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a imagem-oferenda em Mario Cravo Neto

Pronto. Estamos preparados para entrar no universo de Exu que nos oferece Cravo Neto. “Toda vez que alguém falar do livro estará saudando Exu”, avisou, ou melhor, recomendou. Aqui, o fotógrafo reforça a importância

da palavra, da oralidade, e a sua também produção de presença na cultura dos terreiros de candomblé.

Assim, não há nenhum mistério a contemplar. É Exu mesmo e Mario Cravo Neto o reconhece entre nós e, embora não faça referências diretas à prática religiosa, o fotógrafo constrói, imageticamente, a figura de Exu. Laróyè contém, mesmo, as imagens do homem baiano, integrado às manifestações populares e religiosas, “eventuais passantes, malucos de rua, barraqueiros das festas de largo, feirantes de São Joaquim”, em registros colhidos desde a década de 1970. “Essas imagens foram se agrupando em uma mesma temática: o corpo, a sexualidade, a sensualidade”, ele explicou. Não é documentação e, sim, interpretação da mítica baiana.

Foi concebido, inicialmente, para um formato pequeno. Mas Mario Cravo Neto agiu como os sacerdotes que buscam o melhor animal para servir de oferenda ao orixá nos orôs, a cerimônia em que se fazem os sacrifícios. “Precisava ser grande e poderoso, é o livro para meu Exu”.

Mario Cravo Neto pareceu em transe nas baixas luzes, luzes e sombras, o foco no limite, a apropriação dos volumes – provável herança de sua passagem artística pela escultura – e um olhar háptico10 . As imagens o

mostram muito próximo dos fotografados em todas as cenas tomadas com grande angular, mas seus personagens sequer se dão conta disso. “As pessoas

10 A palavra háptico, derivada do gre-

go, é definida por Alöis Riegl como um termo que indica um tipo de visão mais do que óptica. O tato combina-se com os outros sentidos, e pode até mesmo tocar o intocável – um novo modelo perceptivo.

Foto: Mario Cravo Neto

“A lâmina sobre a cabeça é afiada.”

Foto: Mario Cravo Neto

“Iemanjá mergulha rapidamente no rio, Exu do Fogo, não”.

Foto: Mario Cravo Neto

não me vêem, não se sabe quem fotografa quem”, ele revelou com simplicidade.

Fazia tempo que a idéia de materializar Exu rondava sua cabeça. Basta lembrar Carlinhos Brown na capa de Alfagamabetizado, de 1996, quase sem face, o braço se posicionando ereto diante do corpo, como um falo. Há também a foto Belisco, diálogo com Exu, de 1985, e o vídeo Exu dos ventos, de 1992, só para citar algumas referências em sua obra – talvez herança “do velho”, como ele se referia, carinhosamente, ao pai, o escultor Mario Cravo Júnior, autor de muitas esculturas em homenagem à divindade. Uma delas, por exemplo, ilustra o livro Orixás, de Pierre Verger (1997: 85).

Mas a publicação recebeu outros títulos durante a produção. Um deles usou como inspiração uma cena vista em Nova York: “Eu passeava em companhia da minha mulher quando vi uma mexicana (ou era uma cubana?) levando um buquê de cravos vermelhos. Aí eu pensei, esse livro vai se chamar Carnation”. A tradução alude ao Cravo do sobrenome e expressa a encarnação, a carnação. “A gente anda pela vida vendo só um fragmento das coisas”, refletiu. E desistiu da ideia depois de uma conversa na mesa do jogo de búzios de pai Balbino. “Eu não fico contando essas coisas, não”, sorriu meio matreiro. “Mas pra você eu vou contar. Resolvi dedicar o livro a meu Exu [...] Sabe, eu tenho um Exu assentado”.

Filho de Omulu, Mario Cravo Neto recebeu um cargo na família do Ilê Axé Opô Aganju, terreiro baiano de Balbino Daniel de Paula. Aqui ainda era um abiã, isto é, tinha vínculo com o terreiro, mas não passara pelos rituais de iniciação. “Não se separa o homem da natureza, eu não fui pra lá procurar, estava dentro de mim. Essas coisas, você herda.”

Quem espera encontrar o mundo folclórico ou uma documentação fotográfica do candomblé pode se decepcionar. São pequenas as referências diretas a elementos do ritual, como os galos pretos e pombos usados para os sacrifícios, as flores jogadas para a deusa do mar, um adepto prostrado no chão em sinal de respeito, ou um alabê tocando o atabaque. Não há as aiabás, as mulheres, com suas saias rodadas, nem santos com seus paramentos de festa virados na cabeça de seus filhos. “Isso faz parte de um outro trabalho que eu estou fazendo lá no Opô Aganju.”

Mario Cravo Neto se dedicou a fotografar o cotidiano e os rituais dos terreiros de candomblé durante sete anos consecutivos. Ele se referia, aqui, ao trabalho em progresso, projetado pela primeira vez no final de 2002, por ocasião da divulgação do livro. Contou que estava trabalhando com essa

temática para discutir como a fotografia é proibida dentro do culto e revelou que recebeu permissão dos deuses para dar continuidade ao trabalho iniciado por Pierre Verger, nesse mesmo terreiro.

Segundo os mitos compilados por Prandi (2001), em cujo texto me apoio para analisar as imagens de Laróyè e para legendá-las aqui, sem Exu orixás e humanos não podem se comunicar. Assim, todos devem obrigações a ele que, indistintamente, diverte-se com todos e para todos trabalha. Costuma causar confusão, pois inverte a ordem do mundo. Também chamado de Legbá, Bará, Eleguá foi identificado pelos europeus com o diabo, em virtude de seu caráter “suscetível, violento, irascível, astucioso, grosseiro, vaidoso, indecente” (Verger, 1998: 119). Apesar disso tem, igualmente, seu lado bom.

Exu é o companheiro oculto das pessoas. Por isso vem representado também em sombras e projeções, em diferentes imagens do livro, sendo quase imperceptível sua presença. Dono das encruzilhadas, sua morada é a rua – pode estar representado, assim, nas coisas mais prosaicas, mais cotidianas, como as festas.

Mensageiro dos orixás, é sempre o primeiro a comer e a ser louvado. Come de tudo e deve ser servido de tudo o que for feito. Sendo sempre o primeiro, ele é o guardião, “ele está de pé na entrada, sobre os gonzos da porta”. Daí estar assentado à porta de entrada dos terreiros, daí ser cantado no início dos

xirês, a cerimônia pública dos candomblés em que os orixás são festejados.

Daí Cravo Neto compilar imagens relativas à divindade para essa sua primeira publicação com foco na religião dos orixás.

Foto: Mario Cravo Neto

Para ele, Exu catalisa o inconsciente coletivo e está ligado às coisas mais profanas, à rua, às festas. Assim, é possível entender o contexto em que aparecem imagens como: as meninas de shortinhos coloridos, imagem que remete ao mito da briga entre dois amigos, provocada por Exu, as seis crianças dormindo amontoadas na grama, a cena Foto: Mario Cravo Neto

“Ele está de pé na entrada, sobre os gonzos da porta.”

Foto: Mario Cravo Neto

“Para um, o desconhecido usava um boné branco, para o outro, um boné vermelho”

em que uma mulher está, deliciosamente, espremida entre rapazes na pipoca do trio elétrico, a imagem de uma carne assando (“Ódara sobe no fogo que ele próprio acendeu.”), homens travestidos, corpos nus: “Exu do corpo, senhor dos caminhos, nos dê licença”.

Foto: Mario Cravo Neto

“Exu do corpo, senhor dos caminhos, nos dê licença.” Foto: Mario Cravo Neto

O falo, que o representa simbolicamente e o materializa nos objetos rituais como o ogó (uma espécie de porrete em forma de pênis), é trazido em várias imagens do livro, explicitamente, ou neste exemplar exercício de construção imagética: por trás do protagonista da cena, no centro da imagem, a perna do personagem ao fundo cria a ilusão da forma fálica que pertenceria ao personagem central da cena. Nossa atenção se dispersa em virtude da ação prestes a se desenrolar – referência direta à bagunça, à confusão na qual reina Exu (“E não permitais que nossas cabeças vejam a vossa briga.”). O falo, isto é, Exu, não é observado imediatamente, portanto. Mais uma vez ele surge como um “companheiro oculto”.

A imagem que encerra o livro é de um negro exposto ao Sol, pernas abertas, sexo à vista, preguiçoso, lascivo. O pano vermelho, sua cor ritual, faz-lhe uma reverência velada. A irreverência explícita também. “O pessoal do santo vai ver tudo isso, e vai entender, é a minha vida, é a minha visão de mundo”, explicou Cravo Neto.

Ao final da entrevista de 2000, o desejo foi de reverenciar Mario Cravo Neto e sua desconcertante produção de presença, quem sabe, com um cumprimento típico para os iniciados no candomblé – o ato de pôr o ori, a cabeça, no chão em sinal de respeito. Quanto à Exu: não é preciso ter medo.

Mas convém saudá-lo: Laróyè!

Sua temática ligada ao candomblé perpassa, de certa forma, toda sua produção durante décadas, em Salvador, e tem origem na influência africana e no sincretismo religioso. Nos trabalhos que se sucederam, impregnados da convivência ritual no terreiro, Mario Cravo Neto compôs uma visualidade muito própria do espaço sagrado, publicada em: Na terra. Sob meus pés (2003);

Trance. Territories (2004); O tigre do Dahomey. A serpente de Whydah (2004); A flecha em repouso (2008), praticamente seu último trabalho.

Ijí Lodé foi o nome que Cravo Neto recebeu ao ser iniciado em 2003. Pouco tempo depois abandonou o candomblé. Informalmente, revelou que “entrou só para depois sair”. Parece pouco provável, para uma personalidade complexa como a dele, que a desistência tenha sido apenas em virtude de uma inadaptação às hierarquias a que deveria render submissão, que é o que corre. Nunca saberemos exatamente o que ocorreu.

Há indícios de que nesse momento tenha sido premente finalizar o projeto poético dentro da religião que já durava sete anos. Faço disso uma metáfora para suspeitar da simbologia instaurada em sua atitude: segundo o sistema ritual do candomblé, aos sete anos da iniciação, atinge-se a senioridade. Sete anos depois do início desse projeto, ele não mais precisou dos vínculos que

o mantinham no interior do ritual. Diógenes Moura11 revela a fala do artista:

“que depois de sete anos de pronfundo envolvimento com o candomblé, as ‘coisas’ haviam se tornado turvas, como um tempo de espera”. A isto Foto: Mario Cravo Neto

“E não permitais que nossas cabeças vejam a vossa briga.” Foto: Mario Cravo Neto“Exu nos olha no culto e reconhece.”

11 Uma flecha em repouso e o número 7,

disponível em http://www.cravone- to.com.br/aflechaemrepouso/port/ pag02.htm

pode-se associar também todo o processo da doença que o levou à morte, em 2009. Em uma entrevista, por ocasião da exposição A

flecha em repouso, ele diz:

“O que está acontecendo com o nosso culto hoje em dia é um certo tipo de evangelização nos moldes políticos dos outros cultos. A vaidade de certos dirigentes não é mais uma utopia. No fundo usam o seu poder de sacerdotes, escondidos nas brechas de associações religiosas [...]. Mesmo assim, ainda na nossa sociedade, nos espaços sagrados dos terreiros residem os verdadeiros devotos e guardiões dos encantados. Mas estes personagens são poucos e estão acabando. Conheci de perto vários

deles, alguns até já se foram, Odé Faromin, a velha Mãe Rosa, ainda

ativa, guarda o segredo. Creio estar me excedendo neste assunto”12.

12Mario Cravo Neto em entrevista

publicada pela Galeria Paulo Darzé, por ocasião da abertura da exposição

Flecha em Repouso, em 2008, disponí-

vel em http://www.paulodarzega- leria.com.br/expo_mariocravone- to2008.htm.