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AÇÃO E DETERMINISMO ESTRUTURAL NA SOCIOLOGIA DA CULTURA

QUADRO CRONOLOGICO DE VIDA, OBRA E PRINCIPAIS ACONTECIMENTOS POLITICOS E ARTISTICOS.

CAPÍTULO 2 AÇÃO E DETERMINISMO ESTRUTURAL NA SOCIOLOGIA DA CULTURA

“O mais sublime seria apreender as coisas de forma que os fatos já fossem teoria.” Goethe Quando se trabalha com trajetórias intelectuais, biografias de artistas, ou quaisquer formulações sobre desempenho criativo, se é tentados a adotar a máxima de Goethe em epígrafe, como se ele tivesse intuído profeticamente todos os problemas. De fato, é reconhecidamente narcísico o mundo da criação artística e intelectual e não há nada que irrite mais um desses espécimes do que o conhecimento sobre as condições específicas da produção do conhecimento. É como se a esposa o retirasse do devaneio para comprar ovos na quitanda da esquina.

Talvez por isso, até bem pouco tempo atrás, a sociologia da cultura fosse uma espécie de filha enjeitada da causa sociológica. Três autores enfrentaram esta tarefa, no entanto, com fôlego, garra e estofo intelectual: Edgar Morin, Pierre Bourdieu e Norbert Elias. É deles que vou recolher os principais conceitos, para depois voltar a pensar a trajetória de José de Alencar, sua relação com a sociedade e os impactos do seu tempo e da sua rede de relações sobre sua obra e seu pensamento.

A maneira de dar conta das atividades dos intelectuais e literatos na sociologia depende estreitamente dos modelos sociológicos utilizados que são pouco uniformes na maneira de tratar autor, obra, sociedade e cultura. É bastante disforme também o tratamento que esses termos recebem em cada uma destas abordagens quanto ao tempo (sincronia e diacronia, historicidade e a-historicidade) e ao espaço (localismo, nacionalismo e universalismo).

Este capítulo não é, no entanto, um état de lieu da sociologia da cultura; é muito mais uma aferição do calibre e da pontaria utilizada até aqui para definirmos a questão-alvo que surge a todo o momento: é possível uma sociologia dos intelectuais que trabalhe do singular para o geral? Ou melhor, é possível partir dos dados de uma vida para o todo social? Ou para usar uma frase de Marcel Mauss (2001, p. 181): “[...] é Roma, é Atenas, é o francês médio, é o melanésio desta ou daquela ilha, e não aparece o direito de em si.”

O desafio perseguido com esta pergunta é integrar os dados de um percurso intelectual na recomposição do todo, de forma a assegurar “[...] o movimento do todo, o aspecto vivo, o instante fugidio em que a sociedade e os homens tomam consciência sentimental deles mesmos e de sua situação face a outrem.” (MAUSS, 2001, p. 180).

Bourdieu, figura dominante na sociologia dos intelectuais produzida nas duas últimas décadas, enfatizou em sua obra a necessidade de enxergarmos o todo relacional. O ataque à ilusão biográfica reiterado aqui encaminhou sua teoria para privilegiar a visão do campo simbólico visto como um conjunto de aparelhos de produção de bens culturais, que leva em consideração o papel dos agentes especializados na produção e difusão desses bens sem, no entanto, se interessar nunca pelo homem em carne e osso. Daí as críticas à sua teoria acusando-o de desencarnar (aspas) os atores:

(il) réduit toute la vie intellectuelle à une tentative par chachun de maximiser son intérêt, nom en tant qu’acteur rationnel, mais selon les lois propres à des logiques de “champ”. Il en résulte une assimililation des confrontations intelelctuelles à une simple logique des situations selon des schémas déshistoriciés e désusbtantialiés. (DOSSE, 1993, p. 113).24

O próprio Bourdieu, contudo, não resistiu à tentação e, temendo se transformar numa alma penada formuladora de conceitos, produziu no fim da vida sua própria sócio-análise, ressaltando à La magritte “Ceci n’est pas une biografie”. Referimo-nos ao livro Esquisse pour une auto-analyse, (em português “Esboço de uma auto-análise”, publicado em 2005). Para este “pecadinho” de fim de vida, ele usou dois argumentos, e um deles é auto-reflexivo: “Não pretendo me sacrificar ao gênero autobiográfico, sobre o qual já falei um bocado como sendo, ao mesmo tempo, convencional e ilusório. Queria apenas tentar reunir e revelar alguns elementos para uma auto-análise.” (BOURDIEU, 2005, p. 37).

Em outras palavras, “faço isto muito mais para mim mesmo do que para os outros. E para mim não estou tentando me explicar, mas me refazer”. O outro argumento é mais teórico:

24 Ele reduz toda vida intelectual a uma tentativa por cada um de maximizar seu interesse, não enquanto ator

racional, mas segundo as leis próprias as “lógicas de campo”. O que resulta uma assimilação das confrontações intelectuais a uma simples lógica das situações segundo esquemas a-históricos e des-subistancializado

Ao adotar o ponto de vista do analista, obrigo-me a reter (e permito-me fazê-lo) todos os traços pertinentes do ponto de vista da sociologia, isto é, necessários à explicação e à compreensão sociológicas, e tão somente esses traços. Mas, em vez de buscar produzir assim, como se poderia temer, um efeito de fechamento ao impor minha interpretação, tenciono desvelar tal experiência enunciada do modo mais honesto possível, ao confronto crítico, como se fosse qualquer outro objeto. Tenho perfeita consciência de que, se analisados nessa perspectiva e, como convém, segundo o “princípio de caridade”, todos os momentos de minha história, em particular os diferentes partidos assumidos em matéria de pesquisa, podem parecer algo ajustados à sua necessidade sociológica, ou melhor, justificados nesse registro, portanto, como se fossem muito mais racionais, ou, então, mais raciocinados, ou mais razoáveis do que de fato o foram, um pouco como se tivessem saído de um projeto consciente de si desde o começo. Ora, eu sei, e não farei nada para escondê-lo, que na realidade fui descobrindo aos poucos os princípios que guiavam minha prática mesmo no terreno da pesquisa. (BOURDIEU, 2005, p. 37-38).

Bourdieu já reduzira seu ardor estruturalista25 também no que diz respeito a negação da pertinência na análise do conteúdo das obras, ao sucumbir a Flaubert e sua A educação sentimental em As regras da arte (1996). O argumento que utuliza é que “[...] a estrutura do espaço social no qual transcorrem as aventuras de Frédéric, é também a estrutura do espaço social na qual o próprio autor Flaubert estava situado.” (BOURDIEU, 1996, p. 17).

Mas se cometeu no seu percurso intelectual dois pecados que considerava imperdoáveis, a ilusão biográfica e a tentação da análise conteudista, foi exatamente porque ele mesmo denegou estes aproches sem, no entanto os abandonar de corpo e alma. Como assinala Maurício Domingues:

[...] vale igualmente argumentar que, na verdade, a teoria de Bourdieu já há muito se mostra cristalizada em uma série de conceitos e procedimentos por vezes muito pouco claros, que são aplicados, até certo ponto, como receita de bolo. Nenhum autor contemporâneo fez tanto quanto Bourdieu para evidenciar as desigualdades sociais nas sociedades contemporâneas, em esferas às quais anteriormente se atribuía reduzida importância – notadamente no que tange à cultura. Porém, seu arcabouço teórico geral é

25

Vamos discutir logo mais o anti-humanismo do autor que aparece na sua dívida a Lévi-Strauss e no seu repúdio a Sartre.

problemático. De um lado, é extremamente rico e compartilha temas, interesses e soluções com outras correntes teóricas contemporâneas; de outro, precisa ainda de maior depuração, de ter suas categorias sistematicamente trabalhadas e refinadas, até porque ele próprio as propôs com certa autonomia e formalização (DOMINGUES, 2001. p. 62).

O problema central parece ser que o conceito de habitus, em Bourdieu, embora prometa muito como categoria, quando se trata de sua operacionalização na pesquisa oferece poucas possibilidades para se compreender a ação dos atores fora dos padrões estabelecidos. A capacidade de esses atores agirem mais por recursos e menos por constrangimentos e condicionamentos, possibilitaria uma análise mais rica.

Uma leitura atenta dos principais textos teórico-metodológicos dos quatro autores escolhidos parece mostrar algumas questões que permeiam todos eles, a saber: 1) a crítica da razão a-histórica; 2) a suposta autonomização do mundo intelectual; 3) a constituição de campos ou “indústrias”, de conhecimento e criação artística; 4) a mercantilização progressiva do mundo intelectual; 5) a educação escolar e o gosto artístico como forma de distinção social.

Estas cinco questões são estruturantes na busca da sociologia da cultura ao tentar se firmar com estatuto científico próprio.

Nesta parte da tese vamos tentar fazer uma análise crítica da sociologia da cultura a partir destes autores em três etapas principais: a) uma análise mais aprofundada dos conceitos de “habitus” e o caráter disposicional teoria das disposições na obra de Pierre Bourdieu; b) um exame sucinto de dois dos principais conceitos de Edgar Morin para operar com o mundo da criação; c) uma análise do conceito de “configuração” em Elias.

Na parte final, vamos debater a construção de um modelo de sócio-análise da vida intelectual em que o problema do subjetivismo e objetivismo, da estrutura e ação, que permeia toda a dificuldade de se sair do individual para o fato social total, seja enfrentado com uma decifração do conceito de habitus em Bourdieu e Norbert Elias.

Para avançar no debate, este trabalho propõe uma depuração, um refinamento dos conceitos, de modo a equilibrar a estrutura determinista, quase

homogênea que nasce da análise das posições no campo, em outras palavras, sugerir uma possibilidade de ação estruturante dos agentes sociais.

Assim, o habitus, de um conceito quase passivo, uma espécie de lençol de memória social, passaria, em determinados casos de ação criativa dos atores sociais a ter uma capacidade de formação e consolidação de novos campos simbólicos. Isto é a estruturação socializativa da personalidade individual não seria apenas como na perspectiva bourdieusiana restritiva, mas também habilitadora26.

Com o conceito, que vamos sugerir a utilização, os chamados profetas de Weber, retirado da sua teoria da religião, pretendemos superar o determinismo cultural. No caso de uma instância simbólica em construção, o profeta seria aquele capaz de estabelecer novos estoques de símbolos capazes de legitimar e justificar a unidade do sistema de poder.