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Histeria O termo histeria foi usado para designar sintomas neurológicos e somáticos crónicos e

1.1. Útero migrante?

Dos artigos e livros consultados com a palavra-chave “histeria”, encontrámos treze artigos e cinco livros com a ideia de que o conceito de histeria remonta aos egípcios, deparando-nos com a primeira lenda: os médicos egípcios teriam dito que a histeria resultava da migração uterina (Black, Seritan, Taber, & Hurley, 2004; Bowman, 2006; Briggs, 1921; Catonné, 1992; Chodoff, 1982; Crimlisk & Ron, 2001; Devinsky, 1998; Gordon et al., 1984; Heinrich, 2004; Kihlstrom, 1994; Micale, 1990b; Micklem, 1996; Ng, 1999; North, 2002; Okasha, 2005; Pilowsky, 1996; Pinto, Ramos & Coelho, 2004). O livro de Ilza Veith (1965) parece estar na

origem da lenda egípcia.

Para analisar esta primeira lenda, estudámos as traduções mais conceituadas dos textos egípcios antigos. Começámos com o papiro de Kahun que é um dos textos mais antigos sobre ginecologia na história da civilização (Figura 5). Este papiro remonta à XIIª ou XIIIª dinastia, cerca de 1900 a.C., correspondente ao reinado de Amenenhat II (Rawlinson & Gilman, 1886).

Foi descoberto em 1889 por Flinders Petrie em Fayum, Egipto. Os rolos

sobreviventes, ainda que incompletos, fornecem-nos uma compreensão da prática dos médicos egípcios. O texto ginecológico divide-se em trinta e quatro parágrafos, alguns Figura 5. Papiro Kahun da XII ou XIII dinastia. Retirado de “The Petrie Papyri: Hieratic Papyri from Kahun and Gurob (principally of the Middle Kingdom)”, de F. L. Griffith,1898, Londres: Bernard Quaritch, Pr. V, pp. 1, 2.

sobre infertilidade, gravidez, métodos de contracepção e de melhoria da concepção, complicações do parto e perturbações reprodutivas (Griffith, 1898). Nestes textos, várias perturbações parecem derivar de problemas do útero:

Prescription No. I: (1) Treatment (?) for a woman [whose eyes ache, who sees not (?); and has pain in the neck. (2) Thou shalt say as to it: it is dejectiones uteri in oculis suis. Thou shalt do for it (thus): fumigate her on incense and fresh fat; suffi his vulvam ejus: fumigate her eyes with the shanks of the legs of bee- eaters (Merops): thou shalt make her eat the liver of an ass, raw.

Prescription No. VI: Treatment for a woman aching in all her limbs, with pain in the sockets of her eyes. Thou shalt say as to it: it is starving of the uterus, it has not happened to it to drink; [it is] without food entirely (or likewise), as one who has recently given birth (or with recent bearing ?). Thou shalt do for it (thus): a packet (?) of ah in water, drink [four ?] mornings. Prescription No. VII: Treatment for a woman pained in her neck, her abdomen and her ears, in that she does not hear speech. Thou shult say as to it: it is terrors (spasms, violence ?) of the uterus. Thou shalt do for it (thus): like that medicine of curing sehau of the uterus. (Griffith,1898, pp. 6-7, pr. V) 9

De acordo com Veith (1965), essas perturbações são histéricas e devem-se ao deslocamento do útero. Esta interpretação foi, no entanto, contestada (Merskey & Potter, 1989). Voltaremos a este debate mais à frente.

O papiro Ebers, um dos textos mais bem conservados, foi escrito por volta de 1500 a.C, aparecendo à venda em Luxor em 1862. Foi comprado novamente em 1872 pelo egiptólogo Georg Ebers. O papiro Ebers contém cento e dez páginas e é o papiro médico mais longo (Ebbel, 1937, Figura 6). No capítulo “Doenças das mulheres” são descritos casos de útero deslocado e as terapêuticas consistem em repeli-lo para o seu

Figura 6. Parte do papiro Ebers referente às doenças do útero. De “Papyrus Ebers. Hermetisches Buch von der Arzneilehre der alten Ägypter”, 1898, Universitätsbibliothek Leipzig, pr. XCIII. Cortesia do Prof. Dr. Reinhold Scholl, director da Biblioteca da Universidade de Leipzig, e reimpresso com a sua autorização.

9 “Prescrição n.º I. Tratamento de uma mulher [cujos olhos doem], ela não consegue ver e tem dores no

pescoço. Deve dizer em relação a isso: é uma descarga do útero nos seus olhos. Deve fazer-se: fumigar com incenso e gordura fresca, fumigar o seu útero com isso, fumigar os seus olhos com gordura da perna de melharuco, deve levar-se a que ela coma fígado (?) cru de burro. Prescrição n.º VI. Tratamento de uma mulher com dores em todos os membros, com dores nas órbitas dos olhos. Deve dizer em relação a isso: é fome do útero que não bebeu, [está] totalmente sem comida, como um que deu à luz há pouco tempo (ou com gravidez recente?). Deve fazer-se: um pacote (?) de ah em água e beber (quatro?) manhãs. Prescrição n.º VIII. Tratamento de uma mulher com dores no pescoço, abdómen e ouvidos, de modo que não consegue ouvir a fala. Deve dizer em relação a isso: são terrores (espasmos?) do útero. Deve fazer- se: como a medicina de cura do sehau do útero.”

lugar com bebidas de gosto desagradável ou a atraí-lo com fumigações vaginais ou com ervas com propriedades calmantes.Vejam-se os dois exemplos seguintes:

N.º 789-791, 793-794. Remedy to let the uterus of the woman return to its place: Pine saw-dust; added to dregs; a tile of cloth [padding]10 is smeared with it; you should let her

sit on it ... [rock oil (?)], left to stand in honey; the pubic region of the woman is smeared therewith ... [oakum-tar (?)] existing on the wood of a boat; rubbed in lees of excellent beer. Cause her to drink it ... dry [human] excrement; added to terebinth-resin; the woman is fumigated therewith and the fumes are caused to penetrate into the inside of her vagina. N.º 795. Another, to cause the uterus to return to its place: An ibis of wax; placed over charcoal; its fumes are caused to enter into her vagina.11 (Ghalioungui, 1987, pp. 201-203)

Segundo Veith (1965), que se apoia em Ebbell (1937), os casos descritos referem-se a histeria devido a deslocação do útero e daí as terapêuticas serem de carácter sexual. De acordo com a mesma autora (1965), as práticas sofriam a influência de crenças religiosas e tinham um cunho sexual: a imagem da íbis de cera seria de Tote, deus da sabedoria e divindade masculina mais poderosa. As interpretações de Ilza Veith têm sido mencionadas na maior parte das referências sobre a histeria e são poucos os que analisaram as fontes originais (King, 1993).

Na realidade, o papiro de Ebers nunca revela essas implicações. Lefebvre (1956, referido por Ghalioungui, 1987), considera que se trata de casos de útero desviado ou prolapsado. Merskey e Potter (1989), baseando-se na tradução de Grapow (1954/1973), concluem que não há qualquer evidência de que os antigos egípcios acreditassem que o útero vagueava e que provocaria histeria, pois os problemas descritos nos papiros não podem ser distinguidos de problemas do foro ginecológico (prolapso uterino, febre puerperal e problemas menstruais).

Encontramos também este tipo de interpretação num estudo fora da área da saúde mental, realizado por ginecologistas israelitas (Haimov-Kochman, Sciaky-Tamir & Hurwitz, 2005). A referência que Veith usou para interpretar como útero deslocado, é aqui usada como útero prolapsado.

Pela análise das traduções dos textos, principalmente do papiro de Kahun, podemos dizer que os médicos egípcios acreditavam que as doenças do útero afectavam outros

10 Retirámos as palavras em egípcio e substituímo-las pelas traduções que Ghalioungui colocou em notas de

rodapé. Essas alterações estão inscritas nos colchetes.

11 “N.º 789-791, 793-794. Remédio para permitir que o útero da mulher regresse para o seu lugar: serradura

de pinheiro; adicionar borras; untar um tampão de algodão com isso; … óleo de rocha (?), deixar em mel; untar a região púbica da mulher com isso. … alcatrão (?) que existe na madeira de barco; esfregar com borras de boa cerveja; fazer com que ela beba isso. … excrementos humano secos; juntar a resina; fumigar a mulher com isso e fazer que os fumos penetrem para dentro da sua vagina. N.ª 795. Outro, para levar o útero a regressar ao seu lugar: uma íbis de cera; colocar em carvão; fazer com que os fumos entrem na sua vagina.”

órgãos, provocando alterações sensoriais e dores em várias partes do corpo, mas não falavam de um útero errante. Algumas das doenças que decorriam do útero parecem ser descrições de perturbações conversivas ou somatizações. Este será o único aspecto da lenda que se manterá ao longo da história até ao século XX.