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O corpo que se move no tempo cíclico

O corpo, tomado de gestuais específicos e marcas rituais, dá origem a um novo modo de viver. Não se coloca um orixá no próprio corpo em vão. O que se devolve ao grupo a partir disso deve ser disciplina, rigor, atenção com as obrigações do terreiro, com a reprodução e difusão do axé do qual é constituída a arkhé13 negra. O corpo “é um altar, no sentido de que

reivindica a presença concreta do indivíduo e do deus, para que ele se realimente e se transmita a força necessária à expansão da pessoa e do grupo (Sodré, 1997: 33)”.

13 Muniz Sodré, em A verdade se- duzida define a arkhé negra. [Para

os filósofos pré-socráticos, a arché ( ; origem), seria um princí- pio que deveria estar presente em todos os momentos da existên- cia de todas as coisas; no início, no desenvolvimento e no fim de tudo].

Todo o sistema gestual e corporal do candomblé é codificado, de modo a tornar sagrados os movimentos mais banais e cotidianos – que é uma movimentação no tempo do mito, o tempo cíclico. O ritual se repete, pois reviver o mito é cuidar de sua manutenção. Os gestos se repetem e vão integrando o próprio corpo. E como diz Deleuze (1988): “não existe repetição, toda repetição é diferença. A repetição é a presença do que foi”.

Lembro-me de alguns episódios com abiãs recém-chegados ao terreiro que escolhiam para se sentar justamente as cadeiras destinadas ao babalorixá, ou os assentos reservados ao descanso dos orixás. Imediatamente, algum filho ou filha-de-santo com título de senioridade era automaticamente acionado para explicar que abiã se senta no chão ou, pelo menos, em posições espacialmente inferiores com relação às dos mais velhos. Esse gesto vai sendo aos poucos integrado ao cotidiano da comunidade, de modo que quando são elevados à categoria de iaôs, escolhem naturalmente bancos baixinhos, ou esteiras para se sentar. E se abaixam todos quando o babalorixá ou a iyalorixá estiver se pronunciando. E se curvam à troca de cumprimentos. E impõem as mãos enquanto as divindades dançam. E reproduzem gestos de integração, saudação e afetividade. E um gesto quase conjunto é realizado à entrada dos deuses, em especial, se forem os orixás do babalorixá ou da iyalorixá: pés se põem imediatamente descalçados, cabeças vão ao solo em sinal de resignação, respeito, contemplação. Em outras ocasiões, muitas vezes lançam a cabeça ao chão sem saber por quê, copiando o gesto de determinados filhos e filhas da casa, em reverência a seus orixás de cabeça ou às folhas que lhe são consagradas. O corpo recluso no roncó para as obrigações aprende a girar sob o batente das portas ao atravessá- las, para que sempre saia de frente do local que deixa. E, na postura do corpo-orixá, a encarnação de reis, rainhas, guerreiros e guerreiras de cabeças erguidas, peitos projetados, pernas abertas mantendo os pés firmes no território conquistado, ou suaves passagens na fluidez do ar, das águas. Com o tempo, o gesto apenas reproduzido se traduz em experiência dividida com a comunidade.

A dança no terreiro é exercitada no trânsito permanente entre construção- desconstrução, isto é, instabilidade. Como aquela existente na irregularidade, que é condição para a estabilidade das culturas de origem negro-africana. Isto é interessante notar porque é no espaço criado pela “irregularidade” Foto: Denise Camargo

da linguagem e, por consequência, da música que se dão as explorações da gramática do movimento nessa cultura. Há, portanto, o diálogo com um repertório de movimentos que remetem a matrizes corporais e vocais, transformando o corpo em uma unidade coesa.

Nas danças, o movimento conjunto parece ensaiado e coreografado, realizado em torno do pilar central que conecta o ariaxé à cumeeira. No ariaxé estão enterrados símbolos materiais sacralizados que representam aquele território e os orixás que ali vivem, em geral marcado, geograficamente, por um quadrado recortado no chão e tampado. No espaço da cumeeira, simbolicamente, se dá a sustentação do ilê axé.

Vão em roda, formada por ordem hierárquica e de idade de santo. Assim, novatos tentam que tentam coordenar o gesto, olhando atentamente para os que estão a sua frente, os mais velhos. E em sentido anti-horário, simbolizando o tempo cíclico, como a ativar as energias do passado para eternizar o tempo, seguem o tempo do mito. No limite do círculo, símbolo do eterno, pois não tem começo nem fim, acontece o encontro fundamental entre a condução musical e a expressão corporal.

Nessa roda, espaço transmissor de uma infinidade de códigos de comunicação e sociabilidade, de individualidade e coletividade, os membros do egbé dançam, em diálogo rítmico com os atabaques,

passagens das histórias de cada orixá. Executam de modo vibrante, porém contido, as danças que cada orixá louvado naquela festa apresentará, energicamente, – são representações do cotidiano dos deuses: pilar, socar, ceifar, guerrear, ninar um filho. É preciso compreender que a dança na África e nas tradições da diáspora produz conhecimento por meio da experiência (Barbara, 2002: 133).

Baseados na dança africana, os movimentos empurram o corpo para um plano médio, forçando a conexão com a terra, joelhos ligeiramente fletidos, pés inteiros calcados no chão, cotovelos ligeiramente dobrados e o tronco inclinado para frente, levando a movimentos amplos e fortes, mas deixando a coluna flexível e o quadril solto para quebrar. Mas cada “intérprete”

procura na sua percepção sensoriomotora lembranças de movimento,

que atualiza pelas novas possibilidades dos gestos, agora incorporados ao repertório mítico-ritual. A memória coletiva ganha continuidades no corpo de cada um, parecendo haver uma memória do movimento constantemente acionada nesse corpo que dança o xirê, sobretudo no corpo-orixá.

O circuito se abre com o padê de Exu no qual essa divindade é louvada antes de qualquer outra. Ogum simula a guerra. Ossaim coleta folhas. Oxóssi, Erinlé e Logum Edé movimentam-se como em caçada. Euá, muito leve, movimenta os braços como se enrolasse algo entre as mãos e o jogasse para fora. Xangô lembra estar de posse de seu machado de dupla lâmina. Oxum e Iemanjá executam movimentos delicados e arredondados, lembrando as correntezas, as ondas. Oyá é lasciva, ágil, o próprio vento marcado no movimento se seus braços, no gingar das cadeiras, no uso belicoso da espada. Orixás mais velhos como Nanã, Omulu e Oxalufã dançam com o tronco ligeiramente arqueado e em ritmos mais lentos. Determinada qualidade de Iemanjá e Nanã também se posicionam assim em suas danças. Oxaguiã bate energicamente para os lados a mão de pilão que carrega. Nanã parece ninar seu ibiri. Oxumarê serpenteia. Obá lembra, no gesto da mão levantada próxima do rosto, que Oxum lhe cortou a orelha. Em vários momentos o corpo-orixá quebra num jincá, movimento característico de tremer brevemente os ombros e acompanhado de seu ilá, grito que o identifica, desvendando seu nome.

Em depoimento no documentário Maria Duschenes – o espaço em movimento, a bailarina e coreógrafa afirma que a dança é um religar do homem a sua essência. “Há um equilíbrio entre a entrega e o domínio, entre estados acordados e oníricos, conscientes e inconscientes. [...] A prática da dança Foto: Denise Camargo

consegue, pelo seu poder de libertação, que as pessoas fiquem mais conscientes de si e dos outros, com autenticidade”, ela diz.

Esse corpo que dança apresenta não uma variação ou combinação de passos e movimentos, mas variações de configurações de estados corporais, e o movimento como um processo constante de atualização, gerador de outras possibilidades de organização. Somos traspassados pelo mundo que nos cerca, e no corpo se operam as transformações e percepções da cultura. “O mundo fenomenológico é, não o do ser puro, mas o sentido que transcende à intersecção das minhas experiências com as do outro, pela engrenagem de umas sobre as outras, ele é pois inseparável da subjetividade e da intersubjetividade que fazem sua unidade pela retomada de minhas experiências passadas em minhas experiências presentes, da experiência do outro na minha (Merleau-Ponty, 1971).”