• Nenhum resultado encontrado

Ação Civil Pública vs Ação Coletiva

Com o advento da Constituição de 1988, a ação civil pública, regulamentada pela Lei nº 7.347/85, adquiriu status constitucional, sendo consagrada como instrumento de atuação do Ministério Público para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos (art. 129, III). Imperioso ressaltar que, mediante a expressão “outros interesses difusos e coletivos”, a Constituição Federal ampliou sensivelmente o objeto da Lei de Ação Civil Pública (LACP). Na verdade, originalmente, o projeto dessa lei continha previsão semelhante, que, entretanto, foi objeto de veto presidencial. Acredita-se que o veto foi motivado pelo temor de que as ações civis públicas fossem utilizadas para combater abusos cometidos pelo governo, nomeadamente na área tributária.

Após a alteração operada pela Lei Maior, a expressão “qualquer outro interesse difuso e coletivo” foi acrescentada ao art. 4º, IV da LACP pelo Código de Defesa do Consumidor. Este é o teor do art. 1º daquela norma:

Art. 1º. Regem-se pelas disposições desta Lei, sem prejuízo da ação popular, as ações de responsabilidade por danos morais e patrimoniais causados:

I - ao meio-ambiente; II - ao consumidor;

III – a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico; IV – a qualquer outro interesse difuso ou coletivo;

V - por infração da ordem econômica e da economia popular; VI - à ordem urbanística.

Parágrafo único. Não será cabível ação civil pública para veicular pretensões que envolvam tributos, contribuições previdenciárias, o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço - FGTS ou outros fundos de natureza institucional cujos beneficiários podem ser individualmente determinados.

Infere-se, pelo teor dispositivo supracitado, que a ação civil pública se destina à proteção de direitos difusos e coletivos. Desse modo, a ausência de menção aos direitos individuais homogêneos faz emergir uma dúvida: pode a ação civil pública ser utilizada para tutela de direitos individuais homogêneos?

O Código de Defesa do Consumidor previu, como mecanismo de tutela de direitos individuais homogêneos, a ação coletiva, o que levou alguns doutrinadores a defender que esses direitos só poderiam ser tutelados por meio de ação coletiva, e não de ação civil pública. Assim, consoante esse posicionamento, haveria duas ações diferentes: a ação coletiva para defesa de direitos individuais homogêneos, e a ação civil pública para defesa de direitos difusos e coletivos. Nesse jaez, Pinho (2002, p. 47) assevera que:

Com a criação da ação coletiva, resolveu-se o problema então existente acerca do cabimento ou não da ação civil pública para a defesa de direito individual homogêneo. Assim, nos dias atuais, deve-se utilizar a ação civil pública para a tutela dos direitos difusos e coletivos (art. 81, parágrafo único, incisos I e II do C.D.C.), e ação coletiva para a defesa do direito individual homogêneo (inciso III).

Contudo, adotamos o posicionamento segundo o qual os direitos individuais homogêneos podem ser tutelados mediante ação civil pública, uma vez que não há diferença substancial entre as duas ações, mas apenas uma diferença procedimental, decorrente da diversidade de natureza jurídica entre os direitos individuais homogêneos e os direitos difusos e coletivos. Nessa perspectiva, Vigliar (2008, p. 47) preconiza que:

É natural que determinados incidentes procedimentais ocorram e se justifiquem, pois, na realidade, quando ajuizada ação coletiva (ou ação civil pública) para a defesa desses interesses, contamos com uma demanda de estrutura processual coletiva (alterações na disciplina da legitimidade e coisa julgada material) reservada, não obstante, à defesa de interesses divisíveis, cindíveis, atribuíveis a cada um dos interessados que compõem a coletividade prejudicada pelo conjunto fático ocorrido, capaz de congregar todos os interessados.

Historicamente, quem primeiro fez uso da expressão “ação civil pública” foi o jurista Piero Calamandrei, que a empregou em contraposição à expressão “ação penal pública”, utilizando-a para identificar a ação não-penal ajuizada pelo Ministério Público (VIGLIAR, 2008).

No Brasil, a primeira norma que empregou expressão “ação civil pública” foi a Lei Complementar nº 40/8120:

Art. 3º. São funções institucionais do Ministério Público:

I - velar pela observância da Constituição e das leis, e promover-lhes a execução; II - promover a ação penal pública;

III - promover a ação civil pública, nos termos da lei;

Ocorre que, diversamente do que Calamandrei preconizava, a Lei nº 7.347/85 empregou a denominação “ação civil pública” para identificar não a legitimidade ativa do Ministério Público, mas as ações que têm por objeto a tutela de direitos difusos e coletivos. Sobre a questão, Vigliar (2008, p. 53) explica que:

O Procurador-Geral de Justiça de São Paulo, em 13 de junho de 1984, remetia, por ofício, ao então Presidente da Confederação Nacional do Ministério Público (CONAMP) um texto, versado em forma de anteprojeto de lei, precedido de uma justificativa, para que fosse encaminhado ao executivo da União, disciplinando a chamada ação civil pública. Nessa justificativa, dois detalhes essenciais são destacados: 1º) que o anteprojeto fazia referência ao art. 3º, III, da Lei Complementar n. 40/81, que dizia constituir função institucional do Ministério Público o ajuizamento da ação civil pública [...] 2º) que reconhecia que o anteprojeto tinha como base aquele outro produzido pelos juristas Ada Pellegrini Grinover, Cândido Rangel Dinamarco, Kazuo Watanabe e Waldemar Mariz de Oliveira Junior (remetido à Câmara dos Deputados, onde recebeu o n. 3.034/84)21.

20 Trata-se da primeira Lei Orgânica Nacional do Ministério Público, promulgada em 14 de dezembro de 1981,

contendo normas acerca da organização do Ministério Público dos Estados.

21 Eis é a ementa do referido projeto: Disciplina as ações de responsabilidade por danos causados ao meio

ambiente, previstas no parágrafo primeiro do artigo 14 da Lei nº 6.938, de 31 de agosto de 1981, ou a valores artísticos, estéticos, históricos, turísticos e paisagísticos, e dá outras providências. Disponível em: <http://www2.camara.gov.br/proposicoes>. Acesso em 18 ago. 2009.

Ressaltamos que o anteprojeto elaborado pelos doutrinadores mencionados acima não continha a expressão “ação civil pública”, mesmo porque tais doutrinadores criticavam a teoria imanentista da ação22. Todavia, não foi esse o anteprojeto aprovado, e sim o formulado pelo Ministério Público. A partir daí, a expressão “ação civil pública” consagrou-se na prática.

Assim, a legitimidade ativa para propositura da ação civil pública, no ordenamento jurídico brasileiro, não foi conferida exclusivamente ao Ministério Público23, de forma que o termo “civil pública” não identifica o ente legitimado à propositura da ação. Ao revés, a ação civil pública constitui-se em instrumento processual adequado para a tutela de interesses difusos e coletivos.

A bem da verdade, a ação civil pública não deixa de ser uma ação coletiva, pois serve à tutela de direitos coletivos em sentido amplo. Por isso, não há razão em se diferenciar a ação civil pública da ação coletiva, embora esta expressão se mostre mais adequada.

Buscando o autêntico conceito da ação civil pública, bem como a terminologia adequada, Mazzilli (2009, p. 74) aduz o seguinte:

Em essência, a ação civil publica da Lei nº 7.347/85 nada mais é que uma espécie de ação coletiva, como também o são o mandado de segurança coletivo e a ação popular. Como denominaremos, pois, uma ação que verse a defesa de interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos? Se ela estiver sendo movida pelo Ministério Público, o mais correto, sob o prisma doutrinário, será chamá-la de ação civil pública. Mas se tiver sido proposta por associações civis, mais correto será denominá-la de ação coletiva. Sob o enfoque puramente legal, será ação civil pública qualquer ação movida com base na Lei n. 7347/85, para a defesa de interesses transindividuais, ainda que seu autor seja uma associação civil, um ente estatal ou o próprio Ministério Público, entre outros legitimados; será ação coletiva qualquer ação fundada nos arts. 81 e s. do CDC, que verse a defesa de interesses transindividuais.

22 Para a teoria imanentista, a ação é uma manifestação do direito material, ou seja, é a forma como o direito

material se manifesta após sua violação. Essa teoria influenciou o legislador brasileiro na edição do art. 75 do Código Civil de 1916: “a todo direito corresponde uma ação, que o assegura”. Embora esse dispositivo não tenha desaparecido do ordenamento jurídico (arts. 80, I e 83, II e III, do Código Civil de 2002), é hoje interpretado de forma diversa, despido de sua influência imanentista, sendo entendido como a “fonte de onde emana a garantia de tutela jurisdicional adequada” (CÂMARA, 2009, p. 108).

23 Segundo o art. 5º da LACP, com redação dada pela Lei nº 11.448 de 2007, “têm legitimidade para propor

ação principal e a ação cautelar: I - o Ministério Público; II - a Defensoria Pública; III - a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios; IV - a autarquia, empresa pública, fundação ou sociedade de economia mista; V - a associação que, concomitantemente: a) esteja constituída há pelo menos 1 (um) ano nos termos da lei civil; b) inclua, entre suas finalidades institucionais, a proteção ao meio ambiente, ao consumidor, à ordem econômica, à livre concorrência ou ao patrimônio artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico.

Na realidade, o Código de Defesa do Consumidor estabeleceu uma relação de reciprocidade com a Lei nº 7.347/85, o que permitiu a defesa de direitos individuais homogêneos mediante ação civil pública. A esse respeito, Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery (2002, p. 1373) dispõem:

Pelo CDC 90, são aplicáveis às ações fundadas no sistema do CDC as disposições processuais da LACP. Pela norma ora comentada, são aplicáveis às ações ajuizadas com fundamento na LACP as disposições processuais que encerram todo o Tít. III do CDC, bem como as demais disposições processuais que se encontram pelo corpo do CDC, como, por exemplo, a inversão do ônus da prova (CDC 6º VI). Este instituto, embora se encontre topicamente no Tít. I do Código, é disposição processual e, portanto, integra ontológica e teleologicamente o Tít. III, isto é, a defesa do consumidor em juízo. Há, portanto, perfeita sintonia e interação entre os dois sistemas processuais, para a defesa dos direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos.

Nessa diretriz, percebe-se que o que torna uma demanda coletiva é a modalidade de interesses por ela protegidos. Ainda que esses interesses sejam acidentalmente coletivos, isto é, individuais, mas coletivamente tratados, a demanda será coletiva, e a ação civil pública será adequada para tutelá-los. A respeito, nos ensina Rodolfo de Camargo Mancuso (1998 apud CASTILHO, 2006, p. 121-122):

Na verdade, uma ação é coletiva quando algum nível do universo coletivo será atingido no momento em que transitar em julgado a decisão que a acolhe, espraiando assim seus efeitos, seja na notável dimensão dos interesses difusos, ou ao interior de certos corpos intercalares onde se aglutinam interesses coletivos, ou ainda no âmbito de certos grupos ocasionalmente constituídos em função de origem comum, como se dá com os chamados “individuais homogêneos.”

Impende salientar que as ações coletivas para defesa de direitos individuais homogêneos não representam uma soma das ações individuais, pois esses direitos recebem tratamento processual coletivo até a prolação da sentença genérica, que dá ensejo à fase de liquidação e execução individual. Nesse sentido, manifesta-se Luiz Paulo da Silva Araújo Filho (2000 apud DIDIER JR.; ZANETI JR., 2009, p. 78):

Uma ação coletiva para a defesa de direitos individuais homogêneos não significa a simples soma das ações individuais. Às avessas, caracteriza-se a ação coletiva por interesses individuais homogêneos exatamente porque a pretensão do legitimado concentra-se no acolhimento de uma tese jurídica geral, referente a determinados fatos, que pode aproveitar a muitas pessoas. O que é completamente diferente de apresentarem-se inúmeras pretensões singularizadas, especificamente verificadas em relação a cada um dos respectivos titulares do direito.

Dessa forma, o disposto no Capítulo II, do Título III do CDC, intitulado “Das ações coletivas para defesa de interesses individuais homogêneos”, não versa acerca de uma ação diferenciada, mas de um procedimento diferenciado, o que decorre da própria natureza dos direitos individuais homogêneos.

No plano legal, a Lei nº 8.625/93 prevê a possibilidade do uso de ação civil pública para a tutela de direitos individuais homogêneos:

Art. 25. Além das funções previstas nas Constituições Federal e Estadual, na Lei Orgânica e em outras leis, incumbe, ainda, ao Ministério Público:

[...]

IV - promover o inquérito civil e a ação civil pública, na forma da lei:

a) para a proteção, prevenção e reparação dos danos causados ao meio ambiente, ao consumidor, aos bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico, e a outros interesses difusos, coletivos e individuais indisponíveis e homogêneos;

Destaque-se que o Supremo Tribunal Federal admite o cabimento da ação civil pública para defesa de direitos individuais homogêneos:

E M E N T A: DIREITOS INDIVIDUAIS HOMOGÊNEOS - SEGURADOS DA PREVIDÊNCIA SOCIAL - CERTIDÃO PARCIAL DE TEMPO DE SERVIÇO - RECUSA DA AUTARQUIA PREVIDENCIÁRIA - DIREITO DE PETIÇÃO E DIREITO DE OBTENÇÃO DE CERTIDÃO EM REPARTIÇÕES PÚBLICAS - PRERROGATIVAS JURÍDICAS DE ÍNDOLE EMINENTEMENTE CONSTITUCIONAL - EXISTÊNCIA DE RELEVANTE INTERESSE SOCIAL - AÇÃO CIVIL PÚBLICA - LEGITIMAÇÃO ATIVA DO MINISTÉRIO PÚBLICO - A FUNÇÃO INSTITUCIONAL DO MINISTÉRIO PÚBLICO COMO

"DEFENSOR DO POVO" (CF, ART, 129, II) - DOUTRINA - PRECEDENTES - RECURSO DE AGRAVO IMPROVIDO. - O direito à certidão traduz prerrogativa jurídica, de extração constitucional, destinada a viabilizar, em favor do indivíduo ou de uma determinada coletividade (como a dos segurados do sistema de previdência social), a defesa (individual ou coletiva) de direitos ou o esclarecimento de situações. - A injusta recusa estatal em fornecer certidões, não obstante presentes os pressupostos legitimadores dessa pretensão, autorizará a utilização de instrumentos processuais adequados, como o mandado de segurança ou a própria ação civil pública. - O Ministério Público tem legitimidade ativa para a defesa, em juízo, dos direitos e interesses individuais homogêneos, quando impregnados de relevante natureza social, como sucede com o direito de petição e o direito de obtenção de certidão em repartições públicas. Doutrina. Precedentes.24.

Imperioso consignar que tramita no Congresso Nacional o Projeto de Lei nº 5.139/200925, denominado “Nova Lei da Ação Civil Pública”. Esse projeto tem por objetivo disciplinar a ação civil pública para defesa de interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos. Se aprovado, irá unificar o sistema de tutela coletiva, uma vez que prevê a revogação/derrogação de diversos diplomas tais como a Lei nº 7.347/85, o Código do Consumidor (Lei 8.078/90) e o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90). Eis o teor do art. 1º do supracitado projeto:

Art. 1º Regem-se pelas disposições desta Lei as ações civis públicas destinadas à proteção:

I - do meio ambiente, da saúde, da educação, do trabalho, do desporto, da segurança pública, dos transportes coletivos, da assistência jurídica integral e da prestação de serviços públicos;

II - do consumidor, do idoso, da infância e juventude e das pessoas portadoras de deficiência;

III - da ordem social, econômica, urbanística, financeira, da economia popular, da livre concorrência, do patrimônio público e do erário;

IV - dos bens e direitos de valor artístico, cultural, estético, histórico, turístico e paisagístico; e

V - de outros interesses ou direitos difusos, coletivos ou individuais homogêneos.

24 STF, RE 472489 AgR, Relator: Min. Celso de Mello, julgado em 29/04/2008. Disponível em: <www.stf.

jus.br>. Acesso em 18 set. 2009.

25 Disponível em: <www.camara.gov.br>. Acesso em 26 out. 2009. Atualmente, referido projeto encontra-se na

Observe-se que, embora já tenhamos no Brasil um avançado mecanismo de tutela coletiva, a sistematização poderá ser vantajosa, notadamente pela reunião dos princípios e regras do direito coletivo, organizando e uniformizando esse ramo do direito. Ademais, esse Projeto confere ampla proteção aos direitos individuais homogêneos, pois não os limita a uma ou outra relação jurídica, podendo representar um avanço na tutela desses direitos, uma vez que tem a aptidão de por fim a determinadas controvérsias existentes na doutrina e na jurisprudência, que acabam por restringir o âmbito de proteção coletiva desses direitos26.

Pelo exposto, podemos concluir que a ação civil pública é um instrumento adequado para a defesa de direitos individuais homogêneos. Trata-se, em verdade, de um mecanismo de atuação do Ministério Público – embora não exclusivamente – para a defesa de direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos.

Documentos relacionados