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É preciso rezar bem o fradinho pra fazer um bom acarajé

Foto: Denise Camargo

da série Privilégio do objeto, 1992.

“do ventre escuro de um porão vou baixar no seu terreiro” (Yayá Massemba, de Roberto Mendes/Capinam)

O roncó, clausura, quarto que suspende os iaôs do cotidiano pelo período da iniciação e das obrigações ao longo da vida religiosa, é um grande útero. Ali se gesta sempre um nascimento. Uma personalidade mítica desvela. É um lugar de intrincada relação entre experiências, crenças, resistências e emoção. Desse território interno, recorte da cultura negra na transposição da religião tradicional africana para o Brasil, ocorre-me estabelecer um processo de criação da imagem na experiência com o ritual.

Sobre o ritual Sodré (1998: 108) diz: “Esse momento é importante, vital para a comunidade, porque ele, e só ele, é capaz de operar as trocas, de realizar os contatos imprescindíveis à continuidade simbólica. A repetição ritualística extenua as veleidades de esencialização de qualquer real, pois este só aparece na singularidade de cada ato reiterado. [...] porque o ato ritualístico só vale no aqui e no agora, na temporalidade do instante [...]”. Reconheço esse espaço sagrado e a experiência oferecida pela cultura nagô como uma interface entre o universo mítico-ritual do candomblé e sua criação no espaço imagético. Mas convém lembrar a impossibilidade de separar a materialidade do sentido produzido por ela.

A imagem fotográfica, ainda que proibida no contexto do ritual, tem grande força na circulação do conhecimento sobre o candomblé e no entrelaçamento das influências africanas, mesmo sendo ele, hoje em dia, um domínio de diversidades étnicas e sociais. A circulação de imagens dessa manifestação religiosa e cultural dá voz a uma pluralidade de discursos visuais sobre seus principais pilares: a estrutura ritual, a sacralidade dos espaços, a hierarquia religiosa, o sacrifício, a noção de pessoa, o transe, todos tendo no corpo-

terreiro uma referência, pela qual mitos e ritos se expressam e se mantêm no

que eu poderia denominar corpo-imagem.

As manifestações de origem negra no Brasil se preservaram, em grande parte, pela sua treta de se disfarçar e calar. “A História da cultura afro- brasileira é, principalmente, a história de seu silêncio, das circunstâncias de sua repressão”, aponta Muniz Sodré, no prefácio do livro Contos crioulos da

Bahia, narrados por Mestre Didi (1976). Sodré (1997: 32) também nos diz:

“Na atitude africana o silêncio não é um simples ato deliberado, a decisão voluntária de uma consciência, mas uma espécie de pudor ontológico de um tipo de homem que, ciente da insuficiência da fala ou dos limites da comunicação discursiva, dá lugar a outra realidade, a do corpo. Silêncio não é falta de algo, mas outra realidade, situada antes e depois da palavra.”

Esse expediente, ao preservar o patrimônio imaterial da cultura negra no Brasil, pode ter sido o responsável pelo profundo desconhecimento que os brasileiros têm de suas origens, sem negarmos, evidentemente, a histórica desconstrução do território africano e suas religiões no imaginário nacional, ainda que se exaltem determinadas “paixões nacionais” que deles advêm. A começar pela quase ausência de estudos sobre a África, já na educação básica. A Lei 10.639/03 pretende fazer essa reparação ao exigir das escolas o ensino da história e cultura africanas. Complementada pela Lei 11.465/08, inclui também a cultura indígena. É importante lembrar que a palavra negro adquiriu, por isso mesmo, um significado pejorativo. Ao tratar os negros como mercadoria deu-se origem a um engano secular chamado “raça negra”, como nos lembra o geógrafo Rafael Sanzio Araújo dos Anjos, entre outros autores que tratam desta questão.

Abordo o objeto candomblé de modo semelhante àquele que me deslocou para ele: pela experiência corporal. O corpo, receptáculo dos batuques internos que me conduziram, ainda criança, tanto para a imagem fotográfica, quanto para o próprio candomblé, encontra ressonância na tradição nagô, em que é uma matriz ancestral, que revela uma liturgia essencialmente corporal (Sodré, 1997: 33).

Trabalho em um projeto poético, “entre conceitual e sensível, entre teoria e prática, entre razão e sonho” (Brites, 2002), empreendendo a busca pela retomada de uma experiência, em um processo que é fotográfico e também iniciático, por meio de memórias e imagens geradoras e de um campo conceitual capaz de propiciar um olhar preocupado com a cultura. Uma cultura em que a experiência do instante e a cooptação do segredo nela inserto colocam a todos em mesmo barco, relembrando a travessia transatlântica.

No momento em que retomo batuques, aqueles que construíram em mim a identidade que me levou para dentro do candomblé, é possível que se estabeleça uma grande contradição entre fotografá-lo e pertencer a ele. Esta pode ter sido a mais potente armadilha, prefiro a palavra fronteira, que este trabalho pareceu propiciar. Por isso, a opção pelo estudo do processo de criação, para legitimar uma fotografia que se dá nas autorreferências, no latejar das inquietudes.

Com o mesmo silêncio1 e a mesma nota acentuada fora do lugar contida,

simbolicamente, no intervalo propiciado pela síncopa dá-se uma prenhez

1O domínio do silêncio nas

artes é estudado por diver- sos autores e artistas. Para esta abordagem, conferir os ensaios O poeta e o silêncio e

O repúdio à palavra (Steiner

1988), e A estética do silêncio (Sontag,1987).

de sonoridades, reverberações, ressonâncias. É o silêncio devolvido em aprendizado que se dá em uma observação silente, atenta, interna, solitária, que impressiona o corpo, os sentidos. É o silêncio de quem cala diante dos ancestres e dos mais velhos, para deles apreender tecnologias sociais e saberes. É o silêncio que produz presença. E também o silêncio da falta. Por isso, a elaboração do caderno: E o silêncio nagô calou em mim, feito de notas imagéticas, para uma possível construção de visualidade sobre o candomblé, pautado por uma experiência localizada dentro-fora. O próximo passo é um “indispensável mergulho”, que, como comentou o fotógrafo Antonio Saggese, “não se dá quando a gente quer, o santo vem quando bem quer. Resta-nos insistir.”

Insisto. A crença é de que esta fotógrafa possa aprender a imagem por meio dos processos nos quais está inserida. Parecem, assim, existir dois modos de conviver com o ritual. De dentro: pés no chão, saias e saiotes engomados das mulheres, a comida que sai cheirosa e pelando da cozinha, o batuque das mãos dos instrumentistas, o transe do povo-de-santo. De fora: gente chegando para a festa – são os abiãs. É sempre assim para quem se aproxima do candomblé. Foi assim que meus olhos se achegaram. Depois entraram para o xirê – para a dança, para os espaços sagrados. Do canto do barracão assisto às festas, câmera em riste. Do centro da roda, participo dela. As imagens, às vezes, elas escapam ao ver consciente – inconsciência como a do transe, para além da cena religiosa. Imagens, resgate de uma expressão ancestral, que religa, conecta, aquela que só conhece quem sabe que é preciso rezar bem o feijão fradinho para fazer um bom acarajé.

Foto: Denise Camargo da série Heranças compartilhadas, 2005.

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