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Ao analisar o campo da produção cultural, Bourdieu (1996, p. 148) propõe a existência de um espaço de possíveis “[...] que tende a orientar sua busca definindo o universo de problemas, referências, de marcas intelectuais (freqüentemente constituídas pelos nomes de personagens-guia).” Este espaço é um sistema de coordenadas que é preciso ter em mente para entrar no jogo.

Ao voltar à vaca fria das explicações externas e internas, Bourdieu (1996) ressalta o mérito de Michel Foucault, ao formular “o campo das possibilidades estratégicas”, mas acusa-o de oferecer a este conceito de episteme um poder sobrenatural. Foucault chamou de ilusão doxológica a pretensão de encontrar, no que chama de campo das polêmicas e nas “[...] divergências de interesses ou de hábitos mentais entre os indivíduos” (BOURDIEU, 1996, p. 57), um princípio explicativo do que se passa no campo das possibilidades estratégicas.

Para Bourdieu (1996), Michel Foucault transfere para o céu das ideias as oposições e os antagonismos que se enraízam nas relações entre produtores e os que se utilizam das obras analisadas.

A ideia de uma episteme totalmente autônoma causa urticárias em Bourdieu, pois impediria que déssemos conta das mudanças e não passaria de um essencialismo, ou fetichismo.

Mas se critica a eleição de fatores externos como essencialismo, Bourdieu também não concorda com a eleição de fatores internos, como no caso dos formalistas russos. O que ele deseja, é claro, é construir um sistema de relações entre os dois sistemas que evite a redução ao contexto, um reducionismo barato tão ao gosto da crítica marxista goldmanniana. O método da análise externa e da obra como reflexo, diz ele: “[...] se esgota em buscar nas características da existência singular do autor os princípios explicativos que só podem ser levados em conta, enquanto tal, o microcosmo literário no qual está inserido.” (BOURDIEU, 1996, p. 58).

Foi contra este curto-circuito redutor que ele desenvolveu a noção de

campo. A atenção exclusiva às funções levava a ignorar a questão da lógica interna

dos objetos culturais, sua estrutura como linguagem e até esquecer os grupos que produzem estes objetos (padres, juristas, intelectuais, pintores) entre outros.

Bourdieu credita a Marx Weber e a sua teoria dos agentes religiosos, a sua ideia de reintroduzir os especialistas. E também a sua ideia de aplicar um modo de pensar relacional ao espaço social dos produtores. Para ele, o microcosmo social no qual se produzem obras culturais é um espaço de relações objetivas entre posições – a do artista consagrado e a do artista maldito, por exemplo – e só é possível compreendê-lo situando cada agente em suas relações objetivas com todos os outros.

Neste projeto, Bourdieu quer oferecer às obras o papel de

[...] serem produto da luta entre os agentes que, em função de sua posição no campo, vinculada a seu capital específico, tem interesse na conservação, isto é, na rotina e na rotinização, ou na subversão, que freqüentemente toma a forma de uma volta às origens, à pureza das fontes e à crítica herética (BOURDIEU, 1996. p. 63).

Ele nos oferece então uma possibilidade de construção de uma estrutura homóloga, a estrutura das obras e a estrutura do campo artístico. Resumindo, ele diz que:

[...] cada autor, enquanto ocupa uma posição em um espaço, isto é, um campo de forças (irredutível a um simples agregado de pontos materiais), que é também um campo de lutas visando conservar ou transformar o campo de forças, só existe e subsiste sob as limitações estruturadas do campo (por exemplo, as relações objetivas que se estabelecem entre os gêneros); mas também que ele afirma a distância diferencial constitutiva de sua posição, seu ponto de vista, entendido como vista a partir de um ponto, assumindo uma das posições estéticas possíveis, reais ou virtuais, no campo dos possíveis (tomando, assim, posição em relação às outras posições). (BOURDIEU, 1996, p. 261).

É possível perceber com esta teoria do campo artístico que Bourdieu (1996) monta uma estrutura do campo e explica a lógica do seu funcionamento. O ponto que falta e que diz diretamente respeito à investigação que pretendemos fazer aqui é quanto à relação entre os autores, seus habitus e as forças do campo.

É neste momento que ele introduziu um conceito que nos parece fundamental: o da trajetória.

Diferentemente das biografias comuns, a trajetória descreve a série de posições sucessivamente ocupadas pelo mesmo escritor em estados sucessivos do campo literário, tendo ficado claro que é apenas na estrutura de um campo, isto é, repetindo, relacionalmente, que se define o sentido dessas posições sucessivas, publicações em tal e qual revista, ou tal ou qual editor, participação em tal ou qual grupo etc (BOURDIEU, 1996, p. 72).

Como se pode observar, a trajetória tenta fazer um desencantamento da criação artística, o que o autor considera o efeito de livrar o discurso crítico da tentação platônica do fetichismo das essências. Diz Bourdieu (1996):

Essa visão realista torna a produção do universal um empreendimento coletivo, submetido a certas regras, parece-me afinal, mais tranqüilizadora e, se posso dizê-lo, mais humana, do que a crença nas virtudes miraculosas do gênio criador e da paixão pura pela forma pura. A mesma lógica leva o autor a considerar que as histórias de vida, as biografias dos autores. As leis que regem a produção de discursos na relação entre habitus e um mercado aplicam-se a esta forma particular de expressão que é o discurso sobre si: e as narrativas de vida variam, tanto em sua forma quanto em seu

conteúdo, conforme a qualidade social do mercado no qual será apresentada (BOURDIEU, 1996, p. 72).

Neste sentido é que Bourdieu (1996) aponta para a ilusão biográfica como um discurso oficial e sugere o uso da noção de trajetória como uma série de posições sucessivamente ocupadas por um mesmo agente, em um espaço dele próprio em devir e submetido a transformações incessantes.