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EM TORNO DOS VALORES DA OBRIGAÇÃO E DO

2. Um pouco antes do final da obra Ética de la razón cordial,

publicada em 2007, Adela Cortina diagnosticava o seguinte:

Nos últimos tempos, os educadores - mestres e pais - sen- tem-se particularmente impotentes para transmitir valores e conhecimentos, isto dentro dum ambiente de constante desinteresse, dum alto grau de violência em múltiplos sec- tores e de difícil empatia entre alunos e filhos, que parecem ter projetos de vida cada vez mais díspares ou, até mesmo, nenhum projeto de vida. (2007, p.248)

No contexto desta preocupação, a autora propõe uma filoso- fia da aprendizagem, da inteligência por certo, mas que não descura, ao bom modo aristotélico, a educação do desejo, da vontade de cada ser humano, contribuindo aquela para o de- senvolvimento de uma boa formação do caráter. O analfabe- tismo emocional que se torna visível em condutas e compor- tamentos cada vez mais agressivos, violentos, muitas vezes pueris, é um sinal de que a educação das emoções, o modo como sentimos e o modo como aprendemos a sentir, é deve- ras importante para conduta moral55. Adela Cortina destaca o

papel fundamental que pais, professores e mestres têm nesse

55 – Segundo Cortina: “O analfabetismo emocional é uma fonte de condu- tas agressivas, antissociais e antipessoais, que infelizmente se vão multi- plicando nos mais distintos países, desde a escola e da família ao futebol, a delinquência, a destruição e o terrorismo. Por isso é urgente recuperar essa educação que é, não somente a das habilidades técnicas, mas também a das habilidades sociais: saber organizar a própria vida tendo como objetivo a fe- licidade é tarefa, não da razão demonstrativa, mas da inteligência sentiente, que é, afinal, inteligência prudencial.” (Cortina, 2007, p. 250)

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contexto, porque uma boa educação da inteligência e dos sen- timentos ajuda a preparar cada ser humano para a vida quo- tidiana, assente em valores. Na sua conceção de uma razão cordial, pensada à altura dos tempos, cada ser humano, crian- ça, jovem ou adulto, tem de saber adquirir paulatinamente a experiência degustativa dos valores morais, na metáfora de que esses valores são como uns óculos especiais que auxiliam cada um de nós a perceber e a examinar melhor a realidade. Esta ideia da degustação dos valores morais, ideia que pressu- põe uma praxis, introduz a defesa do caráter experiencial da razão e do sentimento humanos, ambos servindo para um me- lhor “acondicionamento” do ser humano à realidade através do reconhecimento dos valores morais. Esta é uma ideia franca- mente aristotélica, uma tradição que Cortina retoma dos seus mestres hispânicos: José Ortega y Gasset, José Luís Aranguren e, neste contexto, sobretudo, de Xavier Zubiri. Para este último autor, todos os seres humanos são dotados de uma estrutura moral; não existem seres humanos amorais, fora do bem e do mal, somente seres humanos morais ou imorais. A partir dessa estrutura há todo um trabalho de apropriação “humana” que o homem leva a cabo na escolha de várias possibilidades. É preciso dar conteúdo ou conteúdos a essa estrutura moral e, por esse motivo, o homem é um animal de possibilidades. É a partir delas que este faz escolhas, que muda ou que recua, que se constrói ou destrói, que prefere o bem ou o mal, definindo a sua realidade, o seu mundo, sem que possa afastar-se desse referente moral.56 Zubiri estava reticente quanto à solidão do

homem do século XX, e diríamos hoje do século XXI, ou seja, quanto à clausura humana numa pretensa independência de ações, particularizando cada vez mais os resultados e conse- quências das suas possibilidades. Essa pretensa independên- cia, que cada um reconhece a si mesmo, permite um constante fugir de si mesmo, do mundo e até de Deus, refere Zubiri (1974, p. 31). Perante o caráter superficial e provisório de que se re- vestiu a vida das mulheres e dos homens contemporâneos, na qual a valorização do que é imediato e supérfluo, do que é re- lativo ou particular às nossas vidas, toma a dimensão de abso- luto, é preciso parar um pouco e pensar, perguntando: se nada devemos a ninguém, nem a nós próprios, nem ao mundo, nem a Deus, perante quem nos devemos ainda sentir obrigados? Perante quem, pergunto, e não somente perante o quê. Nos Cadernos do Círculo Cívico de Opinião Espanhola, publi- cados em 2012, e no espírito da questão anterior, Adela Cortina asseverou que: “palavras como obrigação, dever, responsabili- dade são palavras malditas numa cultura como a nossa, empe- nhada em enganar os jovens e os adultos e em fazê-los crer que a grande finalidade da vida é o bem-estar.” Nesse apagamento de outras finalidades vitais que não estejam apenas votadas ao bem-estar individual, vamos paulatinamente descurando que

56 – Tal como defende Xavier Zubiri no seu ensaio sobre o homem, mais es- pecificamente no capítulo dedicado à moralidade enquanto estrutura física e social do ser humano, “A virtude ou a ciência, por exemplo, não são dons que o homem tem pela sua natureza, tal como o talento ou a estatura, ou a cor natural dos olhos. No homem, antes da sua decisão livre há talento, mas não há virtude nem ciência; é “sujeito de” talento e de cor, mas não é “sujeito de” virtude ou de ciência. Virtude e ciência são somente duas possibilidades da vida e da realidade humana, ao contrário de outras como o vício e a frau- de. Para “tê-las”, o homem tem de escolher entre essas possibilidades e delas se apropriar.” (Zubiri, 1986, pp. 343-344)

“obrigação e responsabilidade são dois termos tão essenciais no dicionário que nos torna humanos que apagá-los da nossa linguagem é renunciar à humanidade.” (Cortina, 2012, p. 18). O texto no qual se encontra registada esta convicção, intitula-se “Elogio de la obligación: no hay democracia posible sin cultura de la obligación” e a sua finalidade é precisamente a de chamar a atenção dos leitores de que passamos por uma crise ética que exige de nós respostas, soluções e resoluções. Não basta indig- narmo-nos e dizer: está mal! Não é certo! É injusto! É preciso para além dessa indignação agir, fazendo o que está bem, e o que é justo a dada altura fazer.

Esta atitude transformadora assenta pois numa cultura da obrigação, a qual pressupõe duas vias distintas, mas comple- mentares entre si: a obrigação legal e a obrigação moral. Em primeiro lugar, Cortina fala das obrigações legais. Para que uma democracia funcione verdadeiramente é preciso que as instituições e as pessoas que as integram sejam justas e para que tal aconteça é necessária a promulgação de “leis comuns, bem claras e concretas” (Idem, p. 18) que condenem sem pru- ridos, em primeiro lugar, a corrupção; depois, a gestão erró- nea dos bens públicos para fins privados; a seguir, a falta de transparência de alguns partidos políticos na angariação dos seus patrocinadores e na escolha dos seus membros; em se- guida, o mau funcionamento de algumas entidades econó- micas e financeiras que tomam em sua defesa o princípio da neutralidade axiológica das suas atividades; e, por último, mas em sentido positivo, que assegurem a independência dos tri- bunais de justiça em relação ao poder legislativo e ao poder executivo57. Este clima de confiança nas leis nacionais e euro-

peias poderá ser capaz de gerar um clima de cooperação mais alargado entre os povos e, sobretudo, das pessoas entre si. Se o incumprimento das normas se generalizar, desde “a Adminis- tração pública, aos membros do governo e da oposição, depu- tados e senadores, tribunais de justiça, entidades financeiras, partidos políticos, meios de comunicação, grandes empresas, universidades e hospitais” (Idem, p. 20), a situação desta crise ética agudizar-se-á, pois quem deve primar por um exemplo de cidadania e por um resultado efetivo da sua ação para o bem comum, não o faz.

Tanto o político, como o deputado, como o juiz ou o médico, são pessoas e cidadãos, e se a sua ação individual não se ins- pirar numa ação coletiva, dentro de um quadro de valores co- muns, qualquer ética profissional ficará certamente sem efei- to, assim como o capital social que cada atividade pode gerar. Por esse motivo, e para além das obrigações legais, temos de trabalhar sobre e a partir das nossas obrigações morais, sendo

57 – Quando esteve em Portugal como filósofa residente 2013 do Instituto de Filosofia da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, Adela Cortina salientou numa entrevista ao jornal Público que: «Esta crise surgiu da imo- ralidade pura e dura. Não se trata de, como dizem os economistas, estarmos a atravessar um mau ciclo, mas de mentira, fraude, corrupção e das suas consequências. Veja o subprime nos EUA. Alguém se deu conta de que aqui- lo não valia nada, e, em vez de o reconhecer, passou a vender as ações, ga- rantindo que ninguém soubesse o que se estava a vender. Isso é enganar. E há pessoas que são moralmente responsáveis por isso. A forma como atuam os bancos, como se incentivou as pessoas a contraírem hipotecas, tudo isso se deveu a seres humanos que não atuaram como deveriam. Essa é a dimen- são ética da crise.» CORTINA, Adela, «Acabar com o Estado social é levar a Europa ao suicídio», Público, 20 de abril de 2013, pp. 12-13.

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elas o sustento de um verdadeiro reconhecimento do valor de si e dos outros. Ainda que possa deliberar sobre as leis claras e concretas a que a sociedade, por ser sociedade, me obriga; ou que possa confiar no poder de deliberação das pessoas que me representam, há um pilar moral que não posso jamais descui- dar: os valores morais que sustentam a construção do caráter, de um êthos educado e educável, na relação consigo mesmo. Com estas duas últimas expressões, educado e educável, que- ro defender duas coisas. Se, por um lado, o que eu sou é fru- to da educação a que fui “sujeita”, dos meus pais, professores, mestres e amigos, inspirando-me no seu exemplo (educado); por outro lado, não posso descurar a faceta educável, ainda por inaugurar, do meu próprio caráter. Quero aqui reforçar a ideia antropológica, filosoficamente proposta, de que o meu caráter não está feito, acabado, está sim em permanente cons- trução, edificação, sujeito a possíveis desmoronamentos e a posteriores reconstruções. Quando saímos da Escola podemos estar prontos para a vida ativa, mas não estamos certamente prontos para a vida quotidiana. Podemos ser bons funcioná- rios e até, por vezes, bons profissionais, mas a nossa condu- ta pode permanecer igual, diminuída, não roçando sequer de longe a capacidade para se ser uma boa pessoa, uma pessoa justa, que vive de acordo com a integridade dos valores mo- rais, e tornando sua essa mesma integridade.

Aqui deslocamos a nossa atenção para a via da obrigação moral. A este respeito, Adela Cortina salientou, no texto que estamos a tratar, que devemos “assumir a tarefa de refletir a sério e em voz alta sobre quais são esses mínimos de justiça que quere- mos partilhar e promover nas nossas formas de vida.” E isto sem renunciar jamais “à autêntica liberdade, que consiste em assumir as responsabilidades de justiça que lhe correspon- dem.” (Idem, p. 23) No início desta reflexão, lembrei as palavras de Albert Camus sobre a necessidade de reconhecer a existên- cia de valores morais reais capazes de trazer valência a nós e ao mundo que habitamos, até porque o desafio mais impor- tante para a geração de Camus, e também de Hannah Arendt, não era o de assistir à renovação do mundo, mas o de impedir que o mundo se desfizesse. Da geração destes dois filósofos para a nossa, a situação não se manteve, agravou-se. Se a vida privada e pública, de há uns tempos para cá, veio descuran- do a personificação de valores morais como a autoridade e a obrigação, a tradição e a responsabilidade, degradando o seu sentido para a vida moral, cabe-nos a nós, hoje, enquanto ha- bitantes mortais deste mundo, recuperar a importância dessa valoração ainda que, num primeiro passo, comecemos pelo nível individual. Fazemo-lo contudo com os olhos fitos num outro amanhã que não se fará ou refará sem integridade moral ou o mesmo é dizer sem a altura da dignidade humana, impor- tantíssimas como referencial ético para a ação política.