• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO 3 A FRAUDE OBJETIVA NO DIREITO CIVIL E O POSSÍVEL

3.2 A fraude objetiva na Lei de Falência e Recuperações

Foi apontado que a lei civil não dispõe de mecanismos próprios aptos à sanção dos atos praticados em fraude contra credores futuros, em razão de dois pressupostos: a intenção fraudulenta e a anterioridade do crédito.

A Lei de Falência e Recuperações dispõe da fraude objetiva no artigo 129 e da fraude subjetiva no artigo 130, mas não se trata apenas do critério intencional de distinção entre as duas espécies que é relevante referir agora. O termo legal e o período suspeito são os destaques deste cenário, ao permitirem a configuração de fraude tão somente pela prática de determinados atos dentro de período específico e em razão de circunstâncias predeterminadas pela lei. Nesses lapsos temporais, configura-se fraude objetiva a redução de bens que resulte em prejuízo aos credores, mas legalmente apenas aplicável na esfera falimentar.

Em países, como a Itália, que adotam o sistema de revocatória falimentar (para a tutela dos credores empresariais) e revocatória ordinária (para a tutela dos credores civis), não é incomum a possibilidade de se adotar um ou outro procedimento, independentemente de se tratar de falência ou insolvência civil, já que ambas comungam da mesma finalidade, mas no Brasil não se vislumbra a utilização da pauliana no âmbito falimentar (ABRÃO, 1980, p. 36; 41).

No procedimento falimentar, não se trata do direito de um credor apenas, pois está em jogo o direito de uma coletividade de pessoas que são os credores concursais, contudo tal

também pode se dar em face de pessoas jurídicas não empresárias, cujos credores podem ser igualmente coletivos. Embora absolutamente incomum, não se pode olvidar da possibilidade de uma falência movida por único credor que totalize o crédito mínimo para o ajuizamento da demanda, atualmente fixado em quarenta salários mínimos, como dispõe a lei falimentar nacional.

Não se pode olvidar que não se aplica a lei falimentar a todo e qualquer empresário, como bem explicita o seu artigo segundo, de modo que a questão da fraude contra credores cometida por empresas públicas, sociedades de economia mista, instituições financeiras, cooperativas de crédito, consórcios, entidades de previdência complementar, sociedades operadores de planos de assistência à saúde, seguradoras, de capitalização e demais sociedades a essas equiparadas encontram-se, em princípio, submetidas à lei civil, com todas as vicissitudes da legislação civil.

A possibilidade de aplicação da lei falimentar às variadas situações de natureza civil, especialmente no campo da fraude objetiva para a tutela de créditos futuros, representa uma importante ferramenta de redução e controle de danos para os credores.

O fato de se poder conjugar o termo legal e o período suspeito da falência às situações que podem ultrapassar tais limites objetivos, em razão da intenção fraudulenta, somente somam no sentido de ampliação da tutela do crédito, sendo irrelevante a origem deste, se empresarial ou civil.

3.2.1 O termo legal e o período suspeito

A observação atenta da realidade pelos operadores do direito, notadamente no campo do direito falimentar, conduziu os legisladores a regular objetivamente um período antecedente particularmente importante no processo de falência: o período suspeito. Já cientes de um estado decadente, financeira e patrimonialmente, marcado pela insuficiência de recursos aptos à quitação das obrigações necessárias à manutenção da atividade normal da empresa, os empresários costumam realizar variadas operações que, nos mais das vezes, apenas precipitam a insolvência. Essas operações nem sempre são realizadas no intuito de prejudicar os credores do empresário, pela tentativa frustrada de manter a atividade econômica, mas contribuem decisivamente para que isso ocorra, na medida em que esvaziam definitivamente o patrimônio, já a esta altura comprometido com as dívidas comuns da atividade.

O estado de colapso patrimonial tem necessariamente um período de incubação no qual a atividade da empresa se desenvolve de modo mais ou menos anormal, período que desemboca em um estado de insolvência não declarada pelo empresário. Incidem nesse período os atos com os quais o devedor tenta sustentar as exaustas forças da empresa, ocultando-as e tentando aliviar o marasmo. (ABRÃO, 1980, p. 15).

Esse estado suspeito foi definido como um período no qual o empresário, com, ou sem, a intenção de esvaziar o patrimônio para prejudicar os credores, atuais ou futuros, efetivamente reduz seu patrimônio, dificultando a possibilidade de satisfação de créditos após decretada a falência do empresário insolvente. Já o termo legal é uma fixação objetiva de prazo inicial e prazo final, no qual os atos praticados pelo empresário são ineficazes, independentemente de qualquer outro elemento. Para a ineficácia dos atos realizados dentro desse período, é o suficiente que tais atos tenham sido praticados pelo empresário insolvente ou à sua ordem, sobre os bens que compõem o seu acervo patrimonial, inclusive os bens particulares.

Nesse sentido, a atual Lei de Falência e Recuperações brasileira, como já fazia as leis que a precederam, regulou o termo legal e o período suspeito, que, embora muito próximos, se distinguem basicamente pelo dado objetivo do prazo.

Segundo o artigo 99, inciso II, da lei falimentar, a sentença que decretar a falência fixará o termo legal em prazo não superior a noventa dias, que antecederem à data do pedido de falência ou de recuperação judicial, ou do primeiro protesto por falta de pagamento. A lei excluiu os demais protestos (por falta de aceite ou de devolução do título), bem como os protestos cancelados; nesses casos, os protestos não são aptos à incidência do termo legal.

Já no artigo 129, a lei falimentar dispõe de rol extenso de hipóteses de operações econômicas, muitas delas vinculadas ao termo legal definido no artigo 99, considerando-as ineficazes simplesmente por terem sido realizadas dentro desse lapso temporal. Trata-se de presunção absoluta, faz prova do fato presumido, excluindo qualquer outra prova em sentido contrário (CARVALHO DE MENDONÇA, 2005, p. 505).

Vale salientar que a ineficácia dos atos praticados além dos prazos apontados pode ainda ser reconhecida, mas agora em função da revocação originada na intenção maliciosa do devedor, em lesar seu credor, mediante fraude.

Em síntese, o período suspeito tem sido compreendido como aquele imediatamente anterior à decretação da falência, englobando situações que não se restringem ao termo legal, podendo superar a limitação objetiva do lapso temporal ali previamente definido para conduzir à ineficácia de atos e negócios, que reduzam ou esvaziem o patrimônio do empresário, em prejuízo da massa falida.

Por sua vez, o Código Civil não dispõe de artifícios semelhantes, de modo que decretada a insolvência do devedor civil, apenas a partir de então será possível declarar a ineficácia de atos ou negócios realizados em prejuízo dos credores já constituídos, pela fraude à execução.

A falência, enquanto instituto de direito empresarial, caracteriza o estado de insolvência do empresário de modo próprio, determinando a lei falimentar fatos certos e positivos, mas tal não acontece com o devedor civil, cuja insolvência somente se verifica faticamente, sem sinais legais exteriores, o que torna a insuficiência patrimonial em estado latente imperceptível (CARVALHO DE MENDONÇA, 2005, p. 120).

Certamente, muitas situações se encontram atualmente à margem da sanção jurídica, sob o fundamento de que: a) ou o ato praticado foi anterior à constituição do direito de crédito; b) ou anterior à ação de cobrança, de modo que efetivamente ficaria sem sanção alguma. Um sujeito de má-fé pode reduzir ou esvaziar seu patrimônio, sem ser incomodado pelos efeitos da lei civil ou da lei falimentar, alegando não ser empresário – e com isso não seria alcançado pelos efeitos da lei falimentar – ou não estar submetido aos efeitos mais rigorosos desta lei, por ter praticado fraude objetiva antes da quebra.

Justamente para esses casos, tem sido necessária uma atenção específica da ciência jurídica, a fim de coibir a prática nefasta de atos fraudulentos praticados às brechas da lei. Se a fraude ao credor é cometida por devedor civil, antes da insolvência ou da constituição do direito de crédito, escapa à incidência da lei falimentar e do próprio Código Civil, mas é na Lei de Falência e Recuperações que pode ser encontrada uma possível solução à tutela do crédito, nessas condições.

3.3 O diálogo das fontes e o direito civil-constitucional: os métodos hermenêuticos de harmonização do direito privado

Enquanto o Direito significou um sistema positivado, hermeticamente construído para solucionar conflitos interpessoais previamente ditados nas hipóteses legais, muitas questões foram afastadas do conhecimento jurídico e, com isso, muitas demandas deixaram de ser atendidas. A crítica a esse positivismo exacerbado, construída em torno da interpretação da lei, foi a pouco e pouco se desenvolvendo, de modo que passou a ocupar lugar de destaque no cenário jurídico.

O Direito moderno é fruto de uma ordem posta, que deve ser realizada através da interpretação. Para Josef Bleicher, a “hermenêutica pode ser definida, em termos genéricos,

como a teoria ou filosofia da interpretação do sentido” (1980, p. 13), mas ele também reconhece que, contemporaneamente, é possível distinguir três tendências para a hermenêutica: como teoria, como filosofia e como crítica.

A teoria hermenêutica se dedicaria à construção de uma teoria geral da interpretação, como propôs Emilio Betti (2007, passim), enquanto conhecimento relativamente objetivo; já a filosofia hermenêutica, seria dedicada ao meio de ponderação desse conhecimento “objetivo”. O confronto entre essas maneiras de pensar a hermenêutica se traduzem numa hermenêutica crítica, combinando uma “abordagem metódica e objectiva com a procura do conhecimento prático relevante” (BLEICHER, 1980, p. 17).

O uso da expressão hermenêutica, é tomada aqui como método de interpretação, como meio de compreender um fenômeno jurídico, com vistas para uma solução prática. De fato, para a realização dessa finalidade, são diversos os métodos de interpretação e complexas as operações propostas neles.

O diálogo das fontes, por exemplo, consiste em um método de interpretação do direito, pelo qual duas ou mais fontes normativas podem ser aplicadas sobre um mesmo dado, atendendo a três modos de harmonização: coerência dada pelos valores constitucionais e prevalência dos direitos humanos, complementação ou aplicação subsidiária das normas especiais e adaptação ao sistema de novas leis nele inseridas (MARQUES, 2012, p. 31).

A tese de Erik Jayme (1996) acerca do diálogo entre fontes diversas teve origem na ideia de superação de leis revogáveis por outras leis, especialmente no âmbito do direito internacional, considerando a realidade europeia que se estabelece sobre constante tensão: a necessidade de união e harmonia entre os países e o respeito à soberania legislativa de cada um deles.

O conceito de complementaridade de fontes, e a tentativa de não desperdiçar no tempo ou no espaço alguma criação legislativa relevante, foi recepcionada no Brasil com certa cautela, encontrando no direito do consumidor a sua aplicação mais ampla, certamente em função do trabalho doutrinário desenvolvido nesse campo.

A expressão, contudo, não foi recebida sem alguma crítica, considerando que a lei não dialoga, mas deve ser harmonizada dentro do sistema em conformidade com o seu ordenamento:

A harmonização do direito é processo diferenciado e mais limitado que a unificação jurídica. A unificação completa pressupõe a conversão das comunidades de nações em verdadeira federação, com predomínio da união sobre as unidades federadas. A harmonização é mais indicada aos processos de integração que envolvem convivência de variados direitos nacionais, assim nas zonas de livre comércio como nos mercados comuns e comunidades confederativas.

A harmonização busca estabelecer princípios e normas gerais consensualmente adotados, convivendo com a legislação própria de cada país. A harmonização vai além do direito legislado; envolve, por exemplo, a jurisprudência dos tribunais, a construção doutrinária, a afirmação de pontos de vista comuns (LOBO, 2012, p. 45).

Não há precisão, igualmente, quanto à tradução da expressão utilizada pelo autor em relação ao correspondente diálogo referido, contudo se entende a pertinência na manutenção da expressão, com o intuito de não gerar maiores discrepâncias quanto à sua utilização, no modo em que a mesma foi acolhida34.

A pretensão do método hermenêutico de fontes legais é tentar superar a forma clássica de solução de conflitos de leis no tempo e no espaço, através da coordenação entre as leis, ao invés da anterioridade, hierarquia e especialidade, permitindo a convivência entre todas as leis através de um fio condutor, ou de um núcleo comum a todas, que é a Constituição Federal (MARQUES, 2012).

Nesse cenário, os valores constitucionais serviriam de vetor conformador entre as diversas fontes legais, possibilitando ao aplicador a conjugação de uma ou mais leis, que se complementariam para realizar a melhor solução ao caso dado. Obviamente, se o caso a ser decidido é de tal maneira pouco complexo, que pode ser solucionado mediante a aplicação simplista de determinada previsão normativa, não há razão para uma operação hermenêutica mais elaborada, como a que propõe Erik Jayme (1996).

Contudo, se o ordenamento jurídico dispõe de normas suficientes para uma adequada tutela do crédito, não há porque afastar a aplicação de determinada fonte, sob o argumento da especialização, pois sempre é possível encontrar nela um vetor funcional que permitirá a sua aplicação coordenada e harmoniosa.

O fato de ser possível a aplicação de uma lei, aparentemente estranha a determinada situação, pela operacionalização do método de complementaridade, como se pode supor no caso da lei falimentar nas hipóteses de fraude civil, certamente tende a conduzir à tutela ampla do crédito, na medida em que pode alcançar situações que a lei civil não alcançaria.

Com efeito, para que o magistrado esteja amparado em sua função julgadora, na aplicação da lei falimentar, às situações de fraude mediante atos ou negócios civis, é preciso que se tenha muito claramente quais são os elementos autorizadores dessa aplicação. Não se trata, portanto, de mera liberalidade do juiz, seja na escolha de sua aplicação, seja no modo de operacionalização.

34

Tal é o que se vê nos julgados indicados: STJ, AgRg nos EREsp 938.607/SP, 1ª Seção, Rel. Min. Herman Benjamin, j. em 14.04.2010; STJ, REsp 1.216.673/SP, 4ª Turma, Rel. Min. Otávio de Noronha, j. em 02.06.2011.

O método preconizado por Erik Jayme (1996) é comumente visto como uma proposta de coordenação de fontes flexível e útil (MARQUES, 2012, p. 29), que não despreza nenhuma das fontes disponível no sistema, mas se utiliza delas sempre que o caso a ser decidido pode ser melhor solucionado. Essa proposta de trabalho é bem compatível com a do próprio direito civil-constitucional, ambos com o objetivo de atender às novas demandas da maneira mais adequada possível.

Classicamente, o direito foi dividido em duas grandes áreas de normatização: o direito público, afeto aos interesses estatais, e o direito privado, afeto aos interesses particulares. Pode-se dizer que a ideia remota desta delimitação, entre as esferas pública e privada, advém da distinção estabelecida pelos gregos (público: atuação política, participação política dos cidadãos; privado: atuação doméstica, intimidade, o que não interessava à atuação política). Com os romanos, houve uma sistematização dessas esferas pública e privada, deixando reservado àquela a organização política das cidades e a essa o direito das gentes (jus civile, para os ciadadãos romanos; jus gentium, para os demais; e jus naturale, o direito natural).

Na época medieval, essa distinção é confusa, pois tudo se resume ao feudo, a nobreza toma tudo para si (riquezas, trabalho, propriedade), é uma apropriação do público e do privado. A reação esse estado de coisas é que dá origem ao Estado moderno, que procura distinguir claramente o que é público e o que é privado, num rigor que pretende afirmar o indivíduo perante o Estado. O reconhecimento e a convicção de direitos individuais, personalíssimos, são levados a uma sistematização própria, a dos direitos humanos, dos direitos fundamentais e dos direitos de personalidade, como modos de positivação.

A nomenclatura é o reflexo de uma perspectiva meramente política, que se pode adotar, a propósito do mesmo tema: a feliz constatação de que a proteção dada ao homem pelo direito, não se esgota na garantia mínima do direito à vida, à liberdade e à propriedade. Nesse sentido, direitos humanos são todos aqueles direitos de cunho universal, que é reconhecido a todo ser humano; direitos fundamentais são elencados em Cartas Políticas, por escolha do legislador constitucional, no mais das vezes, como reflexo extraído dos direitos humanos (daí haver em grande parte coincidência entre eles); e direitos de personalidade são aqueles intrínsecos ao homem, inatos, ubíquos (na linguagem ponteana) (PONTES DE MIRANDA, 1971, p. 7).

Há um refinamento dessas garantias, à medida que se vai tomando consciência de que o Estado deve ser garantidor da dimensão existencial do indivíduo, ao lado do próprio sujeito e de toda a sociedade. A evolução dos direitos de personalidade em primeira, segunda, terceira, quarta e quinta geração, bem os afirmam (LORENZETTI, 2005, p. 153-155).

Para confirmar essa dimensão existencial do indivíduo, supera-se o primeiro paradigma do direito civil clássico: ter e ser decorrem do mesmo sujeito, não existe dualidade entre sujeito e objeto; é reconhecido o valor unitário da pessoa. Ao mesmo tempo, procura-se romper com o formalismo jurídico exarcebado, através da escola pós-positivista, subdividida entre as teorias da ação comunicativa, de Jürgen Habermas (1999); dos sistemas, de Niklas Luhmann (2002); da argumentação jurídica, de Robert Alexy (2001); da circularidade, de Gadamer (1997), entre tantas outras (BLEICHER, 1980).

O resultado dessas tentativas de superação do positivismo exclusivo é a ideia de pluralismo como tentativa de afastar a interpretação jurídica unilateral, mas quase sempre ocorre um resquício daquilo que se pretende romper. Este fato vem sendo encarado na maior parte dos casos como uma morte para tais tentativas, todavia isso significa tão somente que há uma continuidade necessária do que se pretende superar, pois não é possível criar algo novo a partir do nada, do absoluto nada. A própria ideia de nada é absoluta e do nada, nada se cria.

Perlingieri (2008, p. 13) já reconhecia o fato de que todas as tentativas recentes são, em si, unilaterais: o substancialismo, o sociologismo, o pragmatismo, o politicismo. A visão crítica do direito civil clássico é construtiva, mas ela não nasce em si mesma e não se pretende reconstruir o direito civil a partir de um nada, de um rompimento com todo o seu extenso passado milenar.

Assim, a proposta do direito civil-constitucional de estabelecer uma releitura do direito civil clássico não é de longe o rompimento com suas origens, muito ao contrário é uma reestrutura deste ramo, sob pilares pós-positivistas.

Como já dito alhures, o papel do Estado legislador autossuficiente não foi completamente exitoso em nenhum momento da história do direito, razão porque sempre se lançou mão dos recursos extraordinários, como princípios, costumes, usos. A lei jamais conseguiu ser ela mesma os pontos de partida e de chegada para a aplicação hermenêutica do direito. O que se reconhece hoje, francamente, é essa realidade. E a tentativa que se busca, em certo sentido, é uma resposta possível a essa inquietação.

É preciso reconhecer, com certa tranquilidade, que não se trata de fórmulas prontas ou definitivas para a superação das dificuldades e complexidades, que permeiam os conflitos na vida contemporânea, razão porque as experiências podem, sim, em muito, colaborar com as saídas viáveis de superação desses conflitos. Essa é uma constatação da mitigação de um segundo paradigma: o do formalismo absoluto.

Num contexto assim delimitado, o papel do legislador é, no mais das vezes, “usurpado” pelo ativismo judicial. Claro, está se falando de interpretação e aplicação do

direito, e o juiz passa a ocupar o lugar central da criação do direito. O deslocamento da figura final a criar o direito é a superação de um terceiro paradigma, em relação ao direito civil clássico: o de que o Código Civil deve ser bastante em si mesmo para resolver todas as questões do direito privado entre particulares. Essa constatação vai desembocar no reconhecimento de que não basta uma releitura do velho direito e novas formas de legislação ordinária, mas também se faz necessária a aplicação direta dos grandes enunciados constitucionais (PERLINGIERI, 2008, p. 35).

Em síntese, os principais pressupostos teóricos da doutrina do direito civil na legalidade constitucional, concebida como consequência da incidência do constitucionalismo contemporâneo sobre as legislações, e as codificações em particular, concernem a: 1) natureza normativa da Constituição (princípio da legalidade); 2) complexidade e unidade do ordenamento jurídico e o pluralismo das fontes do direito, em tentativa clara de evitar o distanciamento entre microssistemas, como os diversos Estatutos (Criança e Adolescente, Idoso, Consumidor, etc.); e 3) renovação da teoria da interpretação jurídica, fundada no respeito à hierarquia das fontes e dos valores, em uma acessão necessariamente sistemática e axiológica (PERLINGIERI, 2007a).

O controle de legitimidade não é meramente formal (procedimental), mas é, sobretudo, conteudista e não deve recair apenas sobre a lei, mas sobre todas as expressões da autonomia