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A ação do professor frente ao currículo

Ao serem perguntadas se promovem algum tipo de alteração nos objetivos de ensino quando têm alunos com deficiência intelectual em seu grupo, foi possível distinguir três tipos de respostas por parte das entrevistadas, mesmo que tenham citado outros elementos da prática pedagógica que não objetivos propriamente ditos:

A. não fazem adaptações: “São os mesmos objetivos. [...] a gente tenta fazer as mesmas atividades com ela para que ela não fique excluída. Ela tem que ser inclusa no grupo, fazer as mesmas atividades. Só com atenção maior, atenção especial, com aquele carinho que eu te falei que as crianças têm com ela. Mas ela não é diferente. [...] Os objetivos são os mesmos [...] Senão eu prejudicaria os demais alunos” (Profa Dora); “Socialização

sempre” (Profa Marcela); “E eu não mudei o projeto por causa dele porque ele tem que

ser incluído de acordo com a normalidade [...]. Já que é inclusão, ele vai entrar e vai ser incluído dentro daquela turma normal (Profa Marina)”.

As professoras que declaram não fazer adaptações apóiam-se em argumentos que parecem procurar “resguardar” o aluno com deficiência intelectual, protegendo-o de algo perverso, mantendo-o “junto” com o grupo nas mesmas propostas e atividades. Dessa forma, pensamos que, procurando evitar uma possível discriminação em função da explicitação das diferenças, os alunos (com e sem deficiência) podem acabar tendo sua(s) diferença(s) negada(s) dentro do grupo, sua individualidade descaracterizada e, conseqüentemente, é possível dizer que suas necessidades não são atendidas, por não serem também reconhecidas.

Sabemos da dificuldade de implantar uma diferenciação da proposta em um grupo em que o trabalho costuma ser o mesmo para todos os componentes, inclusive em função da configuração histórica que temos da escola e do currículo (HAMILTON, 1992; JULIÁ, 2002; SAVIANI, 2003). Mais difícil ainda, cremos, quando o questionamento pela diferenciação parte da chegada da deficiência, do encontro com a deficiência, e não do reconhecimento das diferenças individuais que, quaisquer que sejam, podem exigir, em algum momento do trabalho pedagógico, atuação diferenciada entre os alunos.

Nessa perspectiva, é fundamental destacar o que Silva, F. (2004) declara: “A deficiência não é somente um efeito, uma conseqüência: ela é partícipe” (p. 3) e na escola deve, portanto, fazer parte de um movimento que a inclua de fato em uma estrutura que se busque para todos, sem rupturas, sem diferenciações que descaracterizem os sujeitos, mas que reconheça, considere, valide e valorize todas as diferenças individuais. Essa inquietação pode fazer parte de um movimento pela busca da construção de um currículo

possível, ajustado, justo, em que haja espaço para as singularidades dentro da diversidade (FIERRO, 2004; MITTLER, 2003; TORRES GONZÁLEZ, 2002).

B. têm intenção de fazer adaptações: “eu procuro adequar tendo em vista a dificuldade da N., [...] mas eu procuro adequar. Eu não faço diferença dela entre os demais. Então, tudo que eu dou para as crianças, eu dou para ela também, só que ela tem aquela dificuldade, então ela não acompanha como outros, mas eu não procuro diferenciá-la dos outros. [...] Eu procuro acompanhá-la individualmente naquela atividade. [...] tudo com ajuda da professora” (Profa Cecília); “como adequar as atividades ao aspecto cognitivo deficiente,

que é o que ela tem, que essa acho que é uma preocupação grande” (Profa Clara).

Por sua vez, as professoras que destacam a importância das adaptações para o processo de aprendizagem de seus alunos (especificamente com deficiência intelectual) destacam a dificuldade que encontram para tomar decisões a esse respeito, e também para pensar em alternativas de encaminhamentos ou materiais, por exemplo. Frente a isso, a “adaptação” mais citada configura-se no tipo de atendimento oferecido aos alunos com deficiência intelectual em sala: acompanhamento individualizado, “personalizado”.

No entanto, parece-nos, a partir da fala das professoras, que tal atitude pode dever- se à expectativa de que os alunos tenham êxito nas propostas que lhes são oferecidas; ou seja, contando com o apoio próximo das professoras, os alunos com deficiência intelectual “conseguem” cumprir as tarefas dadas. O que as respostas sugerem é que talvez não fique claro às professoras em que dimensões do currículo determinado aluno poderia de fato precisar de ajustes e / ou adaptações. Não foi citado nenhum procedimento de avaliação ou acompanhamento por meio do qual a equipe pedagógica responsável pela unidade de ensino pudesse apoiar a professora na determinação das necessidades de seus alunos.

A adaptação que fazem parece ser no encaminhamento e na forma de apoiar os alunos durante a produção. Tal modificação na atuação do professor, embora possa ser considerada uma adaptação curricular de acesso ao currículo que incide sobre a metodologia e a organização didática (BRASIL, 1999), talvez não garanta a promoção de avanços e de novas aprendizagens, por não levarem em consideração uma avaliação inicial e bastante ampla do aluno, e ainda o aspecto do currículo de referência a partir do qual a modificação é feita; ou seja, independentemente do conteúdo em jogo, a modificação feita em relação à forma como os demais alunos são atendidos refere-se a uma ajuda mais próxima por parte da professora aos alunos com deficiência intelectual.

Algumas professoras usaram exemplos de adaptações que vêm fazendo que, de certa forma, podem cair em empobrecimento do currículo ao qual o aluno com deficiência

intelectual tem acesso, diferentemente dos demais. Um exemplo disso é a proposta de quebra-cabeças ou desenho (Profa Ana Carolina) feita a alunos com deficiência intelectual

quando seus colegas participam de atividades desafiadoras que envolvem conhecimentos sobre leitura e escrita, ou mesmo a substituição dos objetivos por propostas como dançar ou correr (Profa Letícia). Com isso, podemos dizer que uma mudança que seja feita no

currículo que não conte com uma avaliação criteriosa das possibilidades e limitações do aluno também pode acabar configurando-se como uma situação de discriminação.

C. adaptam alguns aspectos: aquelas que declararam que fazem algumas “mudanças” em relação aos objetivos, exemplificaram citando:

- mudanças em objetivos: “É separado, o grupo trabalha com objetivos determinados dessa faixa etária que ela não acompanha, eu trabalho com ela em separado, praticamente individual” (Profa Ana Carolina); “não é a mesma coisa que os outros, não, é diferente”

(Profa Marina).

- mudanças na prática, ou seja, em algumas atividades que, de certa forma, se diferenciam daquelas propostas ao restante do grupo de alunos: “por exemplo, eu estou com a sala de 27 copiando [...] um texto sobre uma receita que nós tenhamos trabalhado em sala de aula, eu não posso dar essa atividade para o B., não tem objetivo nenhum eu dar aquilo ali para ele; não vai fazer. Então, aí eu vou entrar com um jogo, um quebra-cabeça, alguma coisa diferente para ele para ele poder estar trabalhando no horário que os outros estão trabalhando” (Profa Fabiana); “eu procuro fazer atividades mais de dançar, correr,

brincar, vou pro parque” (Profa Letícia).

As adaptações citadas pelas professoras que declaram fazer algumas alterações em seu trabalho contemplam mudanças naquilo que designam como objetivos, e também em atividades pensadas para o grupo de maneira geral, e que as professoras julgam “não ter sentido” ou “objetivo” para os alunos com deficiência. Com isso, tomando como referência o material do governo federal já analisado (BRASIL, 1999), podemos dizer que as professoras entrevistadas vêm promovendo uma prática de adaptações curriculares feitas em nível individual (pois não parecem focalizar nem o currículo em geral, nem tampouco o currículo de uma determinada classe) e que poderiam ser consideradas

adaptações curriculares não-significativas (relativas a objetivos e conteúdos ou a procedimentos didáticos e atividades) (BRASIL, 1999).

Entretanto, cabe questionar esse aspecto, pois, de acordo com o documento supracitado, as adaptações curriculares não-signifi cativas relativas a objetivos e conteúdos devem priorizar áreas, unidades ou tipos de conteúdos ou de objetivos, ou ainda seqüenciar ou eliminar conteúdos

considerados secundários. Porém, para que tais decisões sejam tomadas, é imprescindível que uma avaliação bastante criteriosa e cuidadosa seja realizada junto aos alunos, de modo que as novas propostas feitas aproximem-se de fato do atendimento das necessidades individuais e possam ter uma continuidade coerente ao longo do ano letivo.

O questionamento amplia-se ao pensarmos nas adaptações curriculares não- significativas relativas a procedimentos didáticos ou atividades; novamente, o documento citado descreve tal adaptação como a possibilidade de introduzirmos atividades alternativas ou complementares àquelas inicialmente previstas – por exemplo modificando-se o nível de complexidade ou produzindo-se adaptação de materiais. Nas entrevistas, uma das professoras, que diz sentir necessidade de adaptações, declara sentir dificuldade para planejá-las, para tomar as decisões a esse respeito: “Só que existe aquela preocupação com a parte cognitiva também: como adequar as atividades ao aspecto cognitivo deficiente que é o que ela tem, que essa acho que é uma preocupação grande. Porque a outra parte, a parte social, corre super bem. Agora, essa parte cognitiva é a que a gente tem mais dificuldade” (Profª Clara). Assim, a forma como vem sendo proposto que seja feito o atendimento a alunos com deficiência intelectual em classes comuns não parece apoiar a prática em sala de aula, pois não ajuda o professor a rever e a replanejar sua prática junto aos alunos. Assim, oferece-se a tais alunos acesso àquilo que estiver disponível a cada momento.

O que chama a atenção na análise das respostas dadas às entrevistas é o fato de as alterações citadas não nos parecerem planejadas, decididas a partir de critérios educacionais que levassem em conta as possibilidades e necessidades dos alunos. O que tais respostas sugerem é que são oferecidas atividades diferentes aos alunos com deficiência intelectual; porém, “qualquer” atividade pode servir, o que nos parece indicar que as adaptações podem ter um sentido de improviso em sala de aula. Oferece-se uma atividade que esteja disponível e com a qual o aluno seja capaz de lidar. Aparentemente, falta uma análise criteriosa dos conteúdos envolvidos em cada atividade, para que as decisões em relação às alterações (significativas ou não, em função da denominação atribuída) feitas em relação ao currículo comum possam ser tomadas de maneira produtiva.

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