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Ο primeiro impulso – apropriação e aceitação de si (οἰκείωσις)

CAPÍTULO II – A teoria do impulso (ὁρμή)

2.2 Dos fundamentos psicológicos do impulso (ὁρμή)

2.2.1 Ο primeiro impulso – apropriação e aceitação de si (οἰκείωσις)

Todo animal é capaz de discernir o seu próprio ser através dos sentidos, ou seja, perceber-se. A prova disso é que ao nascer ele pode mover com aptidão e desenvoltura os seus membros como se houvesse recebido instrução.21

O primeiro impulso (ὁρμή) de um animal, dizem os estoicos, é para a autopreservação, porque a natureza, desde o início o encarece para si mesmo, como diz Crisipo no primeiro livro de sua obra Dos Fins: "A coisa mais preciosa para todo animal é a sua própria constituição e a consciência dela" (πρῶτον οἰκεῖον παντί ζῴῳ τήν αὑτοῦ σύστασιν καί τήν ταύτης συνείδησιν), pois não seria provável que a natureza deveria alienar a coisa viva de si mesma ou que ela deixaria a criatura que ela fez quer sem estranhamento ou afeição por sua própria constituição. Somos forçados a concluir então que a natureza, ao constituir o animal, tornou-o próximo e querido a si próprio, pelo que assim trata de repelir tudo o que é prejudicial e dar livre acesso a tudo o que é útil ou semelhante a ele22.

A partir desse primeiro impulso de autopercepção, as funções básicas próprias ao animal se desenvolvem. Segundo o testemunho de Diógenes Laércio, o animal é conduzido primeiramente por um desejo de autopreservação mais radical do que a sensibilidade ao prazer e à dor. Esse ímpeto natural congênito do animal refere-se a uma "primeira coisa apropriada" (πρῶτον οἰκεῖον), sua própria constituição23 (σύστασιν) e a consciência dele (καί τήν ταύτης συνείδησιν). Essa relação consigo induz a uma relação com os bens externos e amplia-se dos animais à sua descendência, do homem a seus semelhantes com força inigualável. Assim, por meio desse construto, os estoicos fundamentam uma filosofia da “consciência”.

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DL, VII, 87. 21 SVF, III, 184a.

22 DL, VII, 85 – 86 e SVF, III, 178. An animal's first impulse, say the Stoics, is to selfpreservation, because nature from the outset endears it to itself, as Chrysippus affirms in the first book of his work On Ends: his words are, "The dearest thing to every animal is its own constitution and its consciousness thereof"; for it was not likely that nature should estrange the living thing from itself or that she should leave the creature she has made without either estrangement from or affection for its own constitution. We are forced then to conclude that nature in constituting the animal made it near and dear to itself ; for so it comes to repel all that is injurious and give free access to all that is serviceable or akin to it. Tradução nossa.

23 SÉNÈQUE. Op. cit. 121, 5. [Constitutio est principale animi quodammodo se habens erga corpus] “La constitution d'un être est le développement de son principe dirigeant; elle n'est, en réalité, que le principe dirigeant lui-même dans son rapport a avec le corps. Or la nature du principe dirigeant n'est, comme on l'a vu, autre chose que la raison, est de se connaître et de s'aime.”

61 Segundo René Lefebvre,24 essa preocupação dos estoicos concernente ao animal antes mesmo que aos humanos, articula a consciência e a apropriação (οἰκείωσις) no âmbito de dupla problemática. Primeiro, porque o termo “oikeiosis” não permite uma tradução direta e satisfatória. Segundo, porque é possível discutir se a consciência segue a essa apropriação (οἰκείωσις), ou vice-versa, ou ainda se esse movimento de “apropriação” inclui a consciência. Entretanto, essa noção de “consciência”, nesse contexto, pressupõe muito mais a autopercepção sensível que intelectual. Contudo, para o propósito deste trabalho essas dificuldades não são obstáculos. O que interessa é o fato de que esse primeiro movimento serve como base dos processos perceptivos, que culminarão na aquisição do conhecimento e que, por interagir na “potência desiderativa,” tem implicações práticas.

Em contraste com essas dificuldades apresentadas, adota-se aqui a interpretação que Long e Sedley fazem, sobre tal problema:

“Alienação” e "apropriação" são traduções literais dos termos gregos allotriosis (ἀλλοτρίωσις) e oikeiosis (οἰκείωσις). Embora qualquer tradução perca alguma coisa do original, suas associações com posse de propriedade captura a tônica dos conceitos estoicos. (...) A raiz grega oik- denota propriedade, o que pertence a alguma coisa, mas no uso estoico, essa noção também é concebida como uma disposição afetiva em relação à coisa que é de propriedade ou pertence. Sendo assim, a ideia de "apropriação" como posse forçada deve ser descontada de nossa tradução. Do mesmo modo, a noção de propriedade reivindicada ou desejada dever ser lida em nossa tradução do adjetivo oikeion por "apropriado"(...)25

Considera-se que a ênfase na consciência ou cognoscibilidade de si é uma característica dos testemunhos de Sêneca26 e Hiérocles,27 onde o termo apropriação indica um tipo de auto-reconhecimento e aceitação, enquanto alienação denota um tipo de estranhamento e rejeição. Provavelmente, os estoicos definiram "apropriação" como a percepção do que é “adequado" (οἰκεῖον). É, nesse sentido, que subjaz a ideia de autoconsciência, ainda que rudimentar. Segundo os comentadores, os estoicos não

24 LEFEBVRE, René. (Artigo) “Représentation, lumière, conscience chez les stoïciens.” Revue des Études Grecques, tome 110, Juillet-décembre, 1997, pp. 469-483.

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LS, Vol. I, cap. 57, p. 351 (parte). “‘Alienation' and 'appropriation' are literal translations of the Greek terms allotriosis and oikeiosis. Their English associations with property ownership capture the main force of the Stoic concepts here, though any translation will miss something of the original. (…) the Greek root oik-. This connotes ownership, what belongs to something, but in Stoic usage that notion is also conceived as an affective disposition relative to the thing which is owned or belongs. Hence the English associations of 'appropriation' with forcible possession are to be discounted in our translations. Correspondingly, the notion of claiming or desiring ownership needs to be read in our translation of the adjective oikeion by 'appropriate'(...)” Tradução nossa.

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SÉNÈQUE. Op. cit. 121, 11-13 apud LS, cap. 57, p. 35. 27 HIÉROCLES, 1.34-9, 51—7; 2.1 – 9 apud LS, cap. 57, p 351.

62 estariam interessados no comportamento animal propriamente dito, mas supunham que seus princípios proveriam os fundamentos da sua teoria da ação. Infere-se, portanto, que os movimentos que levam à cognição têm início no primeiro impulso (οἰκείωσις) como base da percepção. Deve-se considerar a percepção sensível (αἴσθησις) como fundante na constituição das preconcepções (πρόληψις), as quais evoluem para noções (ἔννοια) até alcançar a forma de conhecimento (ἐπιστήμη).