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Para Victor Frankenstein Natal/RN, 21 de junho de 2017.

Caro Victor,

Tenho estudado com afinco referenciais teóricos que me instigam a interpretar as ciências como um processo dinâmico da cultura, cujas reverberações éticas podem ser diversas. Assim como você já fez um dia, tenho me debruçado sobre produções intelectuais, manchetes de jornais, notícias e textos de divulgação científica que me permitam compor um mosaico de ideias para pensar bem sobre ética e cultura científica.

Como um detetive, venho tentando interpretar as informações que coletei para montar esse mosaico de ideias. O mergulho teórico experimentado foi tão profundo que agora com os

olhos injetados de sangue, como diria Melville (apud DELEUZE, 1992, p. 129), sinto a

necessidade de retornar à superfície, inserir em contexto as informações e pistas que encontrei, lapidar essa imersão em reflexões críticas e consistentes.

Para proceder a essa lapidação conto com a sua ajuda. Penso que você como cientista experiente e que já sofreu na pele com as reverberações do seu próprio fazer científico pode me ajudar a delinear uma crítica mais refinada. O objetivo dessa carta é, portanto, nutrir reflexões sobre a noção de ética científica e sua seminal indissociabilidade da cultura científica.

O desejo de construir uma reflexão nesse sentido nasceu durante o próprio processo de imersão teórica, durante o qual me deparei com narrativas de práticas científicas que provocaram em mim sentimentos de horror e asco, ouso dizer até que similares aos que você sentiu no dia em que a Criatura ganhou vida. Apesar disso, compreendo que um pensamento consistente sobre a natureza ética de práticas científicas requer uma boa sustentação teórica, por isso retorno a questões que considero basilares: O que é ética científica? Para que serve?

“Há uma “ética da ciência”? Ela mudou ao longo da história?” (MARTINS, 2015, p. 721). Não me entenda mal! Não ousaria propor respostas pontuais para essas questões. Minha intenção é recrutar argumentos que instiguem a produção de interpretações problematizadas em cenários e práticas científicas situadas em diferentes contextos. Na minha acepção, uma forma interessante de começar a abordar essa discussão é da perspectiva negativa, pensando sobre o que não seria ética.

Concordo com a filósofa espanhola Adela Cortina quando ela afirma que “ética não é um catálogo de proibições. Não se resume a uma relação de ordens negativas, nem mesmo uma

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Na minha ótica, refletir sobre sensações dessa ordem implica direcionar o olhar para questões fundamentais como, por exemplo, “por que aqueles que sonham com o avanço da ciência e da tecnologia geralmente veem na ética um inimigo a ser abatido mais que um aliado com o qual trabalhar lado a lado? (CORTINA, 2007, p. 33, tradução minha).

Penso que o caráter puramente normativo – de regular, aprovar ou reprovar pesquisas – contribui, em parte, para que a ética seja vista como um obstáculo a ser vencido no processo de produção das ciências. Talvez a sensação de alívio experimentada após um projeto aprovado seja tão avassaladora que faz a ética parecer uma ação pontual e não uma atitude que precisa estar enraizada no pensamento e na investigação científica.

Essa reflexão me fez retomar sua trajetória de pesquisa científica. Lembro-me bem que você fez uma imersão intensa em conhecimentos específicos das ciências naturais, mas não chegou a debater ou mesmo expor para a comunidade acadêmica (ou qualquer outra pessoa) suas aspirações de pesquisa, talvez por medo de repreensões a uma ideia que você considerava genial. Como resultado disso, você precisou lidar com uma responsabilidade tardia, ou seja, com resultados e consequências de ações já praticadas.

Imagine agora um cenário distinto. E se você tivesse tido acesso a espaços que, para além de discutir sobre conhecimentos específicos das ciências, problematizassem debates sobre fundamentos filosóficos, éticos e epistemológicos do fazer científico? Veja bem, não se trata de lamentar o ocorrido ou mesmo de reviver águas passadas, mas de pensar a potência desses espaços na germinação de reflexões a priori sobre implicações sociais, políticas, econômicas e éticas de uma investigação científica. Nunca saberemos se isto mudaria em algo suas ações, mas é certo que você teria tido mais elementos para fundamentar suas escolhas investigativas.

Um ponto de partida para guiar discussões dessa natureza é a noção de ética. Para pensá- la, ofereço aqui não uma, mas um coletivo de noções que recrutei na leitura de diferentes textos e considero um pertinente substrato nutritivo para pensar na contracultura instaurada de ética como freio/obstáculo à atividade científica:

A ética (...) está a favor do que redunde em bem para os seres humanos e, portanto, é um impulso para a investigação (CORTINA, 2007, p. 33, tradução minha).

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A ética é um impulso para tudo que empodere os seres humanos, é o saber sobre o que nos torna mais justos e mais felizes (CORTINA, 2007, p. 34, tradução minha).

Uma ética da integridade nas ciências, reatualiza valores antigos, reduz as intolerâncias, alimenta permanente metamorfose das formas reais ou imaginárias que nos permitem dialogar com o mundo (ALMEIDA, 2017, p. 18, texto inédito).

A ética não se reduz a um conjunto normativo e nem a uma mera ação comunicacional. Constitui um fundamento ontológico que impede a qualquer ser humano praticar intencionalmente o mal e o força a exercitar o diálogo intercultural e a fazer o bem (CARVALHO, 2012, p. 137).

Na minha acepção, essas noções podem nutrir interpretações de ética como uma atitude que, além de indissociável da prática científica, precisa se metamorfosear diante de diferentes contextos sociais, históricos, culturais e políticos. Sob essa guia, a ética enquanto atitude inerente ao fazer científico muda (ou pelo menos deveria mudar!) para comportar as reflexões, debates e ideias que emergem, reciclam ou atrofiam no curso do tempo.

Concordo com o professor Edgar Carvalho que “se os humanos, simultaneamente sábios e loucos, vivem de acertos e erros, sucessos e insucessos, avanços e retrocessos, julgamentos éticos devem ser sempre colocados entre parênteses” (CARVALHO, 2012, p. 136). Colocar entre parênteses implica, nesse contexto, problematizar, inserir em contextos posicionamentos e julgamentos éticos.

Isso me leva a pensar que talvez não exista uma ética das ciências no singular, exista simplesmente ética – atitude que deve permear, de modo permanente, o fazer científico e instigar reflexões constantes sobre sua natureza e múltiplas reverberações. Nesse sentido, concordo com os argumentos de Gonzales e Duarte de que

colocar em debate a ética na produção do conhecimento é colocar em questão as formas e modelos de verdade que praticamos e estabelecemos em nossos estudos acadêmicos. Por outro lado, é se perguntar como desenvolvemos determinados pensamentos teórico-conceituais em detrimento de outros, em que condições se produz determinado conhecimento e em que agenciamentos políticos esses saberes- conhecimentos se inscrevem. É indagar ainda como estamos formulando e prescrevendo modos de se viver a partir de nossos estudos e práticas acadêmicas (GONZALES; DUARTE, 2012, pp. 106–107).

Penso que essa pode ser uma função primordial da ética: oferecer aos sujeitos possibilidades de questionar a si próprio e ao coletivo os fundamentos éticos que legitimam, norteiam e subjazem certas formas de produzir ciências, de pensar, agir e se posicionar no mundo. Não pense que apenas isso garante o exercício da ética! Perceber-se como sujeito ético é um processo. Uma tomada de consciência gradual.

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ninguém se torna ético ao realizar pesquisas. O compromisso ético surge a partir do momento em que o pesquisador se reconhece como cidadão integrante de uma coletividade e tenha consciência de que os resultados de suas pesquisas afetarão a sociedade (SOUZA, 2012, p. 36).

Reconhecer-se como parte do coletivo implica tomar para si a responsabilidade, o

compromisso e o cuidado do outro, atitudes apontadas por Luis Radford (2017a) como vetores

de uma ética comunitária. Atitudes dessa natureza carregam em si a potência de gestar formas críticas de pensar, agir e se posicionar diante do Outro e do mundo fundadas em propostas de colaboração humana não egoístas e utilitárias porque pautadas no interesse de exercitar o bem comum, a justeza de ações e o diálogo.

Sei que a paixão pelas ciências era seu guia e acredito de fato que o deveria ser para qualquer pesquisador! Assim como Edward Wilson (2015) e Carl Sagan (1995) penso que é vital manter acesa e alimentar essa paixão enquanto ela dure. Entendo que alimentar a paixão pelo que pesquisamos envolve se estender dos saberes específicos aos fundamentos e implicações éticas de seu desenvolvimento.

Não tenho o intuito de reabrir feridas, mas de pôr à mesa possibilidades de pensar sobre ética e conhecimento científico. Não sei como (ou mesmo se) essas reflexões repercutem para você, mas para mim escrevê-lo tem sido um exercício de problematização e organização de ideias. Um processo formativo de representar e colocar em movimento reflexões produzidas no curso das leituras teóricas e experiências vivenciadas.

Por hora despeço-me e finalizo essa carta ansiosa por sua resposta com novas provocações sobre as reflexões que o apresentei.

Um abraço e até breve,

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