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CAPÍTULO 3 A FRAUDE OBJETIVA NO DIREITO CIVIL E O POSSÍVEL

3.1 As medidas judiciais de conservação da garantia geral

3.1.3 A ação revocatória

A ação revocatória é, majoritariamente, apontada como originária da ação pauliana romana e somente na Idade Média, com a especialização do direito comercial, passou a ser o instrumento de recomposição do patrimônio do devedor mercantil, em sede de procedimento falimentar. Até a sistematização do direito comercial, era a ação pauliana que se utilizava para a defesa dos interesses dos credores, prejudicados pelo esvaziamento patrimonial do devedor comerciante e, à medida que a ação revocatória foi exclusivamente aplicada no direito comercial, foi se afastando de sua origem, compondo contornos próprios (ABRÃO, 1980, p. 28).

A primeira diferenciação se dá pela consequência jurídica, que é a ineficácia, tendo sido considerada a forma mais adequada de tutela do crédito, já que algumas vezes o ato praticado em prejuízo da massa falimentar pode não ser necessariamente inválido. Assim, pela ineficácia, é possível fazer retornar o bem à massa, para garantia do pagamento dos credores coletivos, independentemente de se aferir sua invalidade. Por outro lado, a ineficácia aqui é meramente relativa à massa, podendo produzir outros efeitos, quando o ato for válido.

A segunda diferenciação é que se pode lançar mão do período suspeito para investigar atos que tenham sido praticados em prejuízo da massa, o que não ocorre no procedimento da insolvência civil, para efeito da ação pauliana.

A ação revocatória tem natureza constitutiva negativa, por cassar os efeitos de um ato ou de um negócio, que prejudicam a garantia de efetividade da solvência de um crédito, devendo-se concluir que é direito potestativo do credor submeter o devedor a tal satisfação, não podendo este agir de outro modo, que não a de solver o passivo. Se há condutas que ameaçam essa condição, então efetivamente pode o titular do direito exigir judicialmente a desconstituição dos efeitos pontualmente nocivos. É a deseficacização do ato ou do negócio:

A ação revocatória falencial oferece a extraordinária particularidade de ser subtrativa de parte de elemento, da vox, que não deixa desfazer-se o negócio juridico. Não se assemelha à ação de nulidade, nem à de anulação, nem à de rescisão. Devido à lateralidade da fraus, satisfaz-se o Estado em tutelar os credores do falido com essa medida de eficácia relativa, obtida em ação constitutiva negativa. Daí a importância enorme da diferença entre a ação de declaração de ineficácia dos atos praticados pelo devedor insolvente e falido e a ação revocatória falencial, em caso de fraude contra os credores, mesmo pouco antes de se encerrar a falência. Mas ainda entre as ações revocatórias falenciais e as ações de anulação, inclusive por fraude contra credores. Naquelas, não se desconstitui existência; só se desconstitui

eficácia (PONTES DE MIRANDA, 1965, p. 132).

Trata-se, no mais das vezes, de credores simultâneos, que buscam ao mesmo tempo, a satisfação de seus créditos. O primeiro, já constituído, e o segundo, que se constitui para fraudar aquele, quando o caso é de fraude efetiva. A inadimplência do primeiro, em razão da satisfação do segundo, é que vai gerar o direito do primeiro de exigir a cassação dos efeitos do segundo negócio, posto que a manutenção deles implicaria na violação da garantia geral. Em ambos os casos, o devedor está submetido ao direito potestativo que decorre da obrigação contraída.

A pretensão de ineficácia de atos ou negócios fraudatórios pode ser levada a cabo pela vítima da fraude, mesmo correndo o risco de seu crédito não chegar a ser satisfeito, em razão da instalação do concurso de credores, ante a insolvência do devedor, em procedimento meramente declaratório ou necessariamente revocatório, pois o objetivo é conservar a garantia patrimonial, não importando nesse momento a quem essa garantia irá beneficiar.

Embora possa haver decisões declaratórias que tenham força condenatória, como decorrência da execução natural que se extrai da prestação a que a declaração se refere (DIDDIER JR., 2010, p. 215), dispensando qualquer outro procedimento judicial condenatório, há que se questionar da pertinência de duas ações com a mesma finalidade, para atacar os efeitos nocivos de atos e negócios, que esvaziam o patrimônio do devedor em prejuízo dos credores, especialmente porque, como visto “contrariamente à ação constitutiva que visa a modificar um estado jurídico, estabelecendo uma situação jurídica nova, a ação declaratória objetiva apenas declarar a existência ou inexistência de uma relação jurídica, confirmando-a ou não” (CUNHA, 2013, p. 159).

Na Lei de Falência e Recuperações, as ações previstas têm aplicações diferentes: a declaratória para os atos objetivos, que independem da intenção de lesar o credor; e a revocatória para os atos subjetivos, que necessitam da prova de conluio fraudulento ou da intenção de prejudicar. No caso da mera declaração, autoriza a lei, inclusive, a atuação ex

officio do julgador, baseada na prática de qualquer dos atos relacionados no rol apertado do

artigo 129. Em se tratando dos mesmos atos, ou outros ali não relacionados, que tenham sido especificamente praticados no objetivo final de fraudar os credores, apenas mediante provocação pode o juiz cassar os seus normais efeitos jurídicos. Neste caso, tem legitimidade ativa qualquer credor, o administrador judicial ou membro do Ministério Público.

Se a revocatória é, como toda sentença, também declaratória, pois decorre de atividade interpretativa do julgador, que, ao integrar o direito, também o declara, não haveria sentido para dois procedimentos distintos, já que a segunda se contém na primeira. Claro que, em se tratando de sistema especializado, como o falimentar, leva-se em conta os atos praticados pelo empresário insolvente após decretada a insolvência, que é o seu marco regulatório. Qualquer dos atos elencados no artigo 129, se praticados após a decretação da falência, da autorização da recuperação judicial ou do recebimento do acordo em recuperação extrajudicial, independentemente de circunstâncias subjetivas do devedor ou do terceiro, ensejará a declaração de ineficácia, tenha ou não sido solicitada por alguém, em face da permissão legal da ação de ofício do magistrado.

A lei, atenta à importância de preservação da garantia geral como manutenção da segurança no tráfico jurídico negocial, construiu um sistema de tutela do crédito, sem levar em consideração sua natureza, anterioridade ou quantificação. O que importa é fazer voltar à massa falida os bens que podem servir, eventualmente, de satisfação a credores objetivamente protegidos pela lei, elencados hierarquicamente conforme clara apreciação econômica de importância à função social da empresa. Se há divergências quanto a esse sistema de elaboração do rol de credores do artigo 83 da lei falimentar, não cabe aqui discutir.

A opção do legislador em simplificar os procedimentos de ineficácia decorrentes de atos objetivamente considerados, dando mais dinâmica e celeridade à tutela do crédito, é interessante, pois deixa as questões mais complexas para a ação revocatória, de procedimento ordinário, com possibilidades mais amplas de defesa e contraditório, e as variadas insurgências recursais.

Em síntese, a ineficácia de atos decorrente do reconhecimento prévio do conluio entre o devedor e o terceiro, destinado objetivamente para fraudar credores, deve ser objeto de ação constitutiva e não meramente declaratória, pelas restrições que a ação mesma oferece, como

supramencionado. Como já entendia Pontes de Miranda, se a ação se refere ao plano da validade de um ato jurídico, não se presta à ação declaratória, embora esse entendimento tenha sido temperado pela aceitabilidade de declaratória em atos nulos, nunca nos anuláveis, como bem explica Leonardo da Cunha (2013, pp. 160-161), mas se o ato está sendo questionado em sua eficácia, pode-se admitir as duas ações, já que se trata de declarar tão- somente a eficácia ou a ineficácia, sem que necessite para isso constituir ou desconstituir a relação jurídica, que é seu objeto.

Nesse sentido, os atos dependentes de comprovação, por não se encontrarem expressamente previstos no rol taxativo da lei, e aqueles ali enumerados, que se realizam mediante conluio fraudulento, bem como os que não foram praticados após a decretação da insolvência, ou do seu período de suspeição, devem ser objeto de ação revocatória33.

Em resumo, pode-se dizer que a declaração de ineficácia dos atos objetivamente considerados deve se dar pelas vias comuns de mera petição em processo de insolvência, pela reconvenção ou ex officio pelo magistrado, podendo, ainda, ser objeto de ação declaratória incidental ou principal. Ou seja, são vias amplas de reconhecimento da ineficácia originária dos atos ou negócios, que reduzem o patrimônio positivo do devedor e impedem a satisfação do crédito, ou a frustração da correta sequência de execução concursal, instalada pela insolvência.

Quanto à ação revocatória, esta seria guardada para todas as situações de fraude contra credores, atuais ou futuros, considerando o consilium fraudis, o prazo anterior ao limite temporal objetivo, bem como outras hipóteses não abrangidas no rol específico da lei.

O objetivo da revocatória é tão somente suprimir a eficácia de um ato (cassando ou suspendendo a eficácia, ou, dito de outra forma, deseficacizando o ato), enquanto a ação de nulidade opera no plano da validade do ato, com efeitos ex tunc, e, apenas de maneira secundária, induz à ineficácia do ato atacado. Nesse sentido, nada obsta, portanto, a cumulação das duas ações. Se o indivíduo prejudicado vai demandar a revocatória antes e a nulidade depois, é opção pessoal. Contudo, não há sentido em buscar a revocatória após o ajuizamento da ação de nulidade, posto que esta tem alcance deseficacial maior, pois tem o condão de retroagir no tempo, para cassar todos os efeitos do ato nulo, alcançando terceiros em geral. A revocatória, por se aplicar relativamente, não pode ter efeitos erga omnes.

33

Em alguns países, distingue-se revocatória ordinária e revocatória falimentar, como no direito italiano (ITÁLIA, 2015).

A cumulação das duas ações não configura litispendência, pois são objetivos distintos a serem perseguidos, no plano do direito, apesar de tocarem ambas no mesmo ponto, no plano fático: a conservação da garantia patrimonial pela deseficacização. Assim, o que se pretende com a revocatória é a conservação dos bens no patrimônio do devedor, pela supressão da eficácia dos atos de redução do patrimônio positivo, para que possam ser executados pelos credores, enquanto a nulidade se volta a desfazer o próprio ato, que já fora concebido invalidamente.

Finalmente, há de se verificar que a cumulação não poderá ser levada a cabo em todas as circunstâncias. Com efeito, a ação revocatória pode assegurar a garantia patrimonial, diante das situações de créditos futuros e, até mesmo, de créditos condicionados, de modo que, nesse caso, a nulidade não poderia ser ainda alegada. Nas hipóteses de relações creditícias já consolidadas, a cumulação não enfrenta óbice.

A nulidade pode ser arguida por qualquer interessado, pelo membro do Ministério Público ou alegada ex officio pelo magistrado, não se sujeitando a nenhum prazo prescricional.

Sobre a lei processual civil de 2015, não se pode deixar de considerar o impacto que as inovações trazem para as questões processuais aqui tratadas, nos processos que versam sobre a declaração ex officio da ineficácia de atos objetivamente considerados para a redução da garantia geral de satisfação do crédito, como a obrigação de ouvir as partes litigantes previamente ou a sujeição dos acordos bilaterais acerca do procedimento que pretendem utilizar.

Assim, se os litigantes concordarem na via declaratória autônoma, com eficácia condenatória, como meio de atacar ineficácia de atos praticados em fraude contra credores, sejam de ordem civil ou empresarial, não poderá o julgador entender pela extinção do processo.

Os litigantes podem, ainda, negociar a aplicação da lei civil ou da lei falimentar, invalidando ou tornando ineficaz os atos praticados em fraude, conforme permissão legal, mas sempre respeitando os limites impostos pela vedação da litigância de má-fé e violação da ordem pública.