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CAPÍTULO III – A Teoria das Representações

3.3 A impressão (φαντασία) e a sensação (αἴσθησις): fundamentos da dialética

3.3.2 Como a concepção das coisas surge na mente (hegemônico)

Na abordagem epistemológica do estoicismo, a concepção das coisas surge na mente de diversas maneiras. O sensualismo estoico permite inferir que há um tipo de concepção mental potencial. É o caso das ideias adquiridas naturalmente, por exemplo, a ideia de justo, de bom, de Deus, que são potências naturais da psique humana. Contudo, não significa que tais concepções sejam inatas. Por outro lado, para os estoicos, a concepção dos objetos sensíveis surge por confrontação (περίπτωσιν). Nesse modelo, o objeto se apresenta e suas qualidades afetam o sensório diretamente. Ao contrário disso, a concepção das coisas baseadas no pensamento de algo relacionado se dá por similaridade (ὁμοιότητα) ou por analogia. A magnificação (αὐξητικός) e a diminuição (μειωτικως) indicam modos analógicos de concepção mental. Por exemplo, um gigante, um pigmeu, o centro da terra, que é uma comparação com o centro de uma esfera pequena.

Há também a concepção por transposição ou substituição (μετάθεσις), quando algum elemento constituinte é logicamente transposto ou substituído, gerando uma concepção distinta do conteúdo natural, por exemplo, olhos no peito. Já na concepção surgida de uma combinação ou composição (σύνθεσις) parte de uma realidade é combinada com parte de outra distinta, compondo uma nova realidade, como o centauro. Ainda no modelo de concepção das coisas baseadas no pensamento de algo relativo, a concepção por oposição (ἐναντίωσις) se dá quando uma realidade não pode ser concebida por qualquer desses modos anteriores. Concebe-se, pois, pela observação de uma realidade totalmente antagônica, por exemplo, a morte não pode ser concebida se não pela observação e comparação com a vida. Além dessas, é também possível uma concepção mental surgir a partir da privação ou falta (στέρησις), na verdade, esse tipo é

75 DL, VII, 52.

118 similar ao anterior, no qual há um modelo comparativo, por exemplo, saber que o humano tem duas mãos e concebê-lo mentalmente sem uma delas.76

Outro modo de concepção diz respeito aos incorpóreos (ἀσώματος), que são o vazio (κενός), o tempo (χρόνος), o lugar (τόπος) e o dizível (λεκτόν). Todos eles, segundo os estoicos, são concebidos por transição ou transcendência (μετάβασίς).77 Contudo, antes de tratar de como o dizível chega à mente, é necessário delineamento da transição (μετάβασις) no sentido estrito do termo, que se aplica primordialmente aos incorpóreos. Desse modo, a transição ou transcendência (μετάβασις) pertence ao encadeamento dos eventos psíquicos que tem início na apresentação (φαντασία). À medida que o processo se desenvolve, a afecção se modifica pelas alterações psicossomáticas.

É nesse sentido que os estoicos colocam a impressão (φαντασία) e a cognição (κατάληψις) como funções próprias do hegemônico, sendo que a representação antecede ao pensamento (διάνοια), o qual, por seu turno, é capaz de colocar na forma de proposição aquilo que o sujeito experimenta pelos sentidos.78 Dessa maneira, é que o pensamento pode ser expresso ou proferido. Provavelmente, a passagem da afecção sensorial à compreensão lógica é análoga à passagem do discurso silente, que é a estruturação lógica da realidade apreendida na forma de proposições, ao discurso proferido, que é a manifestação sensível das capacidades intelectivas.

O exprimível (λεκτόν), uma vez proferido, transforma-se em uma impressão sensorial (φαντασία αἰσθητική). O incorpóreo, de certa maneira, é enformado pela linguagem. Por exemplo, o dizível (λεκτόν) é incorpóreo e não sofre ação nem age sobre um corpo. Porém, a razão (λόγος) é um corpo, pois identifica certa disposição da psique. Assim, quando a razão, nas suas elaborações, utiliza as experiências acumuladas e engendra uma proposição, esse resultado do pensamento é o efeito da razão que é corpo (σῶμα), agindo sobre o corpo natural. Essa primeira fase do discurso é o logos interior (λόγος ἐνδιάθετος), que, no processo de elocução verbal, realiza a mesma ação, na ordem inversa, isto é, a linguagem articulada (σῶμα) é causa da afecção (πάθος) nos interlocutores e a impressão sensível (φαντασία αἰσθητική) inicia o processo da cognição (κατάληψις).

76 DL, VII, 53 e SVF, II, 87 (parte).

77

LS, Vol. I, cap. 39D. e SVF, II, 88. 78 DL, VII 50 ss.

119 A transição (μετάβασις), como modo de acesso ao entendimento, foi concebida por Epicuro como um fluxo atômico, constituído por uma série interminável de imagens extremamente similares. Então, a mente, focada intencionalmente com o maior sentimento de prazer, alcança o entendimento.79 Na concepção epicurista, da ideia de um homem feliz, abençoado e repleto de bens, surge a ideia de um deus eterno, imperecível e feliz, através da intensificação dessas características percebidas no homem, que na ideia de Deus realiza sua suprema completude. Na verdade, fora a parte das emanações atômicas delineada por Epicuro, a escola do Pórtico concebe a transição de maneira muitíssimo similar, como descreve Diógenes Laercio:

De acordo com eles (os estoicos) é pelos sentidos que apreendemos preto e branco, áspero e suave, ao passo que é pela razão que apreendemos as conclusões da demonstração, por exemplo, a existência de deuses e sua providência (...) Além disso, existem noções que implicam uma espécie de transição (μετάβασις) para o domínio do imperceptível: tais são as de espaço e do significado (λεκτον) dos termos. As noções de justiça e bondade vêm por natureza (φύσις).80

A transição (μετάβασις) define uma passagem do princípio para a consequência. Descrita dessa maneira, é o processo de transcendência de um estado de coisas para outro. Em outras palavras, para que ocorra o entendimento, é necessária uma passagem do domínio do sensorial ao intelectual. Essa transcendência é mediada por algo perceptível. Por exemplo, é o caso da passagem do pensamento (διάνοια), que é uma disposição psíquica (ἕξις) para uma “elaboração racional” (έννοίας), que é um estado mental (σχέσις), ou melhor, evento mental (νοητικός). Do mesmo modo, também

há uma transição (μετάβασις) quando uma prenoção (πρόληψις), que é uma disposição mental, no momento em que a alma é submetida a uma impressão, gerando um impulso racional, transcende para o status de concepção (ἔννοια). Nesse caso, a mediação se dá pelo estado de coisas produzido pelo pensamento.

Visto dessa maneira, a transição (μετάβασις) é o processo metabólico da razão, onde aquilo que é sensível transcende para o lógico. Analogamente ao que ocorre com o fogo artífice (πῦρ τεχνικόν), que transcendendo se faz uma hexis (ἕξις), então transita para uma natureza (φύσις), a qual transcende em psique (ψυχή). Esse processo

79 CICERO, Op. cit. 1967, 1.43-9.

80

DIOGENES LAERTIUS. Op. cit. VII, 52. “(…) According to them (the Stoics) it is by sense that we apprehend black and white, rough and smooth, whereas it is by reason that we apprehend the conclusions of demonstration, for instance the existence of gods and their providence (…) Furthermore, there are notions which imply a sort of transition to the realm of the imperceptible: such are those of space and of the meaning of terms. The notions of justice and goodness come by nature.” Tradução nossa.

120 constitui transcendências do logos, nos três sentidos anteriormente descritos.81 Mesmo das asserções do logos, se pode inferir a transição mediada. Nela, linguagem (λόγος) é algo perceptível, mas o princípio ativo de tudo (λόγος) é uma transcendência, da linguagem perceptiva, passando pela razão (λόγος), estabelece o conceito de princípio gerador, isto é, Deus.

Desse modo, é possível uma analogia da relação entre afecção (πάθος) e o impulso racional (λογική ὁρμή). No próprio processo psico-epistemológico, fica evidente a passagem do sensível ao inteligível, como na transição (μετάβασις). Nesse processo, a afecção sempre se dá sobre o sensório, mas o entendimento pertence ao domínio do imperceptível. Portanto, para que essa paixão transcenda às “elaborações do pensamento” (έννοίας) e se torne um conceito, então, o hegemônico interpreta o impressor como uma representação sensível (φαντασία αἰσθητική). Nesse caso, a sensação é uma impressão em resposta (ἀντίληψις) àquela afecção originária. Daí o perceptível é julgado e consentido. Para os estoicos, o ato de assentir (συγκατάθεσις) é um estado mental como uma impressão racional (φαντασία λογική), a qual dispara o impulso sensível (αἰσθητική ὁρμή), impelindo o corpo em direção ao estímulo inicial.