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Para Victor Frankenstein Natal/RN, 10 de novembro de 2017.

Olá Victor.

Como tenho feito, desde que você aceitou tecer essa interlocução, registrei minhas inquietações, ideias e provocações nessa carta que tem por objetivo instigar um estreitamento do diálogo sobre ética e responsabilidade científica. Espero que esse manuscrito possa provocá- lo (quem sabe até a ponto de instigá-lo a reagir!) a pensar sobre esses temas. É uma esperança. Ou talvez só otimismo em excesso.

Para mim, por outro lado, foi uma boa estratégia de organização e construção de interpretações sobre experiências vivenciadas e leituras empreendidas. Faço minhas as palavras do Capitão Walton: – “com quanto interesse e simpatia não o lerei algum dia no futuro!” (SHELLEY, 2016, p. 49). Quem sabe até com mais maturidade intelectual e argumentos mais consistentes para defender os posicionamentos que o apresento.

Essa interlocução é uma retomada da nossa última conversa, a qual me deixou bastante inquieta. A ruminação das ideias que o apresentei me levou a uma inquietação: Como uma reflexão em torno da noção de ética poderia servir como fio condutor para pensar sobre responsabilidade científica? Você acha que a primeira fornece elementos para compreender e/ou exercitar a segunda?

Para dar forma a possibilidades de reflexão em torno dessa inquietação recruto aqui um argumento apresentado pela professora e antropóloga Conceição Almeida em uma palestra proferida em um evento científico. Na ocasião, essa pesquisadora defendeu que pensar sobre ética e integridade na ciência “supõe, necessariamente, uma autocrítica em relação as nossas concepções, convicções e às nossas próprias práticas científicas” (ALMEIDA, 2017, p. 1, texto inédito).

Sob essa guia, refletir sobre concepções e convicções de ética com as quais nos deparamos, sobre aquelas que nos entranham e são materializadas em formas de pensar e agir pode oferecer pistas para reconhecer a natureza e sustentação teóricas de posicionamentos éticos assumidos e interpretar seu lugar em nossas formas de pensar e fazer ciências.

No entanto, é importante lembrar que concepções/convicções éticas não são imutáveis. Como argumenta o físico Freeman Dyson “os padrões éticos dos cientistas precisam mudar à medida que o escopo do bem e do mal causados pela ciência muda” (1997, p. 200, tradução

Página | 55 minha). Você concorda? Penso, particularmente, que esse argumento do Dyson oferece sustentação teórica à nossa conversa sobre ética científica e mudanças no curso do tempo. Naquele momento e ainda agora continuo acreditando que a ética como atitude inerente ao fazer científico precisa mudar para acompanhar as diferentes reverberações de produtos e processos das ciências e permitir a produção de interpretações consistentes porque inseridas em contexto.

Mas como essas mudanças se expressariam, mais especificamente, na pesquisa científica? Me questiono (e aproveito para questioná-lo também) se, de fato, normatizações excessivas fazem o exercício da ética parecer uma atitude/postura pontual? Não sei se me expressei bem ao sugerir, em outro momento, que talvez o binômio aprovado/reprovação de um trabalho científico por uma comissão de ética ajudasse a gestar a sensação de que lidar com ética na prática científica é sinônimo de abater um inimigo.

Não me entenda mal, essa não é uma defesa da extinção dos comitês de ética. Longe de mim! É um esforço de pensar sobre a necessidade de reformulações. Para ampliar essa ideia recruto aqui o argumento do antropólogo e educador Edgar Carvalho (2012) de que a constituição desses órgãos deveria ser, essencialmente, transdisciplinar e multidimensional com um caráter marcado pelo tom consultivo, jamais de imposição, legislação.

Sob essa guia, a responsabilidade e tomadas de decisão em relação a ações praticadas e resultados produzidos seriam essencial e exclusivamente dos sujeitos responsáveis (CARVALHO, 2012). Nessa perspectiva, a responsabilidade deveria ser assumida como uma postura a priori. Para que você entenda melhor essa noção, reproduzo a seguir uma explicação de Edgar Carvalho:

“Não resta dúvida que a pesquisa, fundamental ou aplicada, pressupõe a responsabilidade incondicional dos sujeitos. É possível, porém, distinguir uma responsabilidade a priori, cuja natureza é, por essência, sócio-histórica. Ser responsável é assumir causas e consequências daquilo que se é e se faz. Por isso, envolve erros, acertos, desordens, reorganizações. Uma responsabilidade a posteriori prende-se às contingências que envolvem o ato da pesquisa, quando se é chamado a responder por consequências prejudiciais intencionais ou inintencionais, fato que necessariamente envolve julgamentos morais e jurídicos” (CARVALHO, 2012, p. 130, grifo do autor)

Operando sob essa lógica, você precisou lidar com a responsabilidade a posteriori e vivenciou, de forma dolorosa, as consequências da sua prática científica. Se retomássemos aquele cenário imaginário no qual você tivesse permeado espaços de debate sobre ciências, ética e responsabilidade científica, talvez você tivesse tido a oportunidade de lidar com uma responsabilidade a priori.

Página | 56 Você atravessa esse campo imaginativo para propor a reflexão sobre sua experiência de prática científica como fio condutor para nutrir formas de pensar, produzir ciências e lidar com a responsabilidade de ações praticadas. Lembro-me bem que você falou ao Capitão Walton: – “Aprenda comigo, se não pelos meus ensinamentos” (SHELLEY, 2016, p. 77). Isso faz muito sentido para mim! De fato, ruminar sobre experiências de prática científica e suas reverberações (inclusive a sua) me ajudou a perceber a necessidade, constante, de instigar debates sobre ciências, ética e responsabilidade científica nos diferentes espaços e estágios de formação.

Você resolveu tornar públicas as consequências de suas práticas no interesse de alertar o Capitão Walton sobre a linha tênue que existe entre ações e consequências. Suas palavras ainda ecoam na minha mente. Fecho os olhos e consigo ouvi-lo dizer:

Decidi, certa vez, que a lembrança desses males morreria comigo, mas você me levou a alterar minha decisão. Busca o conhecimento e a sabedoria, conforme eu mesmo já fiz uma vez, e espero ardentemente que a satisfação de seus desejos não se torne uma serpente que o pique, como aconteceu comigo (SHELLEY, 2016, p. 47).

Imagino que tomar essa decisão foi tão difícil quanto alterá-la. Admiro sua postura. Afinal, não seria também parte do trabalho do cientista expor consequências negativas de sua prática para oferecer à comunidade científica possibilidades de produzir reflexões e debates que, para além de emitir julgamentos, contribuam para evitar que consequências da mesma natureza se repitam?

Evitar que as curiosidades científicas se transformem em serpentes venenosas, ou seja, em consequências desastrosas implica tomar para si o exercício de uma responsabilidade a

priori que não é unilateral. Sobre isso, concordo com a filósofa da ciência Marisa Russo (2014)

que ética e integridade nas ciências pressupõe um movimento recursivo entre responsabilidade do cientista e responsabilidade coletiva. Em um argumento nesse sentido, a autora destaca:

Tornamo-nos mais responsáveis quando temos mais consciência dos atos que praticamos e de suas consequências. Deveríamos pensar não só em instaurar câmara de integridade de pesquisa, mas promover com maior frequência o debate sobre ciência, responsabilidade científica, garantindo a presença de cientistas, alunos, instituições, editores, juristas e também demais atores da sociedade (RUSSO, 2014, p. 196)

Já imaginou a potência formativa de espaços de debate dessa ordem? Na minha acepção, representam uma aposta na materialização de interpretações que estreitem o diálogo entre ética, responsabilidade científica e fazer científico. Esse tipo de debate precisa ser fomentado entre todos aqueles que trabalham com ciências, seja produzindo, ensinando, divulgando ou mais de uma dessas ações ao mesmo tempo (como, por exemplo, muitos professores de ciências).

Página | 57 Essa proposição parte da ideia de que comunicar ciências nunca é um processo neutro. Pelo contrário, sempre carrega as marcas das convicções e posturas de seu comunicador que podem, potencialmente, contaminar o Outro. Por que não usar essa contaminação a nosso favor? Outra questão emerge nesse cenário: Como a tessitura de reflexões sobre ética e responsabilidade científica contribuem para a formação e prática do professor de ciências em formação inicial ou continuada? Bem, esse é assunto para outra carta. Deixo-o com essa provocação e espero ansiosa sua resposta.

Um abraço,

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