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AS MULHERES NA EDUCAÇÃO TECNOLÓGICA DO BRASIL A história da educação tecnológica 18 no Brasil teve início ainda

RELATOS DAS ESTUDANTES DO IFPE 273 ANEXO A – EMENTA DO CURSO DE MECÂNICA

2.4 AS MULHERES NA EDUCAÇÃO TECNOLÓGICA DO BRASIL A história da educação tecnológica 18 no Brasil teve início ainda

no império. Após a suspensão da proibição de funcionamento de indústrias manufatureiras no Brasil, em 1809, o então Príncipe Regente, que se tornaria mais tarde D. João VI, assinou um Decreto criando o Colégio das Fábricas. Nessa época, o mundo vivia a Revolução Industrial que teve início na Inglaterra, com a mecanização dos sistemas de produção que era dominado por uma burguesia sedenta por maiores lucros, menores custos e produção acelerada. Mas a economia do Brasil era de base escravagista, com um número considerável de negros cativos. Por isso, o interesse maior do Príncipe Regente era, com esse decreto, a partir da cultura, difundir um novo espírito e melhorar as condições econômicas da sociedade, além de mudar o quadro de letrados presente na época, que era de bacharéis e eruditos, traço cultural predominante da elite. Entretanto, esse decreto, que previa uma mudança significativa, não conseguiu imprimir uma transformação significativa na mentalidade cultural da época, uma vez que a base econômica agrícola e escravista não mudou. Na época de criação desses colégios, a indústria não havia chegado ao Brasil. Por isso, a propensão discursiva da sociedade da época - mais inclinada às letras do que às ciências – não era de valorização das profissões ligadas à técnica e às atividades do tipo manual e mecânico. E a iniciativa do colégio das fábricas que no seu primeiro momento parecia inovadora fracassou. (VASCONCELOS, 1991)

Segundo Maria Luiza Marcílio (1998), isto se explica a partir da estrutura econômica, uma vez que é fácil deduzir que os favorecidos dos colégios das fábricas não foram os negros cativos e nem seus filhos e filhas, pois o alicerce econômico continuou o mesmo. Isso ocorria porque, no século XVIII, o Brasil não comportava mais uma base econômica agrícola e escravista, mas ao mesmo tempo não possuía estrutura para uma industrialização massiva. Não se pode negar que,

18 Entendo educação tecnológica, a partir da concepção de Miriam Grinspun (2002, p. 27), como “uma filosofia que oriente o sujeito para que ele seja capaz tanto de criar a tecnologia, como desfrutar dela e refletir sobre a sua influência na sua própria formação e de toda sociedade”.

historicamente, o século XVIII tenha sido marcado pelo grande salto tecnológico nos transportes e máquinas. As máquinas a vapor, principalmente os teares gigantes, revolucionaram sobremaneira o modo de produzir. Mas, se por um lado a máquina substituiu o homem e a mulher, gerando milhares de desempregadas(os), por outro também baixou o preço de mercadorias e acelerou o ritmo de produção. No entanto, a mola-mestra da industrialização era o consumo, o que a sociedade brasileira não comportava, tendo em vista o grande contingente da população que ainda vivia sob o trabalho escravo. Enquanto na Europa os trabalhadores lutavam por melhores condições de trabalho, no Brasil, a luta era pelo fim da escravidão. Logo, se não havia mercado consumidor, não havia também expansão da indústria. (QUELUZ, 2000)

Esse panorama começa a assinalar mudanças em 1909, quando Nilo Peçanha, o então Presidente do Brasil, através do Decreto nº 7566, instalou em cada uma das capitais dos Estados do Brasil uma escola de Aprendizes Artífices, destinadas a ministrar o ensino profissional primário gratuito. Eram 19 escolas destinadas “aos pobres e humildes”. Os estudantes recrutados para compor o corpo discente deveriam ser preferencialmente, de acordo com as normas adotadas, nas palavras de Gilson Queluz (2000), "os desfavorecidos da fortuna". Assim, essas escolas tornaram-se uma espécie de asilo para esses meninos “pobres”. Desde a sua gênese, portanto, as Escolas de Aprendizes Artífices eram direcionadas aos meninos, uma vez que o objetivo maior do estado era evitar que crianças desvalidas se tornassem futuros vadios e nocivos à sociedade.

Essa modalidade educacional, em todos os seus níveis, foi assumindo um caráter de ordem moralista, para combater a vadiagem, ou assistencialista, para propiciar alternativas de sobrevivência aos menos favorecidos pela sorte, ou economicista, sempre reservada às classes menos favorecidas da sociedade, distanciando-as da educação das chamadas “elites condutoras do País”. Isto é tão verdadeiro, que tradicionais cursos de educação profissional de nível superior, como direito, medicina e engenharia, entre outros, são considerados como cursos essencialmente acadêmicos, quando, na verdade, também são cursos profissionalizantes uma vez que o Parecer CNE/CEB nº.16/99 destaca que, a rigor, “após o ensino médio tudo é Educação Profissional.” (VASCONCELOS, 1991)

Segundo Queluz (2000), isto talvez tenha sido uma exigência estabelecida em decorrência dos próprios preconceitos vigentes no país

da época, ainda impregnado da atmosfera escravocrata, com grande preconceito em relação às tarefas manuais. Essa proposta de “acolhimento dos pobres” era comum a todas as outras escolas Aprendizes Artífices, cuja proposta dialogava com os discursos de disciplinarização e higienização que eram correntes nesse período. Na época, profissionalizar esses jovens brasileiros significava também, e porque não dizer principalmente, ensiná-los a se comportar a partir de normas e padrões instituídos socialmente como “adequados”.

Essa política de atenção à infância pobre já vinha se intensificando desde os anos 1850, com a criação de Asilos de Educandos em quase todas as capitais provinciais. Segundo Maria Luiza Marcílio (1998), a ideologia que fundamentava essas instituições incluía a formação cívica e a capacitação profissional das crianças desvalidas. Arrisco-me a concluir que as preocupações maiores desse projeto eram direcionadas aos meninos, quer fossem brancos ou pretos, uma vez que, de acordo com as referências da época, as meninas/mulheres mesmo as de rua, não constituíam um elemento perigoso à segurança social.

Nesse contexto, a educação profissional brasileira foi sendo tratada de maneira preconceituosa ao longo de sua história, influenciada por uma herança colonial e escravista no tocante às relações sociais e, em especial, ao trabalho que para os homens era naturalizado dependendo de sua classe social. Já as mulheres, somente para algumas o trabalho era “permitido” e “estimulado”.

Até a década de 70, a formação profissional nas instituições profissionalizantes se traduzia no treinamento para a produção em série e padronizada. O resultado desse tipo de formação era a incorporação ao mercado de trabalho de operadores semiqualificados, desempenhando tarefas simples, rotineiras e previamente delimitadas. Havia pouca margem de autonomia para o trabalhador, pois o conhecimento técnico e organizacional cabia quase sempre apenas aos níveis gerenciais. A baixa escolaridade dos trabalhadores não era considerada entrave significativo à expansão econômica. Em 2004, houve uma nova regulamentação para a educação profissional no Brasil. O Decreto n° 5.154/2004 determinou que a educação profissional deveria ser integrada às diferentes formas de educação, ao trabalho, à ciência e à tecnologia com o objetivo de promover o permanente desenvolvimento de aptidões para a chamada vida produtiva. (VASCONCELOS, 1991)

Atualmente essa modalidade de educação que se destina ao estudante matriculado ou egresso do ensino fundamental, médio e superior, bem como ao trabalhador em geral, jovem ou adulto, estrutura- se em: formação inicial e continuada de trabalhadores; educação

profissional técnica de nível médio; educação profissional tecnológica de graduação e de pós-graduação. A partir da vigência do decreto citado acima mudou a abordagem das atividades produtivas que constituem o mundo do trabalho, passou-se então, a identificar três grandes segmentos: produção de bens, produção de conhecimentos e produção de serviços. Essas atividades produtivas são as bases em que se assentam as diretrizes curriculares nacionais. Cada um desses segmentos - bens, conhecimentos e serviços - tem processos próprios, ou seja, demandam funções específicas, que realizam operações segundo determinadas normas, métodos e técnicas. Os diferentes processos produtivos guardam entre si semelhanças e dessemelhanças, e sobre as semelhanças é que se constituem as grandes áreas profissionais. Por outro lado, os processos produtivos de cada área profissional se desdobram em funções e subfunções, e a partir destas últimas é que são identificadas as competências e habilidades, construídas sobre as bases tecnológicas a elas referenciadas. (FERRETI, 1994).

Depois de várias mudanças, a educação profissional não mais consiste em simples instrumento de política assistencialista nem se resume à simples preparação do sujeito para execução de um determinado conjunto de tarefas. Pelo contrário, depois da nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, Lei Federal 9.394/96, a educação profissional passou a significar muito mais: o domínio operacional de um determinado fazer, acompanhado da compreensão global do processo produtivo, com a apreensão do saber tecnológico, a valorização da cultura do trabalho e a mobilização dos valores necessários à tomada de decisões. Podemos perceber que a nova LDB revê o seu texto frente à Educação Profissional. Por isso, grande parte dos perfis profissionais propostos pelo setor produtivo apresentam características muito vinculadas à formação geral do trabalhador, no sentido de que ele precisa ter uma forte base humanística, científica e tecnológica, e competências para a tomada de decisão, para o trabalho em grupo e para a adequação às constantes mudanças que se processam no mundo do trabalho. Mesmo percebendo os avanços frente ao novo modelo de produção, bem como na forma como se organiza a formação para esse modelo, a questão da qualidade e competência ainda não foi pensada a partir das relações de poder, ou seja, no interior do trabalho e de todos os modelos que pensam sobre a questão da organização da produção, a relação de gênero tem sido ignorada pelos estudiosos do tema em questão (FERRETI, 1994).

Pensando no contexto atual, podemos dizer que esse nível de escolaridade tem especial importância para a inserção das mulheres no mercado de trabalho porque, segundo a Síntese de Indicadores Sociais (SIS), apesar do aumento da taxa de atividade das mulheres, elas ainda são as principais responsáveis pelas atividades domésticas e pelos cuidados com os filhos e demais familiares. No Brasil, a média de horas que as mulheres gastam com afazeres domésticos, a partir dos 16 anos de idade, é mais do que o dobro da média de horas dos homens. IBGE (2010)

No ensino profissional brasileiro, os percentuais de ingresso feminino têm sido bastante elevados. Contudo as escolhas das mulheres continuam a recair, preferencialmente, sobre áreas que, tradicionalmente, preparam para o que Bruschini (2007) chama de “guetos” ocupacionais femininos. Mas também é verdade que a parcela feminina nos Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia, conhecidos como IFs, vem ampliando sua presença em outras áreas ou redutos masculinos, a exemplo das evidenciadas neste estudo. Entretanto, as mulheres, além de continuar marcando presença nesses tradicionais “guetos” femininos, no caso do IFPE nos cursos de Segurança do Trabalho e Radiologia, têm adentrado também em outras áreas profissionais, consideradas de prestígio, tidas como tradicional reduto masculino.

Bruschini (2007) afirma que algumas transformações pelas quais passaram algumas profissões consideradas redutos masculinos abriram novas possibilidades para as mulheres que se formaram nessas carreiras, ampliando o leque profissional feminino para além dos “guetos tradicionais”. Esta poderia ser considerada uma das principais faces do progresso alcançado pelas mulheres, no que tange à sua participação no mercado de trabalho.

Por isso a inserção das mulheres no ensino profissionalizante muitas vezes constitui um grande desafio para elas. Acreditamos que os obstáculos existam porque, embora as leis educacionais brasileiras estabeleçam que a oferta de cursos profissionalizantes deva ser sintonizada com as demandas do mercado, dos cidadãos e da sociedade, sendo instrumento eficaz na reinserção do trabalhador, há um descompasso entre o que objetiva o MEC e ao que assistimos na prática, uma vez que os cursos ofertados pelas instituições profissionalizantes aparentemente não consideram as discussões sobre as relações de gênero presentes em quase todas as esferas sociais do nosso tempo. Ao estruturarem os cursos profissionalizantes, essas instituições comumente não preveem a presença de mulheres em algumas áreas técnicas, como a

mecânica, a eletrotécnica e refrigeração. Talvez isto ocorra porque exista a falsa concepção de serem essas áreas de interesse apenas do público masculino.

De acordo com os números do IBGE (2011), na educação profissional brasileira a quantidade de mulheres matriculadas é menor do que a dos homens, pois representam 39,3% dos estudantes em cursos direcionados ao mercado de trabalho. Elas só são maioria no setor de serviços do nível técnico, onde representam 52,5% do total de matrículas. Essa diferença é atribuída principalmente à maior concentração de mulheres nos cursos de Administração, Contabilidade e Saúde. No nível básico e no tecnológico, como a matrícula é maior em cursos voltados para atividades tradicionalmente exercidas pelos homens, a presença das mulheres não passa de 36%.

Em minha concepção, isto ocorre porque os avanços galgados no século XX ainda não conseguiram construir a igualdade de gênero no sistema educacional nacional, uma vez que os currículos da educação básica e superior são pouco sensíveis a esta questão, assim como a capacitação dos profissionais, a elaboração do material didático e a orientação pedagógica para a prática na sala de aula de uma educação inclusiva. (MELO, 2010)

Tenho convicção de que ao contemplar os objetivos desta pesquisa e evidenciar a gradativa inserção das mulheres nas áreas de refrigeração, eletrotécnica e mecânica do IFPE serão feitas reflexões sobre os discursos acerca das atribuições inscritas culturalmente sobre profissões “de homem” e “de mulher”, uma vez que essa inserção feminina significa um rompimento de valores no mundo do trabalho, os quais tendem a discriminar as mulheres em carreiras predominantemente masculinas.

Por isso, no próximo capítulo, ao refletir sobre a inserção das mulheres nessas áreas do IFPE – cujo discurso predominante é da inadequação “física” para elas – será dada ênfase aos obstáculos enfrentados pelas estudantes. É meu desejo destacar o fato de essas mulheres pernambucanas estarem, paulatinamente, mudando esse panorama, construindo novas práticas discursivas a respeito da presença delas nas referidas áreas tecnológicas.

CAPÍTULO 3 HIERARQUIAS DE GÊNERO INSTITUÍDAS