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1 A FRAUDE CONTRA CREDORES NO DIREITO CIVIL E NO DIREITO

1.2 A fraude contra credores no direito empresarial

O desenvolvimento da atividade mercantil conduziu à construção de um sistema jurídico próprio para regular as operações econômicas que repercutiam na esfera jurídica, dando origem ao direito comercial como ramo especializado do direito privado. Com isso, surge também a necessidade de regular medidas de proteção ao crédito, cujo interesse deixava de ser meramente privado para alcançar contornos públicos, sistematizando meios especiais para o reequilíbrio ou a satisfação possível dos credores, através dos procedimentos falimentares, dentre os quais se destaca a ação revocatória.

A atividade econômica organizada e profissional que caracteriza a atividade empresária tem justificado uma legislação mais preocupada com a tutela do fenômeno econômico, estimulando um tratamento dual entre o direito civil e o direito empresarial.

Em termos de legislação mercantil, no auge das grandes codificações, o Código Comercial, de 1850, foi o primeiro diploma legal nacional organizado como sistema jurídico coordenado de comércio, com uma teoria geral dos atos de comércio, das sociedades mercantis, dos títulos de crédito, dos contratos mercantis, do direito marítimo e da falência e concordata. Tal Código vigorou no país até o ano de 2003, quando entrou em vigor o Código Civil, de 2002, responsável pela consolidação do então denominado direito de empresa.

Naquele diploma de 1850, o tema da concordata era tratado como um favor da lei aos comerciantes insolventes e a falência era o destino final de quem não conseguisse sair da crise econômico-financeira por seus próprios meios, uma vez que a lei não dispunha de

mecanismos destinados à recuperação da atividade mercantil. Neste sentido, a preocupação do Código Comercial estava praticamente centrada na proteção dos credores diante dos atos falimentares.

A Exposição de Motivos do Código Comercial, de 1850, cujo projeto de lei foi apresentado no ano de 1834, e publicado pela Tipografia de Pierre Seignot-Plancher7, tratava a matéria falimentar como resultado de um apanhado dos principais códigos da época, sem que a Comissão tivesse indicado quais os diplomas legais inspiradores:

A parte terceira do Projecto dedicada ás quebras, foi redigida segundo os principios e disposições dos Codigos mais acreditados, com as modificações e alterações que a Commissão entendeu convenientes ás circunstancias do paiz.

A impossibilidade de extremar por huma maneira precisa o Commerciante fallido de boa fé do fallido fraudulento, faz a difficuldade desta materia: a Commissão entendeu que nada podia fazer melhor do que confiar a decisão a Jurados Commerciantes; esta idéa tranquillisou todos os seus escrupulos, ella a adoptou (BRASIL, 1834).

A Lei de Falência e Recuperações, de 2005, é o atual dispositivo que regula a insolvência empresarial, responsável por introduzir no Brasil o instituto da recuperação judicial, até então não aplicável por falta de instrumentalização adequada, e de cuidar da execução concursal falimentar. Esta lei é imbuída de uma principiologia moderna empresarialista que reconhece na empresa uma função social, razão porque convoca o Estado, o devedor e os seus credores a acordarem entre si, para salvar o empreendimento em crise econômico-financeira. O esforço em comum visa preservar a empregabilidade, manter a concorrência e a produção de receitas tributáveis, afastando a consequência mais gravosa que poderia resultar no encerramento da atividade, com desdobramentos nefastos à economia nacional.

Neste sentido, a legislação instituiu a recuperação judicial (subdividida em procedimentos ordinário e especial, este exclusivamente em favor de microempresas e empresas de pequeno porte) e a recuperação extrajudicial (tratando-se, neste caso, apenas de mera homologação judicial de acordo já firmado entre devedor e credores quirografários). Tornando-se impossível a execução do plano de recuperação judicial, ou, reconhecendo-se desde logo, a inviabilidade econômico-financeira do empreendimento, será decretada a falência, com a instalação da execução concorrencial que decorre do princípio par condicio

creditorum.

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A tipografia de Pierre Seignot-Plancher foi responsável pela publicação de várias obras no período imperial brasileiro, notadamente de matérias de interesse do Império, pela vinculação política do Sr. Plancher ao Imperador D. Pedro I (SARAIVA, 2014), entre elas figura o Projecto do Codigo Commercial do Imperio do Brazil, de 1834. São obras raríssimas e de difícil acesso, em função da passagem do tempo e da inegável importância histórica.

Em ambiente falencial, nos mesmos moldes do que ocorria sob o pálio do Decreto-lei nº 7.661, de 1945, a sentença deve fixar o termo legal de retroação, para averiguação de possíveis atos fraudulentos voltados ao prejuízo dos credores, denominados atos suspeitos.

Trata, então, a atual lei de atos ineficazes e atos sujeitos à ação revocatória. A questão tormentosa acerca da distinção entre os efeitos da anulabilidade, ineficácia ou revogação do ato fraudulento, portanto, não é estranha ao direito empresarial, que se utiliza dos diversos institutos de supressão dos atos fraudulentos em prejuízo dos credores concorrentes.

Assim, dispõe a referida lei que são considerados ineficazes, em relação à massa falida, os atos praticados pelo empresário insolvente, independentemente de ter ou não aquele com quem este contrate, o conhecimento de seu estado de insolvência, como também tenha ou não o empresário insolvente a intenção de fraudar seus credores, nos atos seguintes: pagamento de dívidas vincendas ou pagamento de dívidas vencidas por meio distinto do previsto em contrato, dentro do termo legal de retroação da decisão que decreta a falência; constituição de direito real de garantia, dentro do termo legal; prática de atos a título gratuito ou renúncia de herança ou legado, desde dois anos antes da decretação da falência; venda ou transferência do estabelecimento sem consentimento expresso dos credores, ou o pagamento dos credores existentes à época de tal alienação, mediante comprometimento dos credores futuros, com a redução dos bens suficientes para solvência do passivo; registro de direitos reais e transferência de propriedade por ato entre vivos, de forma gratuita ou onerosa, após a decretação da falência (artigo 129, da Lei de Falência e Recuperações).

Certamente um pagamento realizado antes da constituição do concurso de credores pode ser tomado como ineficaz, por indício de fraude contra os credores, quando confrontado pelas circunstâncias da insolvência, mas nem todo pagamento deve ser entendido como injustificado. Para Albero e Gargallo (2001, p. 88) podem estar justificados os atos ordinários profissionais ou empresariais do devedor, sempre que se realizem em condições normais, como o pagamento da previdência social, os aluguéis dos locais ocupados pela empresa, os pagamentos periódicos conforme vão se vencendo, etc.

Contudo, a distinção entre pagamentos justificados e injustificados, no caso de dívidas já vencidas, não é fácil. Desse modo, o que resta claro é que devem ser impedidos os pagamentos extraordinários que, conforme sua proximidade com a quebra do devedor, evidenciam uma intenção de pagar algum credor em detrimento de outro (ALBERO; GARGALLO, 2001, p. 88).

A ineficácia apontada de tais atos pode ser declarada de ofício pelo juiz falimentar, alegada tanto na defesa quanto em ação própria, como também mediante ação incidental ao processo falimentar.

De outra parte, são considerados atos fraudulentos suscetíveis de revogação aqueles praticados com intuito de prejudicar os credores, devendo-se provar o conluio fraudulento entre o empresário insolvente e o terceiro com quem contratar, bem como o efetivo prejuízo sofrido pela massa falida (artigo 130, da Lei de Falência e Recuperações). Neste caso, a ação revocatória poderá ser proposta pelo administrador judicial, qualquer credor ou membro do Ministério Público estadual, no prazo de três anos, a contar da decretação da falência, perante todos os que participaram do ato apontado como fraudulento, incluindo os terceiros adquirentes de má fé e seus herdeiros ou legatários, no próprio juízo falimentar.

A sentença que julgar procedente a ação revocatória deverá determinar o retorno dos bens alienados fraudulentamente à massa falida, com acessórios e acrescidos; na impossibilidade deste, deverá ser depositado o valor de mercado dos bens, acrescido de perdas e danos, como dispõe o artigo 135, da Lei de Falência e Recuperações.

Observe-se que a referida lei distinguiu atos revogáveis e atos ineficazes, trazendo dupla regulamentação.

A distinção dos atos inexistentes e atos revogáveis não é inovação da Lei de Falência e Recuperações, pois já se encontrava na Lei nº 2.024, de 19088, que por sua vez alterou o Código Comercial, de 1850. Este não fazia previsão acerca de revogação ou ineficácia, mas tão somente de nulidade ou anulabilidade dos atos praticados em fraude9.

Note-se que nem sempre a legislação brasileira enfrentou o mesmo problema da mesma maneira, pois em 1850, por ocasião do Código Comercial, tratou a questão da fraude contra credores durante a falência mercantil como atos sujeitos à nulidade ou anulabilidade, conforme escalonou a gravidade das consequências à massa falida. Já em 1908, com lei específica de falências, considerou a duplicidade de gravidades, agora com consequências que variavam entre ineficácia e revogação dos atos fraudulentos, em sistema que se repetiu no Decreto-Lei nº 7.661, de 1945, e na atual Lei de Falência e Recuperações.

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Art. 55. Não produzirão effeito relativamente á massa, tenha ou não o contractante conhecimento do estado economico do devedor, seja ou não intenção deste fraudar os credores (...); Art. 59. A acção revocatoria, tendo por fim pronunciar a inefficacia dos actos referidos nos arts. 55 e 56, relativamente á massa fallida, deverá ser intentada pelos liquidatarios em nome da massa (...); Art. 61. A revogação do acto poderá tambem ser allegada e pedida em excepção ou em embargos á execução ou á acção executiva.

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Art. 827. São nulas, a benefício da massa somente (...); Art. 828 - Todos os atos do falido alienativos de bens de raiz, móveis ou semoventes, e todos os mais atos e obrigações, ainda mesmo que sejam de operações comerciais, podem ser anulados, qualquer que seja a época em que fossem contraídos, em quanto não prescreverem, provando-se que neles interveio fraude em dano de credores.

O desafio, agora, é saber em que consistem os artigos 129 e 130, da Lei de Falência e Recuperações, quando tratam de ineficácia e de revocatória. A confusão é tão grande, que alguns autores chegam a apresentar uma miscelânea de conceitos, como tratar revogatória como ação anulatória (FRANCO; SZTAJN, 2008, p. 166); considerar ações revocatórias como gênero, tendo como espécies a declaração de ineficácia e a ação pauliana falencial, que gerariam os efeitos de revogação dos atos praticados, em ambos os casos (FAZZIO JR., 2012, p. 323-330); considerar ineficazes os atos do artigo 129 e revogáveis por decisão judicial os atos do artigo 130, sendo, em ambos os casos, a ação revocatória (de revogar) o procedimento judicial a ser instalado (CARVALHO DE MENDONÇA, 2005, p. 531); ou, ainda, que no direito falimentar, há duas ações revocatórias, uma por ineficácia, outra por fraude (ALMEIDA, 2008, p. 193); tratar de atos ineficazes relativamente apenas à massa falida (TZIRULNIK, 2005, p. 193-194), entre tantos outros.

Para Fábio Ulhoa Coelho (2013b, p. 307), os atos considerados ineficazes “não são atos nulos ou anuláveis, ressalte-se, mas ineficazes. Quer dizer, sua validade não se compromete pela lei falimentar – embora de alguns deles até se pudesse cogitar de invalidação por vício social, nos termos da lei civil”. E, para esclarecer o crescente equívoco entre os jusempresarialistas brasileiros, prossegue o mesmo autor:

O que diferencia os atos do art. 129 dos alcançados pelo art. 130 não é a suspensão da eficácia, preservada a validade, sanção comum a ambos, e, sim, as condições a que a suspensão está sujeita. Dessa forma, pode-se dizer que tanto os atos ineficazes em sentido estrito quanto os revogáveis são ineficazes em sentido largo perante a massa falida. É certo que alguma doutrina distinguia os dois gêneros de atos reprimidos pelo direito falimentar, afirmando que os do art. 129 seriam ineficazes perante a massa falida, mas os do art. 130 seriam anuláveis. É a posição, entre outros, de Waldemar Ferreira (1963, 14:590/594). A formulação tecnológica mais corrente hoje em dia, contudo, não reproduz essa distinção (Lacerda, 1959:145/147). Assim, encontra-se nas hipóteses do art. 129 a ineficácia objetiva (porque independente de perquirição sobre as intenções dos sujeitos), e nas do art. 130 a ineficácia subjetiva (porque dependente dessa perquirição) (COELHO, 2013b, p. 308).

Quanto ao procedimento, os atos ineficazes podem ser declarados de ofício, por mero despacho judicial, nos autos do processo falimentar. Em se tratando de atos sujeitos a ineficácia subjetiva, a declaração judicial deve se dar em ação específica: a ação revocatória, que segue rito ordinário, ajuizada no prazo decadencial de três anos contado da decretação de falência, perante o juízo falimentar, pelo administrador judicial, por qualquer credor ou membro do Ministério Público (COELHO, 2013b, p. 314). Aqui, exige-se a prova do conluio fraudulento entre o empresário insolvente e o terceiro, daí a necessidade do procedimento ordinário.

A ação revocatória falimentar não se confunde com a ação revogatória do artigo 559 do Código Civil brasileiro, prevista para as hipóteses exclusivas de revogação da doação por ingratidão do donatário ou por inexecução do encargo (no caso das doações modais). Esta é personalíssima, só podendo ser manejada pelo próprio doador (excetuada a situação do doador morto pelo próprio donatário, quando ocorre a transmissão da legitimação ativa para os herdeiros do doador), tem prazo decadencial de um ano e somente pode ser ajuizada contra o beneficiário do negócio. Em sentido contrário, Pontes de Miranda (2000, p. 22):

Se o fato de que depende a vinculação (=irrevogabilidade) ocorre, há vinculação (=há irrevogabilidade). Todavia, por efeito de reminiscências históricas, os sistemas jurídicos conhecem a revogação excepcional, devido à causa superveniente, ou contemporânea ao ato, que permite a volta ao passado — a despeito da vinculação — para se ir tirar a vox ao suporte fático e se fazer ruir o ato jurídico. É o que acontece com a revogação da doação por ingratidão do donatário (arts. 1.181-1.187) e a revogação dos atos por fraude contra credores, no direito falencial (Lei nº7.661, de 21 de junho de 1945, art. 53).

Diante do que dispõe a Lei de Falência e Recuperações, no artigo 129, é de se perguntar se as hipóteses legais estão definidas rigorosamente, em rol taxativo, ou se o legislador apenas exemplificou algumas situações que podem ser tomadas como atos ineficazes relativamente à massa falida. A doutrina nacional tem tomado este como um rol taxativo, sendo a disposição em numerus clausus uma medida de segurança, pois veda ao intérprete da lei a constituição de ineficácia para outras condutas ali não relacionadas, através da interpretação extensiva ou analógica. Essa questão deverá ser retomada na análise do diálogo das fontes legais, a fim de verificar a possibilidade ou não da aplicação da lei falimentar às situações de origem civil, notadamente quanto aos atos objetivos referidos.

Em se tratando de atos praticados após a decretação da falência, embora não haja referência expressa na lei falimentar, de 2005, a maioria dos autores converge quanto ao efeito da nulidade (FRANCO; SZTAJN, 2008, p. 167; CARVALHO DE MENDONÇA, 2005, p. 531), pois o empresário alienante já não tem mais disposição sobre os bens da massa falida (art. 99, VI, da Lei de Falência e Recuperações). Em sentido contrário, Pontes de Miranda (1965, p. 73), para quem a restrição de disposição de bens não opera no campo da validade e sim no campo da eficácia da transmissão de propriedade, por isso toda alienação de bens depois de decretada a falência seria ineficaz.