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Histeria O termo histeria foi usado para designar sintomas neurológicos e somáticos crónicos e

1.5. A histeria como fenómeno nervoso e espiritual

A meio do século XVII, a histeria passou a estar relacionada com a constituição delicada feminina e a estar associada às classes altas (Micale, 1990b; Skultans, 1979). Os adjectivos sociais mudaram para uma visão mais positiva (depende da perspectiva). As mulheres passaram a ser adjectivadas como delicadas, irritáveis e sensíveis (Veith, 1965). Os homens jovens e aristocratas podiam também ser mais sensíveis e delicados e sofrer de doenças semelhantes.

O útero já não se deslocava, mas os vapores que se originavam do útero, ou do baço nos homens, podiam subir do abdómen e afectar os nervos e o sistema circulatório. Em vez do furor uterino, passaram a ter-se ataques de vapores e de nervos. Na medicina, as

confusões nosológicas e etiológicas tornaram-se férteis. Socialmente, as mulheres eram

satirizadas pelos seus vapores. Podemos vê-lo na pintura (ver Figura 15) e na literatura. No poema The Rape of the Lock, Pope satiriza com contundência os vapores e ridiculariza sem piedade o estrato social mais alto (1714/1891, iv, 35, pp. 251-252):

There affectation with a sickly mien Shows in her cheek the roses of eighteen, Practis’d to lisp, and hang the head aside, Faints into airs, and languishes with pride; On the rich quilt sinks with becoming woe, Wrap in a gown, for sickness, and for show The fair ones feel such maladies as these, When each new night-dress gives a new disease.81

1.5.1. Paixões e vapores hipocondríacos: sintomas múltiplos

Thomas Willis, outro grande médico inglês, foi o maior teórico sobre a histeria do século XVII (Temkin, 1994). Willis tinha, como vantagem em relação aos seus antecessores, conhecimentos sobre o cérebro e prática clínica com doentes histéricos e epilépticos. No Pathology of Brain and Nervous Stock (1684, citado em Eadie & Bladin, 2001), Willis escreveu que as “hysterical passions”82, eram responsáveis por sintomas semelhantes

aos da epilepsia. A epilepsia devia-se a explosões dos espíritos animais no cérebro e as Figura 15. Caricatura sobre os vapores. De “Les

vapeurs”, por A. Tardieu, Album Comique de Pathologie Pittoresque, Recueil de Vingt Caricatures Médicales, Paris: A. Tardieu, 1823. Copyright restrito ao uso privado.

81 “A afectação com um aspecto doentio; Mostra nas suas bochechas as rosas dos dezoito; Hábil em

sussurrar e a colocar a cabeça de lado; Faz-se desmaiar e enlanguesce orgulhosamente; Afunda-se com sofrimento conveniente na rica manta; Enrolada num roupão para a doença e para a exibição; O belo sexo tem destes padecimentos; Sempre que um novo vestido-de-noite provoca uma nova doença.“

convulsões histéricas a explosões nas raízes dos nervos cranianos (citado em Brain, 1963; Hunter & Macalpine, 1963; Merskey, 1999; Veith, 1965). Para o médico inglês, a histeria limitava-se aos fenómenos convulsivos — “pathologica spasmodica”. Os sintomas podiam ser semelhantes, mas Willis distinguiu claramente a histeria da epilepsia no Opera Omnia (1694)83, dedicando um capítulo à Pathologiae Cerebri et

Nervosi Generis Specimen: in quo Agitur de Morbis Convulsivis ... (epilepsia) e outro

capítulo à Affectiorum Histericarum et Hypochondriacarum Pathologica Spasmodica

Vindicata ... (histeria e hipocondria).

Desta forma, Willis operou uma revolução que ainda demorou a estabelecer-se, ao defender que a histeria era uma perturbação cerebral e não uterina. As suas palavras foram claras: “The distemper named from the womb is chiefly and primarily convulsive, and chiefly depends on the brain and the nervous stock being affected84” (citado em

Veith, 1965, p. 132). Willis libertou a histeria do útero e argumentou que podia ocorrer em crianças e em homens: “maids before ripe age, also in old women after their flowers have left them; yea, sometimes the same kind of passions infest men”85 (citado em Veith,

1965, p. 133).

Entretanto, como tratamento, manteve o uso de substâncias de odor desagradável que considerava anti-espasmódicas e anticonvulsivas (Veith, 1965). Inovador, distinguiu a histeria da hipocondria que considerava resultar de alteração do sangue no baço. Willis foi ainda muito crítico em relação à validade dos diagnósticos de histeria:

The hysterical passion is of so ill fame among the diseases belonging to women, that like one half damn’d, it bears the faults of many other distempers: for when at any time a sickness happens in a woman’s body, of an unusual manner, or the more occult original, so that its cause lies hid, and the curatory indication is altogether uncertain, presently we accuse the evil influence of the womb (which for the most part is innocent) and in every unusual symptom, we declare it to be something hysterical, and so to this scope, which oftentimes is only the subterfuge of ignorance, the medical intentions and use of remedies are directed.86 (citado em Brain, 1963; Eadie & Bladin, 2001, p. 74; Hunter & Macalpine,

83 A versão a que tivemos acesso foi-nos muito difícil de ler. Só conseguimos decifrar convenientemente os

títulos da obra de Willis.

84 “A enfermidade designada a partir do útero é principalmente e primeiramente convulsiva e depende

primordialmente do cérebro e do sistema nervoso serem afectados”.

85 “Jovens antes de amadurecer e mulheres mais velhas depois das suas flores (menstruação) as deixarem;

e sim, o mesmo tipo de paixões assolam os homens”.

86 “A paixão histérica tem tanta má fama entre as doenças femininas como metade das [doenças]

amaldiçoadas, ela carrega o peso das faltas de muitas outras enfermidades: pois quando uma moléstia ataca o corpo de uma mulher, de uma forma invulgar ou de forma oculta por forma a que a sua causa fica secreta, e é incerta a sua indicação curativa, acusamos actualmente a influência maligna do útero (na maioria das vezes inocente) e dizemos que é algo histérico de todo o sintoma raro, e assim são dirigidas as intenções médicas e o uso de remédios neste domínio de conhecimentos, que é por vezes o único subterfúgio da ignorância”.

1963, p. 189; Stearns, 1946, p. 293)

Ao colocar a histeria no sistema nervoso e ao distingui-la da epilepsia, o médico criou o caminho para o conceito de histeria como doença nervosa (Brain, 1963). Mas o facto de Willis ter situado a histeria entre as doenças cerebrais, não significa que a considerasse uma doença mental (Foucault, 1972/1993). E ainda que tenha libertado a histeria do útero, Willis não apartou a histeria das mulheres e continuou a considerar que as mulheres eram mais susceptíveis do que os homens, devido à sua fraca constituição

animal.

Thomas Sydenham, o Hipócrates Inglês (Vilermay, 1802; Veith, 1965) reforçou a ideia de que a afecção histérica não era uma doença uterina mas sim do domínio da neurologia e psiquiatria e que podia afectar o sexo masculino87. Sydenham explicou que se dedicou

ao tratamento da afecção histérica pois seria a patologia crónica mais frequente a seguir à febre (1682/1774). Ainda que não tenha sido o primeiro, Sydenham foi dos mais explícitos na descrição da afecção histérica masculina; escapou à crítica dos seus pares, ao designá-la por afecção hipocondríaca (Veith, 1965). Para o médico, o diagnóstico de hipocondria era tão comparável ao da histeria, “as one egg is to another” (cit. por Schneck, 1957, p. 1034).

A designação hipocondria estava há muito estabelecida88 e derivava da ideia de que o

hipocôndrio tinha um papel semelhante ao do útero (Dubois, 1833). O “suffocatio hypochondriaca” afectava as vísceras abdominais, em especial o baço que se supunha estar relacionado com a melancolia (1682/1774, p. 392). As palavras de Sydenham na epístola ao Dr. Cole são ilustrativas do seu pensamento:

Il est trés peu de femmes qui en soient entierement exemptes, à l’exception de celles qui sont accoutumées à une vie dure & laborieuse ... et même entre les hommes, beaucoup de ceux qui s’attachent à l’étude & menent une vie sédentaire, sont sujets à la même maladie. Tous les anciens on attribué les symptomes de l’affection hystérique au vice de la matrice. Néanmois si l’on compare cette maladie avec celle que l’on appelle communément dans les hommes affection hypocondriaque, ou vapeurs hypocondriaques, & que l’on attribue à des obstructions de la rate, ou des autres visceres du bas ventre, on trouvera une grande ressemblance entre ces deux maladies ... l’affection hystérique n’est pas seulement très fréquente; elle se montre encore sous une infinité de formes diverses, & elle imite presque

87 Apesar disso indicou que se queimasse uma fita azul escuro sob o nariz do paciente. A ideia clássica de

tratamento para o útero móvel está implícita.

88 O conceito de hipocondria remonta a Dioclés Carystus, médico de Antígona, tendo então a designação de

“morbus flatuosus” (doença flatulenta). Os médicos árabes, Razés, Avicena, etc., também falaram dela, nomeando-a de “morbus mirachialis”. Significando mirach intestino ou toda a cavidade abdominal, a hipocondria era atribuída à inflamação dos orifícios do estômago (Dubois, 1833).

toutes les maladies qui arrivent au genre humain.89 (1682/1774, pp. 392, 394)

A variedade de sintomas que Sydenham incluiu entre os sintomas histéricos foi numerosa. O único sinal patognomónico da histeria seria a descarga abundante e clara de urina. Os espíritos animais, consoante a parte do corpo que atingissem, assim produziam sintomas diferentes: apoplexia, epilepsia, dor de cabeça, palpitações cardíacas, tosse, vómitos, cólica renal, diarreia, dores ou edemas nas partes externas, dores de costas e até dos dentes! O alívio? A usual flebotomia desta época.

Para além de serem doentes do corpo, continuou Sydenham, as mulheres histéricas e os homens hipocondríacos seriam sempre doentes do espírito, com sintomas que iam desde a insónia, tristeza, cólera, ciúme à alegria, entre outras paixões violentas (1682/1774, pp. 394-398). As mulheres histéricas de Sydenham eram pálidas, debilitadas e magras e

Rient ou pleurent immoderement sans aucune cause évident ... quoique les femmes hystériques & les hommes hypocondriaques soient extrêmement malades de corps, ils le sont encore plus d’esprit ... ils s’abandonnent pour le moindre sujet, & même sans sujet, à la crainte, à la colere, à la jalousie, aux soupçons, & aux passions les plus violents.90

(1682/1774, p. 398)

A partir de Sydenham, inauguraram-se dois caminhos de evolução conceptual da histeria. Num dos caminhos, a histeria passou a ser uma perturbação dos nervos que afectava diferentes partes do corpo, produzindo distúrbios funcionais que simulavam uma doença orgânica (Payne, 1990, Schneck, 1957).

A outra via conceptual entendeu a histeria como doença do espírito. Nesta segunda via, Sydenham estabeleceu um conceito de histeria que durou trezentos anos. O exagero e labilidade emocionais e a sugestionabilidade passaram a fazer parte da descrição da histeria até ao século vinte (Alam & Merskey, 1992). Adicionalmente, depois de Sydenham quase todos os médicos Europeus incluíram homens entre os casos de histeria (Rousseau, 1993).

89 “São poucas as mulheres que estão totalmente livres, à excepção daquelas que estão acostumadas a

uma vida dura e laboriosa ... e mesmo entre os homens, muitos dos que dedicam aos estudo e levam uma vida sedentária, estão sujeitos à mesma doença. Todos os antigos atribuíram os sintomas da afecção histérica ao defeito do útero. Todavia, se comparamos esta doença com a que se costuma denominar nos homens por afecção hipocondríaca ou vapores hipocondríacos e que atribuímos às obstruções do baço ou outras vísceras do baixo-ventre, encontrar-se-á uma grande semelhança entre estas duas doenças ... a afecção histérica não é somente muito frequente; ela mostra-se sob uma infinidade de formas diversas e ela imita quase todas as doenças que sucedem ao género humano.”

90 “Riem ou choram imoderadamente sem qualquer causa evidente ... ainda que as mulheres histéricas e os

homens hipocondríacos sejam extremamente doentes do corpo, eles são ainda mais do espírito ... com assunto mínimo, e mesmo sem assunto, eles abandonam-se ao medo, à cólera, ao ciúme, às desconfianças e às paixões mais violentas.“

1.5.2. Vapores: sintomas vários e mimetismo

Também em Inglaterra, John Purcell escreveu o popular tratado sobre a histeria, A

Treatise of Vapours, or, Hysterick Fits (1707). No seu livro, Purcell falou dos ataques

histéricos como uma doença corporal cuja causa imediata era uma desordem dos espíritos, especialmente uma indigestão, consistindo num entupimento do estômago e intestinos “where the grumbling of the one and the heaviness and uneasiness of the other generally preceding the paroxysm”91 (1707, p. 91). Mais uma vez, as mulheres eram

as mais afectadas pelos vapores devido aos efeitos da retenção de produtos menstruais, à fraca textura do cérebro e dos nervos. Causas morais podiam também provocar ataques:

Those who are troubled with vapours, have some deep passion or concern upon them, which renders them pensive and thoughtful ... [after knowing the cause, the doctor] with the aid of friends and relations, facilitate to her, the means of obtaining what she desires.92

(1707, p. 155)

A definição dos vapores, “vapours, otherwise called hysteric fits”93 (1707, p. 1), constitui

mais uma descrição habitual:

They feel a heaviness upon their breast; a grumbling in their belly; they belch up, and sometimes vomit, sowr, sharp, insipid, or bitter humours; they have a difficulty in breathing; they think they feel something that comes up into their throat, which is ready to choak them; they struggle; cry out; make odd and inarticulate sounds, or mutterings; they perceive a swimming in their heads, a dimness comes over their eyes; they turn pale, are scarce able to stand; their pulse is weak, they shut their eyes, fall down and remain senseless for some times … some moreover have their bellies swell’d and stretch’d like a drum; their hypochondria’s distended; and they fancy they feel some part within them rowl from place to place.94 (1707, pp. 3-4 )

Mais à frente relatou as consequências da associação da depressão em doentes histéricos: “Melancholy in hysterical people is easily cured in the beginning, but when it

91 “Onde o resmungo de um e o peso e desassossego do outro precedem geralmente o paroxismo”.

92 “Aqueles que são incomodados com vapores, têm alguma paixão profunda ou preocupação sobre si que

os torna meditabundos e pensativos ... [depois de saber qual a causa, o médico] com a ajuda de amigos e relações, facilita-lhe os meios de obtenção daquilo que ela deseja.”

93 “Vapores, denominados de maneira diferente por ataques histéricos”.

94 “Sentem um peso no peito; resmungo na barriga; arrotam e por vezes vomitam humores azedos, ácidos,

insípidos ou amargos; têm dificuldade em respirar; pensam que sentem alguma coisa que sobe até à garganta e que as vai sufocar; elas lutam; gritam; fazem sons estranhos ou desarticulados ou murmúrios; elas sentem a cabeça a andar à roda, a obscuridade a atingir os olhos; ficam pálidas, têm dificuldades em ficar de pé; o seu pulso é fraco, fecham os olhos, caem e ficam sem sentidos durante algum tempo ... algumas ainda têm as suas barrigas inchadas e distendidas como um tambor, o seu hipocôndrio está distendido; e imaginam que sentem qualquer parte dentro delas viaja de um lado para o outro.”

has taken deep root, and the patients avoid and shun company ... it is to be feared they will endeavour to make themselves away”95 (1707, p. 170).

O tratamento para a histeria eram os banhos frios nas partes privadas durante várias semanas (1707, pp. 190, 214-217). No caso dos desmaios, Purcell indicava odores fortes sob o nariz e sugeria o uso de penas, não só para fazer cócegas no nariz, mas porque os espirros súbitos podiam forçar o útero a voltar ao lugar e propunha ainda a sangria venosa (1707, pp. 11, 178-192).

A ilustração de Abraham Bosse é um bom exemplo da sangria, das suas circunstâncias e dos significados sociais velados (Figura 16).96 Purcell fez notar os perigos da

inactividade física, salientando que os ataques uterinos raramente ocorriam em mulheres da classe mais baixa (1707, p. 39). Estamos no século XVIII, mas Purcell ainda acredita que o útero tem uma natureza animal!

Em Portugal tivemos António Nunes Ribeiro Sanches, médico penamacorense de ascendência judaica, um refugiado em vários países da Europa e especialmente estimado pelos imperadores russos. Ribeiro Sanches foi um médico e filósofo dotado e escritor profícuo, considerado em Inglaterra e França. Numa das suas Cartas sobre a

Educação da Mocidade, escreveu o seguinte sobre a histeria e a hipocondria:

As paixões acima ditas da tristeza e do medo nas constituições delicadas dotadas de uma imaginação viva, expressão agradável e de nervos delicados ainda que elásticos, as queixas que se geram são nas vísceras entrando nelas todas as desordens do(s) estômago(s) e dos intestinos. Estes [doentes] logo sentem flatos, dores de cabeça, zunidos nos ouvidos, ansiedades, convulsões, o ventre constipado. Estes todos vêm ou hipocondríacos ou histéricos. (1753, p. 9)

Mais à frente relata um caso de histeria curado por uma “paixão forte”:

Ouvi dizer a Boerhaave que um médico árabe sendo mandado para curar a mulher de um califa, detida da paralisia de um braço, pedira perdão ao marido para cometer à enferma um desacato. Impetrou a licença, chega perto da enferma e, quando ela jamais cuidava, levanta-lhe a saia de repente. Enfureceu-se a enferma e ficou curada. (1753, p. 18)

95 “A melancolia nas pessoas histéricas é fácil de curar no começo mas quando ganhou raízes profundas e

os pacientes evitam e afastam a companhia ... deve temer-se que se empenhem em fazer-se desaparecer”.

96 As palavras no fundo do quadro têm uma carga sexual óbvia: “La courage Monsieur vous lause

enterrepris/ Se tiendray bon, frottez, serrez la ligature/ Picquez asseurement faictes bonne ouverture/ Ah! Ce bouillon de sang vous a comme surpris/ Que la phlebotomie espure les espritz/ et descharge le sang de grande pourriture/ O Dieux la douce main l’agreable picqure/ Le souvenir m’en faict revenir le soubzris/ ...”

[A coragem Senhor deixou-vos seduzir/ Se segurar bem, esfregue, aperte a ligadura/ Pique com confiança, faça um boa abertura/ Ah, esse borbulho de sangue como vos surpreendeu/ Que a flebotomia expurgue os espíritos/ e alivie o sangue de grande podridão/ Oh Deus, a doce mão, a agradável picada/ A recordação faz-me voltar o sorriso/ ].

Ribeiro Sanches, já médico com prática, foi um dos muitos pupilos famosos de Boerhaave, um dos médicos e professores de medicina com maior importância no século das Luzes. Hermann Boerhaave pretendeu edificar uma medicina newtoniana e estabelecer as leis mecânicas que governavam o organismo (Rousseau, 1993). O médico holandês escreveu pouco e referiu que a afecção histérica podia culminar em epilepsia, melancolia, hepatite e icterícia, tendo o sistema nervoso um papel importante. A afecção histérica seria uma paixão da alma que podia resultar dos humores corrompidos do útero e que irritavam a zona uterina, rica em nervos. Mas como a afecção histérica atingia também os homens, o útero não podia ser causa única. Assim, o movimento histérico, dever-se-ia a uma

mobilidade excessiva dos fluidos que adquiriam uma inconsistência tal que seriam perturbados ao menor movimento. Os movimentos desordenados nasceriam dos nervos das vísceras do baixo ventre, perturbando depois o cérebro e produzindo as convulsões (1715/1986). A eficácia do tratamento m o r a l é p o r v e z e s manifestada de forma inusitada e um dos e x e m p l o s m a i s surpreendentes é-nos dado por Boerhaave (Tissot,

1780). Na casa de saúde de Harlem, Boerhaave impedia o regresso das crises em todos os jovens que sofriam de convulsões, acendendo fogões ardentes e indicando no braço o local onde se devia fazer uma queimadura profunda desde o início da crise. Esta acção tê-lo-á inspirado a utilizar a acção psíquica das pílulas de miolo de pão douradas (Bérillon, 1889).

Gerard van Swieten, outro pupilo de Boerhaave, expandiu a obra do mestre no

Commentarii in Aphorismos Boerhaavii (1745/1765) e fez da histeria um dos seus

principais temas. van Swieten não conseguiu abandonar o útero como causador da histeria e manteve-o a par com causas nervosas: “It cannot be denied that corrupted Figura 16. A sangria de uma mulher elegante feita por um médico vistoso. Este aplica o torniquete enquanto o assistente segura a taça de retenção do sangue. Atrás estão dois quadros de um homem e de uma mulher e um quadro maior com dois cavaleiros numa paisagem de montanha, numa sugestão de marido ausente (Dixon, 1995). De “La saignée”. Por Abraham Bosse, série “Les vierges sages et les vierges folles”, c. 1670. Colecção de Arte da Folger Shakespeare Library, Washington, D. C. Copyright restrito ao uso privado.

humors, collected in the cavity of the uterus, or lodged in the vessels dispersed through its substance, by eroding or irritating this nervous part, may produce the worst complaints”97 (1745/1765, p. 374). Simultaneamente, van Swieten criou a designação

ansiedade espasmódica para designar a constituição nervosa daqueles que, ao mínimo estímulo, reagiam com fortes convulsões.

Para Gerard van Swieten a afecção histérica era principalmente uma doença mórbida dos nervos das vísceras abdominais e medula espinhal cuja excitação se propagava ao cérebro provocando convulsões violentas. Ele aconselhou às jovens “walk three times among flowers of garden, barefoot, with the chest uncovered — entertained by falling caterpillars and roses and apples and oak leaves“98 (1745/1765, p. 68). A noção antiga