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FUN ÇÃO SOCI AL DA ARTE M itologia

I .

Para Bergson, a m itologia grega é um exem plo bast ant e expressivo da com binação ent re função fabuladora, no seu sent ido m ais fundam ent al, e literat ura: ela j á não é m ais única e exclusivam ent e represent ação religiosa e ainda não é plenam ent e lit erat ura. Para com preender m elhor o sentido dessa com binação, m ais ainda, declara Bergson, para penetrar na própria essência da religião e com preender a história da hum anidade é preciso, ant es de t udo, que nos t ransport em os da religião est át ica, à qual tem os nos referido até aqui, à religião dinâm ica: “a prim eira est ava dest inada a afastar os perigos que a int eligência poderia causar ao hom em ; ela era infra-int elect ual (...) respondia exat am ente às necessidades do indiv íduo e da sociedade. (...) Mais t arde, por um esforço que poderia não se ter produzido, o hom em se desvencilhou do seu giro em falso, inseriu-se de novo, prolongando-a, na corrent e evolutiva. Foi isso a religião dinâm ica, ligada sem dúvida a um a int electualidade superior, m as distint a dela. Opondo um a religião a out ra que

com preenderem os m elhor cada um a delas”119. Mas t am bém aqui,

com o t em os vist o em relação ao pensam ento, às obras de art e, à expansão da vida em geral, est am os diante de ext rem os cujos graus int erm ediários com portam níveis de aperfeiçoam ento. O que não significa absolut am ente que de um a form a de religião a out ra, da est át ica à dinâm ica, a transposição se dê por m eio de um processo de aperfeiçoam ento, gradual, que evoluiria do m ais fechado ao aberto, pois há um a diferença de natureza ent re elas. A passagem só pode se dar, com o t em os v ist o, com o um salto, um esforço considerável que é superação da condição inercial. O que querem os dizer, pois, é que cada sent ido com port a níveis de aperfeiçoam ento e, dent ro m esm o do processo v it al há graus, pode-se dizer, de fecham ent o e de abert ura.

Com o verem os em seguida tam bém em relação à art e côm ica, devido ao potencial fabulador o ser hum ano é capaz de produzir obras e represent ações desde as m ais rudim ent ares at é as m ais sut is e elevadas; m as o que diferenciará v erdadeiram ent e um a obra abert a, um a religião est át ica, de um a obra de art e e um a religião dinâm ica será m enos o potencial fabulador do que a quê este adere: se ao princípio da necessidade, por m ais elaborada que sej a a obra ou represent ação religiosa (e há inquest ionavelm ent e diferenças expressiv as ent re obras de art e e representações religiosas m ais rudim ent ares e outras m ais sutis e elaboradas) ela estará sem pre volt ada ao sentido est át ico ou fechado da vida; se, ao cont rário, a função fabuladora estiver associada ao princípio do prazer puro e sim ples de fabular, de criar, tudo o que produzir est ará direcionado ao sent ido dinâm ico, aberto da vida. O “inst into de fabulação”, afirm a Bergson, não vai m uito longe quando o deixam os a si m esm o, m as progride indefinidam ent e se o exercem os por prazer120.

119 DS, pp. 1133-1134 120 DS, p. 1132.

As form as int erm ediárias que surgem ligadas fundam entalm ent e aos elem entos de um a religião est ática (“ variações sobre o duplo t em a do anim ism o elem ent ar e da m agia; a crença nos espíritos sem pre perm aneceu, aliás, no fundo da religião popular” ), encont ram -se, port anto, distant es das realizações próprias da religião dinâm ica, m as desem penharam e desem penham , sem dúvida, papéis m uito im port ant es na história da hum anidade. Ao longo do t em po foi precisam ent e o t rabalho de elaboração da função fabuladora que inst it ui as m aiores diferenças ent re os ext rem os das religiões. Assim , “ da faculdade fabuladora saiu por um desenvolvim ento ult erior um a m itologia em torno da qual floresceram um a literatura, um a arte, inst it uições, enfim , t odo o essencial da civ ilização ant iga”121.

Nesse sent ido, ou m elhor, em relação ao t rabalho da potência fabuladora, inserção da ação propriam ent e estética na inst rum ent al, as m it ologias grega e rom ana são bem diferent es. A função fabuladora det eve-se com a m itologia rom ana122, caso em que os deuses são visto coincidindo sim plesm ent e com suas funções (a colheit a, a guerra, a fert ilidade, et c.), das quais eles são invest idos e de algum a m aneira “ im obilizados”, afirm a Bergson, “m al possuem um corpo, quer dizer, um a figura im aginável”. Diferente é o que encont ram os na m it ologia grega, em que o im pulso persistiu e prossegui no seu t rabalho. Cada deus da Grécia ant iga, prossegue nosso filósofo, t em fisionom ia própria, caráter, hist ória; vai e vem , at ua fora do exercício de suas funções; suas avent uras são narradas, suas int ervenções no andam ento dos acont ecim entos descrit as, prest a-se, enfim , a todas as fant asias do art ist a e do poet a123. A

m itologia grega dá alguns passos adiante, ou m uitos, em relação ao

121 DS, p. 1134. 122 DS, p. 1133. 123 DS, p. 1140.

propósito inicial da religião, de prom over represent ações favoráv eis ao cont role e ao dom ínio do im previsível e do inesperado, e se aproxim a da lit eratura na m edida que cria personagens de “hist órias passíveis de serem narradas a nós m esm os”, ist o é, histórias

inventadas que acabam por abranger um universo para além do

funcional, porque não circunscrito ao âm bito do est rit am ent e necessário. “ O pensam ento social não pode deixar de conservar sua est rut ura original. Ele é inteligência ou int uição? Concordo que a int uição faça filt rar sua luz através da inteligência: não há pensam ent o sem ‘esprit de finesse’ e o ‘esprit de finesse’ é o reflexo da int uição na inteligência. Concordo t am bém que est a pequena part e da int uição se tenha alargado, dando origem à poesia, depois à prosa, convertendo em inst rum ent o de art e as palavras que dantes não eram m ais do que sinais: por m eio dos gregos principalm ent e que est e m ilagre se realizou”124. A m itologia grega não deix a de dizer

respeito aos deuses, aos desígnios div inos, t ant o quanto out ras m itologias, e a invenção, nesses casos, est á e est ará sem pre prim ordialm ent e ligada a um a finalidade utilit ária, ainda que não se rest rinj a apenas a ela. De sort e que, “quando necessário, ela reassum irá o t rabalho interrom pido. Esse foi o efeito da int rodução da lit erat ura e, de m odo m ais geral, das idéias gregas em Rom a. É sabido com o os rom anos ident ificaram cert os deuses com os da Hélade, conferindo-lhes assim um a personalidade m ais assinalada e fazendo-os passar do repouso ao m ovim ento”125.

I I .

Bergson se refere const antem ent e à invenção, à faculdade de fabular, à função fabuladora, capacidade de criar espírit os e representações divinas, personagens e im agens poéticas, enfim , e

124 PM, p. 1321.

t udo isso nos leva a considerar, nos rem et e de pront o à idéia de que, associada ao sent ido dinâm ico ou ao est át ico, sej a com o for, é ao t rabalho da im aginação que nosso filósofo se refere. E se aceit arm os essa consideração, não a farem os cont udo sem antes assinalar a ressalva feit a pelo próprio Bergson em relação à definição de im aginação126. Segundo nosso autor, a im aginação é freqüent em ent e definida negat iv am ent e, isto é, sem pre por um a negação do que poderia ser: não é lem brança, não é percepção. O senso com um , ressalt a, j unt a assim tudo o que não é num a palavra única, e quando o faz, acaba inevit avelm ent e por reduzir a realidade a essas duas possibilidades apenas, e fazer da im aginação algo cont rário a elas: cont rário à concepção que estabelece que os obj etos, as coisas, os seres, enfim , t udo o que há, ou é at ual e port anto percebido, ou é passado e port anto lem brado. E se assim fosse, ou sej a, se a im aginação fosse m esm o cont rária àquilo que est abelece o que é “real”, o que m ais ela poderia produzir senão “irrealidades”? Ora, não há com o nosso filósofo com partilhar dessa concepção e dessa definição de im aginação, pois, para ele, essa faculdade, t am bém responsável por criar “personagens cuja história narram os a nós m esm os” , produz não irrealidades, m as algo positivo, ist o é, algo relacionado ao que é, a um a ação posit iva de criar não apenas personagens e situações “ fictícias”, m as t am bém o que há de m ais em pírico e palpável em nossas vidas127. Porque o que é o é em

diversos níveis e graus, desde os m ais superficiais e det erm inados, em que nos deparam os com o est ático, com a reprodução e a repet ição, até o m ais profundo e libertário, em que m ergulham os na força dinâm ica, evolut iv a, criadora da vida. Assim , para Bergson, a ação da im aginação est á presente em t odos os níveis da nossa

126 “ Da função fabuladora dissemos j á que m al a definiríam os transformando- a numa variedade da im aginação” ( DS, p. 1141) .

127 Este, no m ais, foi assunto dos capítulos anteriores, sobretudo o primeiro, quando trat am os do esforço intelectual e do papel das im agens m ediadoras na constituição do conhecimento.

experiência (e pode ser designada por um a variedade de nom es), desde as const ruções m ais t riviais do pensam ent o até as m ais elaboradas, que requerem esforço intelect ual m áxim o, sendo que t odas elas não podem ser consideradas outra coisa que não a

realidade.

“ Deixem os, pois, de lado a im aginação, que não é out ra coisa que não um a palavra, e considerem os um a faculdade m uito bem definida do espírit o, a de criar personagens cuj a hist ória narram os a nós m esm os. Ela tom a singular intensidade de vida nos rom ancist as e nos dram at urgos. (...) Est es não são necessariam ent e aqueles cuj a obra possui o m ais alto valor, m as, m elhor que out ros, nos tocam com o dedo a exist ência, em alguns de nós ao m enos, de um a faculdade especial de alucinação voluntária”128. Essa faculdade,

prossegue nosso filósofo, que é t ão viva nas crianças, por exem plo, encont ra-se t am bém naqueles que, diferentem ent e dest as últ im as, criam não “ personagens im aginários” , com o os com panheiros de t ant as infâncias, m as int eressam -se pela ficção t anto quanto pela realidade. “O que há de m ais surpreendent e do que v er espect adores chorar no t eatro? Do m esm o m odo, podem os est ar quase t ão fortem ent e ‘em ocionados’ pelo rom ance que lem os, e sim pat izar no m esm o grau com os personagens dos quais nos cont am a história”129.

É fundam entalm ent e dessa faculdade t ão singular que lançam m ão os poet as e criadores da m itologia grega. E a explicação para sua at ividade, que conj uga num a só obra religião e art e, parte, segundo Bergson, da com preensão de algo ainda m ais essencial à vida, a função de criar represent ações e pot ências posit ivas, at ivas, prot etoras, as quais se encontram na base da religião. A elas ligar- se-á post eriorm ent e a ação estética, da função m ais básica prolongar-se-á um a at ividade m enos ligada às necessidades vit ais e

128 DS, p. 1141. 129 DS., p. 1141.

t anto m ais volt adas ao puro prazer de invent ar. De t odo m odo, verem os nisso um pouco do poder de ação dessa capacidade criadora est ét ica em relação a um a necessidade hum ana básica que é a religião.

A at ividade criadora em art e apresenta-se com o um a ex tensão de um a at ividade ainda m ais vit al, com o aquilo que v em depois, por acréscim o ao que a vida exige incondicionalm ent e. Parece claro, port anto, que as bases para o j ulgam ent o sobre o que sej a m ais ou m enos vital sej am biológicas. E dizer que as bases são biológicas – poderíam os reivindicar out ras, com o ét icas ou m orais, por exem plo – é considerar que o que se opõe à vida é, por princípio, a m orte, fim de tudo. A art e nesse sent ido não diz respeit o ao vit al, havendo ou não art e no m undo os seres hum anos perm aneceriam vivos. E seguiriam cert am ent e aprim orando cada vez m ais – dom inando o quanto fosse possív el –, por m eio de um a ciência, a sua relação com a nat ureza e o m eio em que vivem . Na ausência ou insuficiência da ciência entraria a religião, oferecendo o respaldo psicológico necessário à persist ência na vida. A quest ão no ent anto, em Bergson, dos dois sent idos da vida, o aberto e o fechado, não se esgot a no âm bit o exclusivam ente biológico. Ela nos rem et e de im ediato a um a dim ensão do vit al que é m et afísica: "o que é v it al?", ou "o que é o vit al?" passam a ser questões de ordem tam bém m et afísica. Se no âm bit o biológico a polaridade ou dualidade do vital se concent ra na oposição vida e m ort e, em relação ao m etafísico essa polaridade ou dualidade se dá no âm bito m esm o da própria vida, com o alt ernat iva de com plet ar o própria at o de continuação da v ida (o im pulso criador), ou se fixar, se im obilizar em qualquer ponto de chegada (repet ição do m esm o, reprodução). Neste sent ido – e aqui ret om am os a nossa quest ão acerca relação ent re um a função fabuladora “vit al” e out ra “ prazerosa” –, m ais relevante nos parece procurar com preender a art e t am bém sob essa dupla perspect iva de

com plet ude ou int errupção do im pulso vit al, criador por excelência. A art e é vit al? Ela se encontra num a consciência pragm ática e cat iva, ou se dirige no sent ido criador e port anto libert ário da vida?

“O esforço criador só passou com êxito na linha evolut iva que chegou ao hom em . Ao at ravessar a m at éria, a consciência adquiriu ent ão, com o num m olde, a form a da inteligência fabricadora. E a invenção, que traz em si a reflexão, expandiu-se em liberdade”130.

A com édia I .

É de se esperar que um est udo sobre a natureza do côm ico leve em cont a, em prim eiro lugar, a quest ão do por que se ri. Em seus ensaios sobre o rir, Bergson apresent a esta pergunta logo de início. Por que rim os? Sua invest igação o levou a seguint e respost a: a font e diret a do riso está no arranj o m ecânico especial que ela nos deixa ent rever por transparência, por det rás da série de efeit os e de causas. Em out ros t erm os, rim os geralm ent e quando nos deparam os com algo m ais ou m enos suspeito em relação ao m ovim ento natural da vida, com o que seria em princípio ant inat ural, m ecânico m esm o, em relação à desenvoltura própria da vida, com o um ser inanim ado t ent ando “ se passar” por vivente. “ A vida apresent a-se-nos com o um a certa evolução no tem po e com o um a cert a com plicação no espaço. Considerada no t em po, ela é o progresso cont ínuo de um ser que envelhece sem cessar, o que equivale a dizer que não volt a nunca atrás, que nunca se repet e. Encarada no espaço, ela pat ent eia a nossos olhos elem entos coexist ent es e int im am ent e solidários ent re si, t ão exclusivam ent e feitos uns para os out ros que nenhum deles poderá pert encer ao m esm o t em po a organism os diferent es: cada ser

vivo é um sist em a fechado de fenôm enos, incapaz de int erferir com out ros sistem as”131. A “m ecanização do vivent e” caract eriza-se,

assim , com o m ovim ento cont rário ao descrit o, ou sej a, nela podem os encont rar processos de repet ição, inversão e int erferência das séries em relação aos atos e acontecim entos.

I sto é o que acont ece em t eat ro, por exem plo, apont a Bergson, no vaudeville. Nesse tipo de com édia geralm ente lança-se m ão desses t rês expedient es, repet ição, inversão e int erferência. Assim , vê-se – e o Riso m ost ra claram ent e – que, se por um lado, não há nada de côm ico num encontro casual, num a rua qualquer, ent re dois am igos, bast a que este encontro se repita algum as vezes no m esm o dia para com eçar a provocar risos. Na com édia cont em porânea, diz Bergson, o procedim ento da repet ição é explorado de inúm eras m aneiras, um dos m ais com uns consiste em conduzir cert o grupo de personagens de ato em ato, nos m eios m ais diversos, de m odo a fazer renascer nas circunst âncias sem pre novas um a m esm a série de acontecim entos ou desventuras que se correspondem sim etricam ent e132. O processo de inversão se dá de m aneira análoga, em que um a situação qualquer ret orna e os papeis são intervert idos: “É assim que rim os do réu que prega m oral ao j uiz, da criança que pret ende dar lições aos pais, enfim , de t udo que se classifica sob a rubrica do ‘m undo às avessas’”133 – ao fim e ao cabo, t rat a-se

sem pre de sit uações em que há interversão de papéis, situação que se volta cont ra aquele que a criou. A definição geral que Bergson dá ao processo da int erferência das séries é a seguinte: “ Um a sit uação é sem pre côm ica quando ao m esm o t em po pert ence a duas séries de acontecim entos absolut am ente independent es e ao m esm o tem po se

131 R., p. 429.

132 Bergson faz an álises de exem plos de com édias em que o processo de repetição é bast ante explorado, com o em Molière, Escola de m ulheres, Escola de m aridos; ou com édias de Benedix. Cf. R., pp.430-431.

pode interpret ar em dois sent idos diferent es”134. Com o um quiproquó,

baseados em “equívocos” de personagens que não j ulgam det erm inada ação t al com o a plat éia, que a vê a part ir de condições diversas daquelas desses m esm os personagens e, por isso, t êm condições de ident ificar a “int erferência” . O m ovim ent o pendular do nosso espírito ent re duas int erpretações opostas surge, ant es de t udo, no divert im ento que essa possibilidade de duplicidade nos proporciona. Na verdade, o que nosso filósofo afirm a é que o quiproquó não é m ais do que o caso part icular de um fenôm eno m ais geral, de interferência de séries independent es, ele não é exat am ent e risível por si próprio, é ant es “ sinal de um a interferência de séries”135. O que cada um desses processos, no vaudeville, acaba por nos revelar, pode-se dizer, é a “m ecanização do viv ent e” e com o, de que m aneira, ela poderia cham ar nossa atenção propriam ente, j á que, afirm a Bergson, “a vida real é um v audeville na exat a m edida em que nat uralm ent e produz efeit os do m esm o gênero e, por conseqüência, na exata m edida em que se esquece a si própria; se est ivesse sem pre at enta seria continuidade variada, progresso irreversível, unidade indiv isível”136.

I I .

Mas por que esses processos nos levam ao riso? A est a pergunt a o senso com um m uit o provavelm ente responderia que rim os porque sentim os prazer, ou rim os em conseqüência de algum t ipo de alegria que se inst ala em nós, porque um a ação, ou discurso,

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