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ÉTICA E DIREITOS HUMANOS

1. Ética e Direito: definições, convergências e divergências

No âmbito das ciências sociais e jurídicas, o Direito talvez seja a disciplina que possua uma maior proximidade com a ciência Ética. Esta proximidade, contudo, não implica numa coincidência total e plena. Ética e Direito não apresentam apenas pontos de convergências. Há também elementos de divergências. Isto já pode ser visto na análise etimológica dos termos utilizados e das definições a eles associadas.

1.1. Ética e Direito: definições

Os termos ‘Ética’ e ‘Direito’ possuem origem etimológica dife- rente. A primeira é grega, e tem como étimo o vocábulo êthos, que significa “modo de ser ou caráter”77. A segunda, derivada

da raiz latina directum, “significa reto, certo, correto, mais ade- quado”78. Conceitualmente, tais termos se prestam a interpre-

tações diversas e, exatamente por isso, qualquer tentativa de enquadramento destas interpretações em moldes objetivos não será feita sem grandes esforços.

De caráter filosófico ou não, diversos matizes tentam, a par- tir de métodos específicos, oferecer alguma definição de Ética. Uma definição amplamente aceite é a que pode ser resumida nas palavras de Adolfo S. Vázquez, para quem a “Ética é a ciên- cia do comportamento moral dos homens em sociedade”79. Os

que, à semelhança de Vázquez, consideram a Ética uma ciência reivindicam pelos menos três características básicas para ela ser admitida como tal: (1) um objeto próprio de estudo, (2) leis próprias, e (3) um método próprio.

Quanto ao método, embora esteja relacionado com os aspectos da sistematização e organização da dimensão teórica, a Ética se distingue claramente dos métodos utilizados no âmbito das ciências naturais, dado o seu caráter teórico-social. As leis pró- prias da Ética são, digamos, os imperativos decorrentes de seu enquadramento conceitual. Isto implica em concebê-la como uma disciplina normativa e, como tal, ela estabelece valores e princípios que devem nortear a vida e a existência humanas. Neste sentido, ela tem a pretensão de legislar sobre aquilo que “devemos fazer”.

77 – Santos, J. (2012). Introdução à ética (p. 39). Lisboa: Documenta. (Coleção Ethos e Polis, 2).

78 – Magalhães, J. (2010). Horizontes da ética: para uma cidadania re-

sponsável (p. 188). Porto: Edições Afrontamento.

79 – Vázquez, A. (1989). Ética, (11ª ed., p.12). Trad. de João Dell'Anna. Rio de

PAR TE 2 – ÉTI CA E D IREITOS HUMAN OS

O objeto de estudo da Ética é a moral. A moral que se consti- tui como objeto de estudo é definida a partir do étimo mores, e é concebida como costumes, ou seja, pelo conjunto de regras de comportamentos derivado do modo de viver ou formas de viver dos homens. Em outras palavras, a moral que é consi- derada objeto da Ética se define pelo conjunto de normas ad- quiridas pela repetição, pelo hábito. Sob este ponto de vista, a Ética seria uma ciência dos costumes e seu objetivo seria o de retirar dos fatos morais aqueles princípios gerais a eles aplicá- veis. Uma maneira simples de compreender esta relação seria a de admitir que a Ética se ocuparia com os conteúdos teóricos relacionados aos comportamentos humanos. Ocupar-se-ia, portanto, da reflexão sobre os fundamentos da moral, tal como esta foi aqui definida.

Embora predominante, esta maneira de conceber a Ética bem como a relação entre Ética e moral dela decorrente não é unâ- nime. Por um lado, há teóricos como Luc Ferry80, por exemplo,

que admitem que os termos ‘Ética’ e ‘moral’ são intercambiá- veis, não apresentando qualquer distinção. Um dos argumen- tos utilizados para sustentar este ponto de vista é o de que, eti- mologicamente, tanto ‘Ética’ quanto ‘moral’ possuem o mesmo significado, são sinônimos e, portanto, não há qualquer boa razão para distingui-los.

Por outro lado, há teóricos que, à semelhança de Kant, diferem radicalmente a Ética da moral. O ponto de partida desta argu- mentação é a ideia segundo a qual a moral trata dos princípios gerais do comportamento humano, enquanto que à Ética com- petiria a aplicação destes princípios. Neste sentido, a morali- dade se impõe como uma instância que precede (numa ordem lógica) a própria Ética.

A mesma complexidade que existe na busca por uma definição de Ética é encontrada também na tentativa de definir o que é o Direito. De fato, o Direito não é algo que pode ser definido facil- mente, e talvez seja por isso que nunca houve e (talvez) jamais haverá uma única definição fixa para ele.

Várias são as perspectivas usadas para se definir o Direito. Uma delas é a que decorre da perspectiva formal kantiana. Em sua obra A Metafísica dos Costumes, o Direito é definido como “o conjunto de condições por meio das quais o arbítrio de um pode estar em acordo com o arbítrio de um outro, segundo um a lei universal da liberdade”81. Para Kant, portanto, o Direito é o

que regula as relações entre indivíduos; é aquilo que possibilita a livre coexistência dos homens.

Compartilhando pressupostos semelhantes, outra definição bastante discutida é encontrada no âmbito do positivismo ju- rídico, que tem como um de seus principais expoentes Hans Kelsen82. Tendo como projeto a proposta de uma ciência do

Direito fundamentada em proposições normativas cuja lingua- gem fosse rigorosamente capaz de descrever o objeto do Di- reito, Kelsen define o Direito como “uma ordem normativa da conduta humana, ou seja, um sistema de normas que regulam

80 – Ferry, L. (2007). Aprender a viver: filosofia para os novos tempos (p. 31).

Trad. de Véra Lucia dos Reis. Rio de Janeiro: Objetiva.

81 – Kant, I. (2003). A metafísica dos costumes (p. 407). Trad. de Edson Bini.

São Paulo: Edipro.

82 – Cf., sobretudo, a sua grande obra Teoria pura do direito (Kelsen, H. (1998). Teoria pura do direito (6ª ed.). Trad. de João Baptista Machado. São

Paulo: Martins Fontes).

o comportamento humano”83. Desta perspectiva, o caráter de

tais normas se instauraria como “o sentido de um ato através do qual uma conduta humana é prescrita, permitida ou, espe- cificamente, facultada”84. Assim concebido, o Direito é carac-

terizado apenas como fato, mas não como um valor. Não seria nada além de uma simples “ordem de conduta humana”85.

Uma vertente ligeiramente modificada da definição de Direi- to no positivismo kelseniano é a defendida por Herbert Hart86.

Trata-se de definir o Direito sob uma perspectiva positivista, mas com objetivos hermenêuticos. A diferença de uma postura para outra consiste, neste caso, no fato de que sob este novo pressuposto os aspectos linguísticos são considerados determi- nantes para a compreensão e o exercício do Direito. De fato, para Hart, o Direito seria concebido como um fenômeno cul- tural, constituído necessariamente pela linguagem. A ênfase dada por ele ao fenômeno linguístico está no uso da linguagem normativa como o segredo para que se compreenda a norma- tividade do Direito87.

De modo menos filosófico, Dimitri Dimoulis88, considerando

alguns aspectos importantes, propõe outras definições do Di- reito. Para ele, o Direito pode ser concebido: (1) como aquilo que “é o justo, aquilo que a pessoa deve fazer ou deixar de fazer”; (2) como “aquilo que alguém pode fazer, exercendo uma faculdade [...] e exigindo uma prestação [...] ou uma omissão”; (3) como sendo “o estudo das normas jurídicas”; e (4) como “o conjunto de normas que objetivam regulamentar o comportamento das pessoas na sociedade”.

A definição (1) destaca o aspecto deontológico do Direito, con- siderando-o como um dever, como um mandamento. A (2) des- taca o aspecto subjetivo do Direito, destacando a capacidade e limites de um sujeito de Direito enquanto um ser racional. A terceira ressalta o aspecto técnico-acadêmico, pois nela o ter- mo ‘Direito’ denota o conjunto das disciplinas ligadas direta ou indiretamente ao âmbito jurídico. A última salienta o aspecto objetivo do Direito, cujas normas objetivas são promulgadas por autoridades competentes e descritas num código. Neste caso, compete à tais autoridades prever, em caso de violação, a imposição de penalidades e punições. Deste ponto de vista, portanto, o Direito é o que está em conformidade com a norma positivada.

1.2. Ética e Direito: convergências e divergências

Quem exigir rigorosidade nas definições dadas às coisas, certamente ficará frustrado em saber que, de fato, Ética e Direito são conceitos que não são (pelo menos ainda) pas- síveis de uma definição fixa. Sem discorrer sobre o mérito desta questão, é certo que uma taxonomia conceitual da Éti- ca e do Direito como a resumidamente apresentada acima poderá nos servir de base para a abordagem das convergên- cias e divergências entre estas disciplinas.

83 – Kelsen, 1998, p. 5. 84 – Kelsen, 1998, p. 6. 85 – Kelsen, 1998, p. 33.

86 – Hart, H. (1994). O conceito de direito (3ª ed.). Trad. de A. Ribeiro Mendes. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkinan.

87 – Rocha, L. (1998). Epistemologia jurídica e democracia (p. 95). São Leo- poldo: Unisinos.

88 – Dimoulis, D. (2013). Manual de introdução ao estudo do direito (5ª ed., pp. 20-21.). São Paulo: Editora Revista dos Tribunais.

PAR TE 2 – ÉTI CA E D IREITOS HUMAN OS

Há muitos pontos de convergência entre a Ética e o Direito. Considerá-los na sua totalidade é pouco provável e fugiria aos propósitos aqui pretendidos; por isso, trataremos apenas qua- tro deles, que julgamos serem os mais relevantes89.

Inicialmente, destacamos o fato de a Ética e o Direito constituí- rem âmbitos normativos. Quer isto dizer que tanto um quan- to o outro ordenam e organizam as relações interpessoais por meio de normas. Entretanto, convém ressaltar que, como era de se esperar, o caráter normativo reivindicado nestes âmbitos não se revela como simples recomendações ou meras suges- tões. Por isso, em segundo lugar, tais âmbitos são constituídos por normas estritamente imperativas, isto é, normas que pos- suem um forte teor deontológico e que, por isso mesmo, recla- mam para si o dever de serem seguidas e obedecidas.

Em terceiro lugar, por causa deste aspecto deontológico, tanto a Ética quanto o Direito convergem no importante papel que de- sempenham no processo de estabelecimento da coesão social. De fato, ambos os domínios se apresentam como um cimento que garante certa harmonia na complexa conjuntura da socie- dade, sobretudo quanto à resolução de conflitos intersubjetivos. Por fim, por estarem diretamente ligados ao desenvolvimento histórico da sociedade humana e à organização da vida social como um todo, o Direito e a Ética passam por determinadas mudanças, chegando até a alterarem o modo como devem desempenhar as suas respectivas funções sociais. Em outras palavras, ainda que seja possível enxergarmos elementos imu- táveis, tanto a Ética quanto o Direito sofrem alteração porque são modelos históricos de ordenação dos comportamentos hu- manos individuais e intersubjetivos.

Ao considerar, porém, o conjunto de semelhanças entre o Di- reito e a Ética, percebemos que ele não garante a isenção de divergências. A primeira delas é a de que o campo da Ética é muito mais abrangente do que o campo do Direito. Se fôssemos representar em formas de círculos concêntricos, o Direito seria um círculo menor do que o da Ética. Quer isto dizer que a Ética abrange um campo muito mais amplo das relações humanas do que o campo do Direito.

Uma segunda diferença que pode ser apontada é a de que a Ética é anterior ao Direito, considerando no caso do Direi- to enquanto instância positiva inscrita num código público. Se olharmos para as sociedades antigas, não será difícil de se constatar que, mesmo aquelas civilizações que não possuíam um Direito positivo, sempre defendiam determinados princí- pios éticos que ordenavam e organizavam a vida social. Neste sentido, pode-se dizer que o Direito é fruto de uma maturidade humana decorrente de diversas situações de conflitos existen- tes no convívio intersubjetivo.

Outra notável diferença é a que se pode verificar quando se olha o escopo de atuação da Ética e do Direito. Neste caso, nota-se que o Direito é necessariamente estatal, enquanto a Ética não é determinada por este âmbito político, circunscrito geograficamente. Dentro de um mesmo ordenamento jurídico, podemos ter vários e diferentes princípios éticos.

Por fim, Ética e Direito se distingue também pelos aspectos in- terno e externo da coação e das sanções que ocorrem nos seus

89 – Os tópicos aqui apresentados são discutidos mais pormenorizada- mente por José Naline (Cf. Naline, J. (2016). Ética geral e profissional, (13ª ed., pp. 205 – 211). São Paulo: Editora Revista dos Tribunais).

respectivos âmbitos. A coação e a sanção no âmbito da Ética são de caráter interno, enquanto que as no âmbito do Direito possuem um caráter eminentemente externo. Quer isto dizer que, se, por um lado, o descumprimento de determinadas nor- mas ou preceitos éticos pode redundar apenas em remorsos que afetam apenas (e internamente) a consciência do sujeito praticante da ação, por outro lado, a infração de alguma norma ou preceito jurídico poderá implicar em severas sanções sob a forma externa de prisão, por exemplo. Basta desejar algo que não seja eticamente bom para que o preceito moral seja repro- vável. Contudo, o simples fato de desejar algo ilegal não é sufi- ciente para que alguém seja punido com uma sanção externa.