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O corpo que solta a voz em louvações, e a polifonia dos tambores

Os atabaques, ou ilús, também são corpos, corpos-entidades que se alimentam de oferendas e sacrifícios. A origem da corporalidade desse instrumento pode estar relacionada à ancestralidade mitológica do Batá, “deificado e cultuado como orixá depois de sua morte” (Falcão dos Santos, 2002: 48 apud Adedeji, 1981). A música concentra a comunidade em torno do tambor. Ele estabelece a comunicação entre os homens – este é o seu significado, do som que ressoa, convoca, reanima e pede presença.

A orquestra batá, formada por diversos tambores, foi substituída no candomblé brasileiro por três atabaques, o rum, rumpi e lê. “O Batá vai sobreviver nos terreiros Nagô, no Brasil, como um ritmo específico [...]. A dança do orixá Xangô, no entanto, vai recuperar com os atabaques a qualidade rítmica do tambor Batá de origem através do alujá, dança e ritmo considerados como o momento do auge das danças de Xangô [...]” (Falcão dos Santos, 2002: 50).

A cabeça dos atabaques é forrada com a pele de cabras, bodes, cabritos, geralmente sacrificados no próprio terreiro. Esse couro pode ser amaciado vertendo-se sobre ele algumas gotas de azeite-de-dendê. Seu tamanho, Foto: Denise Camargo

Orixás guerreiros portam espadas e adereços que lembram armaduras.

Foto: Denise Camargo

largura, parafusos e tarraxas que regulam a membrana percussiva oferecem ajustes tonais e afinações diferenciados. Pintados em motivos diversos ou envernizados, durante as cerimônias são enfeitados com laços brancos ou coloridos nas cores dos orixás protagonistas das festas. Posicionam-se sempre em local de destaque e são saudados por toda a comunidade, que tenta nunca lhes dar as costas (Falcão dos Santos, 2002: 50), e pelos próprios orixás em diversos momentos do xirê.

Segundo Jones (apud Martins, 2002: 122-126) o que mais fortemente sobreviveu da música africana foram os ritmos. Isto se deve aos tambores. Eles reproduzem a fonética das próprias palavras, resultando em um “sentido rítmico” rico e complexo, sobretudo pelo uso de instrumentos de timbres diferentes. A “inflexão significante” das línguas africanas, isto é, “a combinação de tom e timbre”, a possibilidade de alterar o sentido de uma palavra pela mudança de tom com o qual é pronunciada, ou pela modificação de seu acento, impacta a “diversidade melódica” desses instrumentos. O canto “antifonal” é comandado por cantador (babatebexê ou iyatebexê) de voz forte, firme, decidida que dê conta da singularidade das cantigas-rezas, realizadas em idioma iorubá e respostas do coro, sempre ao som do atabaque, em seus toques, composições sonoras específicas com as quais cada divindade é

recebida para executar o seu baile sagrado e mitológico12.

O alabê, ogan iniciado, é o tocador. Outros instrumentos compõem a orquestra, como o agogô e o xequerê. O agogô são dois cones de ferro unidos, percutidos por uma baqueta também de ferro. Este som ardido e muito alto mantém o ritmo básico dos diferentes toques. O xequerê é uma cabaça enfeitada com contas de rosário e miçangas grandes, que, quando chacoalhada, promove um som muito característico. Os atabaques são tocados, nos rituais ketu-nagô por varinhas, os aguidavis. Ritmos ijexá são tocados com as mãos diretamente no couro.

A musicalidade de origem africana é vocal e baseada nas narrativas míticas – “principal meio de educação dos africanos”. Saberes dos mais velhos são transmitidos oralmente aos mais novos. Assim também no candomblé. É, portanto, uma “música puramente funcional” e com “tendência para a obliquidade e elipse”, características de uma linguagem que preza a “circunlocução”. Com isso, também a música nega a regularidade (de tom, tempo, timbre e vibrato).

Cantos ressoam pela casa, invadem o ambiente cotidiano e a festa, e se adensam no coletivo, durante os rituais. A voz no canto e na palavra evoca

a memória de uma África que, não raras vezes, nem se sabe ao certo, mas se reflete nos conjuntos sígnicos que fazem transitar deuses e espelhar os homens das diásporas. Todas as tarefas domésticas são acompanhadas por um cantarolar constante. Muitas vezes animadas cantigas de outras tradições, como os chamados pontos de umbanda, muito conhecidos da comunidade que já passou por esses cultos antes de migrar para o candomblé. Ou são cantigas e rezas para as folhas, para as divindades, para as cabeças, para as comidas, de acordo com a atividade que se esteja exercendo no momento. Há que se louvar continuamente, renovando o axé das formas de presença. Os balbucios desses cantos de trabalho retomam também uma espécie de memória de lamentos – banzo que se fez sagrado, pulsação que vibra no corpo, e depois no verbo, na palavra, que tantas vezes foi calada e, por isso, aprendeu que poderia manifestar sua força nos espaços transformados em divinos.

Cantigas (orin), poemas originados do sistema divinatório oracular (oriki), e histórias sobre os mitos (itan) louvam as divindades, expressam o poder da palavra. Como o movimento, ela mobiliza ações. “Pronunciadas no contexto e lugar adequados, as palavras [cantadas, faladas] têm a força de trazer consigo os seres e entidades míticos e sagrados (Santos, 1993: 45). ” Leda Martins (1997: 146-147) afirma, a respeito das Congadas, manifestação ritual de origem banto, que: “a palavra adquire uma ressonância singular, investindo e inscrevendo o sujeito que a manifesta ou a quem se dirige em um ciclo de expressão e de poder. No circuito da tradição, que guarda a palavra ancestral, e no da transmissão, que reatualiza e movimenta no presente, a palavra é sopro, hálito, dicção, acontecimento e performance, índice de sabedoria. Esse saber torna-se acontecimento não porque se cristalizou nos arquivos da memória, mas, principalmente por ser reeditado na performance do cantador/narrador e na resposta coletiva [...] muito similar à sua investidura nos rituais nagô”.

“Nesse mundo de sons, os textos, falados ou cantados, assim como os gestos, a expressão corporal e os objetos-símbolo, transmitem um conjunto de significados determinados pela sua inserção nos diferentes ritos. Reproduzem a memória e a dinâmica do grupo, reforçando e integrando os valores básicos da comunidade, através da dramatização dos mitos, da dança e dos cantos, como também nas histórias contadas pelos mais velhos como modelos paradigmáticos (Barros, 2000).”

12 Em Ayom Lonan.O caminho dos tambores, mestre Obashanan com-

pila os toques ritualísticos comuns na tradição keto-nagô e descreve seus usos, funções e significados:

foribalé, igbim, barravento, kakaká- umbó, avamunha/arrebate, sató, alujá, okelê, batá, opanijé, adarrum, ilú ou daró, também chamado de quebra- pratos, adabi, tonibobé, ijexá, aguerê, bravum, korin ewê, além de runtó e bravum, ritmos de tradição fon, to- ruá, de tradição indígena, cabula e congo de ouro, de tradição banto.

A boca, por meio da fala, organiza o mundo – um legado dos ancestrais, movimento que mobiliza, atua e faz atuar. A palavra, proferida em todos esses momentos, e no mais banal cotidiano, tem força de realidade. Se não for lançada às alturas, não será ouvida. Da boca, também saem o hálito e a saliva, como vimos no “mito da criação dos homens”. Esses elementos integradores fazem a ligação direta com os deuses, compondo o oxu, como vimos. Ritmos e timbres do canto mostram que “o que no corpo e na voz se repete é uma episteme (Martins, 2002: 72)”.