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Histeria O termo histeria foi usado para designar sintomas neurológicos e somáticos crónicos e

3. Modelos teóricos e investigação

3.4. Dissociação como defesa

Muitas das respostas à questão de saber para que serve a dissociação orientam-se no sentido de ser um mecanismo de defesa contra a ansiedade (Cardeña, 1994; Kihlstrom, Glisky, & Angiulo, 1994; Putnam, 1997).

A favor desta ideia temos as várias investigações das duas últimas décadas que mostram uma relação entre a dissociação e acontecimentos traumáticos, tais como o abuso físico crónico (e.g., Diseth, 2005; Geraerts, Merckelbach, Jelicic, Smeets, & Van Heerden, 2006; Merckelbach & Giesbrecht, 2006a; Semiz, Basoglu, Ebrinc, & Cetin, 2007), abuso sexual crónico ou violação (e.g., Bremner et al., 2003b; Butzel et al., 2000; Kisiel & Lyons, 2000; Nijenhuis, Van Engen, Kusters, & van der Hart, 2001; Putnam et al., 1995), assistir a morte violenta durante a infância (Putnam, Guroff, Silberman, Barban, & Post, 1986), estar envolvido em desastres naturais (e.g., Birmes et al., 2005; Cardeña & Spiegel, 1991; Simeon, Greenberg, Knutelska, Schmeidler, & Hollander, 2003a), a exposição a situações de conflito extremo (guerra, tortura, terrorismo, etc.) (e.g., Nejad, 2007; van der Hart, van Dijke, van Son, 2000; Waelde, Silvern, & Faibank, 2005) e a participação em acidentes rodoviários (e.g., Holeva & Tarrier, 2001; Murray, Ehlers, & Mayou, 2002; Schäfer, Barkmann, Riedesser, & Schulte-Markwort, 2004).

Um estudo longitudinal realizado por Qgawa e colaboradores (1997) confirmou esta relação (acompanharam 168 jovens adultos desde o nascimento até aos 18 anos e avaliaram o trauma e a sintomatologia dissociativa, entre outros aspectos, quatro vezes ao longo dos anos).

3.4.1. Função psicológica

Na perspectiva psicanalítica a dissociação é vista como uma protecção contra a ameaça ou perigo, de forma a manter a integridade psicológica do indivíduo como uma rejeição ou supressão da informação que causa ansiedade ou dor (Freud, 1950 [1895]/2001). De facto, a maior parte dos estudos perspectiva a dissociação como uma defesa contra situações traumáticas em que os sintomas dissociativos são tentativas de fuga mental das consequências disfóricas e esmagadoras do trauma e da memória do trauma (e.g., Cardeña & Spiegel, 1991; Kluft, 1990; Gershuny & Thayer, 1999; Kennedy et al. 2004; Ludwig, 1983; Putnam, 1984; Spiegel, 1991; Spiegel & Cardeña, 1991; Van der Kolk & Van der Hart, 1989). A teoria é de que, ao interferir com o armazenamento normal,

recuperação e integração de pensamentos, sentimentos, sensações e memórias, a dissociação protege o indivíduo da experiência traumática.

A esta ideia associa-se a noção de que as pessoas submetidas a acontecimentos adversos aprendem a desligar-se mentalmente do que está a acontecer e podem continuar a usar este mecanismo (traço de dissociação) para processar acontecimentos negativos ao longo da sua vida (Loewenstein, 1991b; Wessel, Wetzels, Jelicic, & Merckelbach, 2005). Há evidências que apoiam esta asserção.

Determinadas investigações empíricas mostram que a dissociação se relaciona com a cronicidade e gravidade em estudos retrospectivos (Chu, Frey, Ganzel, & Matthews, 1999; Kisiel & Lyons, 2000; Nijenhuis et al., 1998a). Outras investigações, de cariz experimental, verificaram que os indivíduos que dissociam mais recordam menos palavras de carga emocional do que as pessoas que dissociam pouco (DePrince & Freyd, 1999; Holtgraves & Stockdale, 1997). Mas há estudos que mostram o inverso: em que não há relação entre o nível de dissociação e a recordação de informação emocional (cf. revisão de Wessel et al., 2005).

Ainda que a dissociação possa ser perspectivada como uma defesa psicológica, não decorre daí que seja a sua única função (Butler, 2006). Ludwig (1983), por exemplo, propõe sete funções possíveis da dissociação com base na sua experiência clínica: automatização dos comportamentos, economia e eficiência dos esforços, resolução de conflitos irreconciliáveis, fuga dos constrangimentos da realidade, isolamento de experiências catastróficas, descarga catártica de sentimentos e aumento da sensação

de horda.

Freyd, Martorello, Alvarado, Hayes e Christman (1998) acrescentam a função de manter um sistema de vinculação em situações de violência interpessoal. Butler (2006), por seu turno, propõe três funções para a dissociação normativa: o devaneio servirá para o processamento mental; a absorção será usada como escape; a dissociação positiva ou

experiência de fluxo (“flow experiences”) reforçará as actividades gratificantes8.

A noção de dissociação como mecanismo de defesa é também contrariada pela investigação (Giesbrecht, Smeets, & Merckelbach, 2008; Roman, Martin, Morris, & Herbison, 1999).

A pesquisa de Fikretoglu et al. (2006) com indivíduos submetidos a situações traumáticas revelou que a dissociação peritraumática não protege as pessoas de sentirem níveis elevados de activação fisiológica e emoções negativas. Os autores concluíram que a dissociação seria, então, um epifenómeno dessa mesma activação bem como das emoções e não um mecanismo de defesa. Adicionalmente, ainda que

8 Constituem experiências positivas de despersonalização ou de desrealização, muitas vezes com distorção

seja recorrente na literatura a ideia de que as situações traumáticas se relacionam com sintomas dissociativos, essa correlação tem sido modesta e há a possibilidade de os correlatos da dissociação (tendência para a fantasia, sugestionabilidade aumentada e susceptibilidade a pseudomemórias) contribuírem para criar uma tendência de resposta positiva nos questionários sobre experiências traumáticas (cf. Merckelbach & Muris, 2001; Merckelbach et al., 1999; Rassin & van Rootselaar, 2006). Dito de outro modo, há a possibilidade de a dissociação promover o relato de experiências traumáticas e não o inverso.

3.4.2. Função biológica

No caminho da selecção natural, a dissociação poderá ter surgido como uma função de adaptação. Sierra & Berrios (1998) e Frewen & Lanius (2006a) argumentam que a dissociação consiste numa defesa biológica vestigial que evoluiu para minimizar a ansiedade face a ameaça extrema. A favor desta hipótese, temos os estudos que mostram que a dissociação é comum nas perturbações ansiosas (e.g., Allen, Coyne, & Console, 1996; Ball, Robinson, Anantha, & Walsh, 1997; Lambert, Senior, Fewtrell, Phillips, & David, 2001; Marshall et al., 2000; McWilliams, Cox, & Enns, 2001; Michelson, June, Vives, Testa, & Marchione, 1998; Simeon et al., 1997); em particular nas situações de stress agudo (e.g., Richard, Bryant, & Harvey, 1997; Morgan, Hazlett, Wang, Richardson Jr., & Southwick, 2001; van der Kolk & Fisler, 1995).

Um exemplo recente desta asserção provém de um estudo com população não-clínica: Sterlini e Bryant (2002) verificaram que skydivers9 caloiros sentem dissociação e medo

intensos antes do seu primeiro salto e mostraram que a variância nas experiências dissociativas era explicada pela super-estimulação e ansiedade.

Para Frewen e Lanius (2006a), Nijenhuis, Vanderlinden e Spinhoven (1998c) e Scaer (2001) as reacções dissociativas ao trauma correspondem à resposta defensiva de

congelamento ou imobilização de vários animais perante ameaça extrema. As opiniões

de Kretschmer (1960), Ludwig (1983) e Rivers (1920) vão também no mesmo sentido. A investigação com animais em situações de desespero mostra semelhanças com as reacções humanas ao trauma, parecendo suportar esta alegação (Bremner, Souwthwick, & Charney, 1999; Yehuda & Antelman, 1993).