o intuito de estabelecer um diálogo com as/os estudantes e com as/os colegas de profissão no Instituto. Creio que um facilitador foi o fato de eu ministrar há 18 anos aulas de Língua Portuguesa e Literatura no IFPE, o que me proporcionou acesso a todas as áreas técnicas do Campus. Essas entrevistas ocorreram em duas etapas. A

primeira - realizada no IFPE - Campus Recife no período de março a maio de 2012 - foi produzida a partir de um único encontro7 com

docentes e discentes. Esses encontros foram feitos individualmente, através de intercâmbio verbal face-a-face e gravados em áudio, durando, em média, uma hora e meia cada.

Neste ínterim outra delimitação mostrou-se necessária: a seleção dos entrevistados. Ao falar sobre os procedimentos referentes à constituição e delimitação de um corpus, Orlandi (2001, p. 64) afirma que ele, o corpus, é resultante de uma construção do pesquisador. Além disso, a “análise é um processo que começa pelo próprio estabelecimento do corpus e que se organiza face à natureza do material e à pergunta (ponto de vista) que o organiza”.

Como neste estudo adoto uma perspectiva de gênero relacional e recíproca entre homens e mulheres associada à linguagem, ao refletir sobre esse processo de que fala a autora, considerei imprescindível inserir o discurso masculino, objetivando a compreensão do processo de subjetivação das mulheres aqui evidenciadas, pois, como pontua Joan W. Scott (1995, p. 75), informação “sobre as mulheres é necessariamente informação sobre os homens, uma vez que um implica o estudo do outro”. Em razão de adotar essa concepção, selecionei estudantes e professores do sexo feminino e masculino para serem entrevistados.

Ao selecionar o corpo discente, em princípio, fiz um recorte apenas em função das fases dos cursos. Mas logo percebi que muitos outros fatores seriam determinantes para a compreensão das práticas discursivas desses sujeitos. Como as atividades acadêmicas do Instituto ocorrem nos três turnos, há realidades bem díspares que demarcam diferenças significativas entre as/os estudantes do turno diurno e do noturno; como faixa etária, raça/etnia e camada social. Por isso, as entrevistas com as/os estudantes do IFPE foram realizadas com aquelas/aqueles matriculados em períodos e turnos diferentes. O critério para a escolha de períodos distintos é justificado pela necessidade de se observar os vários estágios pelos quais passam as/os estudantes.

Compreendo que categorias como faixa etária, raça e camada social são muito relevantes quando a proposta é estudar o discurso uma vez que a linguagem, como aponta Orlandi (2001), é concebida como

7 Houve apenas uma exceção: Maria Regina do curso de refrigeração. No período de realização da primeira etapa das entrevistas, essa estudante era minha aluna. Com ela, foram realizadas duas entrevistas e, em uma delas, houve a participação de alguns de seus colegas.

uma mediação necessária entre o ser humano e suas práticas sociais. Essa mediação, constituída pelos discursos que produzimos, é o que torna possível nossa permanência e nosso deslocamento nas interações com os outros sujeitos.

Portelli (2010), por exemplo, utiliza as categorias classe, gênero e etnia, somadas à linha da semiótica, para defender a ideia de que numa entrevista o narrador sempre trava um diálogo com diversas vozes. Em outras palavras, é estabelecido um diálogo entre as diversas “identidades” e “papéis” de gênero e uma relação entre pesquisador e narrador é estabelecida. Nessa relação, é necessário que haja um encontro pessoal, uma troca de olhares em que se estabelece a relação de cumplicidade e também de confiança. Essa relação de que fala o autor foi sem dúvida ponto crucial para o sucesso das entrevistas que realizei. Como os entrevistados já me conheciam, sentiram-se à vontade e não se opuseram em relatar para mim suas experiências de docente e discente do IFPE. Mas apesar da confiança que nutriam por mim, em princípio, percebi que os docentes mostraram-se um tanto quanto reticentes em falar sobre relações de gênero no contexto de suas respectivas áreas de atuação. Creio que essa atitude encontre justificativa no fato de não haver uma discussão mais aprofundada sobre gênero em nosso Instituto. Ou talvez eles não quisessem expressar possíveis noções machistas, uma vez que, certamente, eu me oporia a elas.

O locus dessa primeira etapa de realização das entrevistas foi um facilitador por ser meu local de trabalho. Mas por questões acadêmicas, procurei selecionar os sujeitos da pesquisa dentre aqueles que não eram minhas/meus alunas/alunos no período em que realizei os encontros. Entretanto, às vezes, fui surpreendida pela ocorrência de relatos espontâneos em sala de aula, os quais me instigaram a gravá-los e anotá- los no diário de campo por considerá-los de extrema contribuição na elucidação dos questionamentos deste estudo. Fazem parte do corpus dessa primeira etapa as entrevistas realizadas com duas estudantes do curso de mecânica, duas de eletrotécnica e duas de refrigeração, além de três colegas (do sexo masculino) das respectivas estudantes. Também compõem esse corpus os relatos de três professores (dois homens e uma mulher8) do Campus Recife que ministram disciplinas técnicas nas

referidas áreas.

8 O fato de o corpo docente ser representado por 2 homens e 1 mulher deveu-se à realidade acadêmica do IFPE Campus Recife. Comumente, no Instituto, não há professoras ministrando disciplinas técnicas nas áreas evidenciadas neste estudo. A esse respeito, tratarei no Capítulo 3.

Na segunda etapa, ocorrida no período de agosto a dezembro de 2012, foram realizados três encontros com funcionarias/funcionários de três empresas localizadas no grande Recife/PE, as quais atuam nas áreas de mecânica, eletrotécnica e refrigeração e contratam estudantes do IFPE, tanto para estágio como para funções efetivas. Os encontros dessa etapa ocorreram em um único momento com cada um desses representantes e aconteceram nas referidas empresas. Como há um elo entre o IFPE e essas empresas, através da Coordenação de Estágios e Empregos (CEE) do Campus Recife, não foi difícil marcar essas entrevistas. Porém, notei que a priori os entrevistados colocaram-se um pouco na defensiva, acredito que em virtude da temática da pesquisa. Mesmo assim, o diálogo fluiu e houve uma contribuição significativa para a constituição do corpus deste estudo.

Ao término do trabalho de campo, outra delimitação foi feita no que concerne à transcrição/interpretação dos relatos. Orlandi (2001), ao tratar sobre a posição em que trabalha o analista de discurso, alerta para o fato de não haver uma posição neutra, mas relativizada diante da interpretação. Por isso, segundo essa autora, é preciso que o analista considere o trabalho da ideologia, sem se tornar vítima dos efeitos produzidos por ela. Assim, por questões éticas, resolvi substituir os nomes verdadeiros das entrevistadas e dos entrevistados. Os homens receberam nomes que comumente são usados em nosso país. Já as estudantes terão Maria como primeiro nome, um dos mais populares no Brasil9. A escolha pelo nome Maria não foi aleatória. Deu-se em virtude

de ele ser universalmente usado, praticamente, como um adjetivo explicativo do substantivo mulheres.

É imprescindível ressaltar que, apesar da substituição dos nomes verdadeiros das/dos entrevistados, foram preservadas as características discursivas que fazem parte da sua performatividade linguística. Essa performatividade, que estará destacada em itálico, é composta tanto por aspectos verbais como não verbais. Essa opção justifica-se porque compreendo que não só a linguagem verbal, mas silêncios, hesitações, risos e pausas produzidos são marcadores discursivos relevantes na análise dos discursos. Na visão de Portelli (1997), por exemplo,

a posição e o exato comprimento da pausa têm uma importante função no entendimento do

9 Há no Brasil 13.356.965 pessoas que se chamam Maria. Essa estatística foi possível graças à análise de mais de 165 milhões de CPFs ativos feita pela Proscore, empresa de gerenciamento de informações. (GRELLET, 2011)

significado do discurso. [...] Muitos narradores desviam-se de um ritmo para outro na mesma entrevista, quando sua atitude em relação à matéria em discussão muda. (PORTELLI, 1997, p. 28)

A concepção de discurso apresentada por esse autor, cujos pressupostos teóricos embasam muitas pesquisas filiadas à Historia Oral (HO), está em consonância com a Análise do Discurso francesa, que será utilizada nesta pesquisa, uma vez que entendo ser o discurso um processo constituído a partir das relações sociais. Procurarei a seguir, através de uma abordagem teórica sucinta, apresentar as possibilidades de uso desses dois campos metodológicos como métodos de pesquisa na abordagem interdisciplinar desta tese.