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1 A FRAUDE CONTRA CREDORES NO DIREITO CIVIL E NO DIREITO

2.4 Os elementos necessários da fraude contra credores futuros

2.4.1 A insolvência do devedor

Em termos de insolvência, entende-se que, na seara do direito civil, a definição de insolvência é mais simplista, pois é o resultado matemático entre o patrimônio ativo e o patrimônio passivo. Assim, se este supera aquele, configura-se o patrimônio negativo que caracteriza o estado de insolvência. Em se tratando de direito empresarial, a Lei de Falência e Recuperações dispõe de outras situações que presumem o estado de insolvência do empresário, oferecendo um panorama específico da matéria:

Atente-se que não deve ser entendido esse pressuposto [insolvência] em sua acepção econômica, ou seja, como o estado patrimonial de insuficiência de bens de um sujeito de direito para a integral solução de suas obrigações. Deve ser a insolvência compreendida num sentido jurídico preciso que a lei falimentar estabelece. Para que a devedora sociedade empresária se submeta à execução concursal falimentar, é rigorosamente indiferente a prova da inferioridade do ativo em relação ao passivo. Não é necessário ao requerente da quebra demonstrar o estado patrimonial de insolvência do requerido, para que se instaure a execução concursal falimentar, nem, por outro lado, se livra da execução concursal a sociedade empresária que lograr demonstrar eventual superioridade do ativo em relação ao passivo (COELHO, 2013b, p. 263).

Nesse sentido, a definição de patrimônio garantidor envolve apenas o conjunto dos bens que detêm expressão econômica, sejam de natureza corpórea ou incorpórea, como os direitos autorais. Não se trata, portanto, de ideia tão ampla de patrimônio como no direito empresarial, nem também deve ser tomada no sentido de Perlingieri (2011, p. 760), que engloba todos os bens materiais e imateriais (como os direitos de personalidade), mas exclusivamente como expressão matemática de resultados econômicos.

Todos os bens que se destinam a compor o acervo de bens com expressão econômica aptos ao tráfico, compõem o patrimônio de uma pessoa, e lhe serve de garantia para a satisfação de dívidas. A redução desse acervo é relevante para a caracterização da ruptura do dever cooperativo do devedor.

Assim, nos termos do artigo 789, do Código de Processo Civil, de 2015, o devedor responde, para o cumprimento de suas obrigações, com todos os seus bens presentes e futuros, ressalvadas as restrições estabelecidas em lei, como a impenhorabilidade do bem de família (artigo 1.711, do Código Civil, e Lei nº 8.009/1990). Sobre isso, já admitiu o Superior Tribunal de Justiça, que em caso de fraude, mesmo o bem de família poderá ser penhorado, mitigando esse efeito da blindagem legal sobre os bens que servem à moradia familiar22.

22

Neste sentido, ver a decisão do Superior Tribunal de Justiça, no REsp 1.200.112/RJ, 2ª Turma, Min. Rel. Castro Meira, j. em 07.08.2012.

Embora a fraude possa ser cometida antes de constituído o crédito que o devedor deveria, desde logo, deixar garantido, todos os seus bens atuais e os que ainda vierem a ser adquiridos estão aptos à execução. De outra parte, deve-se entender em fraude aquele que, já devendo e em vias de inadimplemento, não adquire bens ou recusa renda ou doação, a fim de não formar acervo apto à execução. Se “A” pretende pagar um serviço a “B”, não pode aquele, nas vésperas do pagamento, deixar de receber quantia devida por “C” sob o pretexto de que não era ainda inadimplente de “B”, após constatado que a dívida não fora quitada por ausência de bens ou renda de “A”. Ou, mais claramente: se “C” deve a “A”, que deve a “B”, não pode “A” recusar o pagamento de “C”, se este é relevante e necessário para a quitação da dívida de “A” com “B”, sob pena de ineficácia. O crédito futuro de “A” em relação a “C” compõe a garantia de “B”, sob a ótica da tutela ampla do crédito.

Os denominados atos objetivos são assim considerados por dispensarem maiores investigações quanto ao elemento intencional do sujeito devedor, bastando para a declaração de ineficácia a identificação das situações elencadas no rol exaustivo, realizadas dentro do prazo de dois anos que precede à declaração de insolvência. Assim, seus requisitos são: (a) a declaração de insolvência; (b) a realização de qualquer dos atos elencados nos dois anos anteriores à sentença; (c) a correlação entre o ato e a insolvência, o que é apontado objetivamente, pois a insolvência é causada ou contribuída pelo ato.

O prazo de dois anos tem sido apontado como razoável para o alcance da retroação de efeitos da decisão judicial, a fim de delimitar o período suspeito, de modo semelhante ao que já ocorre no direito brasileiro, com a lei falimentar.

As mais variadas operações podem ser realizadas para fraudar credores que ainda não estão compondo relação determinada com o devedor, por isso, mesmo quando ainda não exista o crédito ou quando o mesmo não esteja apto à exigibilidade, tais operações podem conduzir à sua ineficácia, por implicarem na perda de tutela do crédito, ao serem confrontadas com o estado de insolvência do devedor. De outra parte, quando estas mesmas situações não estiverem relacionadas à insolvência do devedor, devem produzir os seus normais efeitos.

Se o caso é de conluio fraudulento, pode haver uma extensão ainda maior, pois o elemento nuclear aqui é a intenção de lesar e a lesão efetiva. Neste sentido, a fraude pode se dar através de muitos outros atos, frutos da atividade criativa do ser humano e por isso não devem se sujeitar exclusivamente às previsões legais, nem ao limite temporal dos atos objetivos:

Essa é a relação dos atos objetivamente ineficazes. Qualquer um deles praticado pela sociedade falida não produz efeitos perante a massa, mesmo que inexistente a

fraude. Basta a ocorrência do ato no tempo ou nas condições referidas pelo legislador. Já os subjetivamente ineficazes, não listados pela lei, caracterizam-se diferentemente. Aqui é irrelevante a época em que foi praticado, próxima ou distante da decretação da falência, bastando para a ineficácia perante a massa a demonstração de que o representante legal da sociedade falida e o terceiro contratante agiram com fraude, com o intuito de prejudicar credores ou frustrar os objetivos da falência. Assim, independentemente da época em que o ato foi realizado, se objetivou fraudar credores ou a finalidade da execução concursal, não produzirá seus efeitos perante a massa falida. Como exemplo, pode-se dizer que qualquer ato referido pelo art. 129, I a IV e VII, da LF, mas não alcançado por esses dispositivos, porque praticado fora do prazo correspondente, será ineficaz se provado que as partes agiram com fraude (COELHO, 2013b, p. 313).

Efetivamente, como se tem tentado demonstrar nesta tese, é possível dar tratamento semelhante para os atos ineficazes de per si e os atos ineficazes em razão de fraude contra credores. A redução de bens que pode prejudicar a tutela do crédito tem causas diversas, podendo ser originária de situações que decorrem da usual mobilidade patrimonial, sem que decorram de condutas intencionais do devedor, mas também podem ser fruto do desejo específico do devedor em fraudar seus credores. Na primeira situação, a ineficácia decorre simplesmente da tutela ao credor, enquanto na segunda situação, há desdobramentos para o sancionamento do devedor e do terceiro cúmplice. Contudo, em todas as situações, o objetivo maior é a busca da conservação da garantia patrimonial como corolário de uma efetiva tutela do crédito, em reconhecimento à função social das relações obrigacionais, como meio de satisfação das necessidades da pessoa.

Como visto, qualquer dos atos relacionados no artigo 129 da Lei de Falência e Recuperações pode ser praticado antes de constituídas outras relações obrigacionais, com o intuito de frustrá-las efetivamente, como no caso da concessão de garantia real antes de contraídas novas obrigações.

No caso de um contrato de compra e venda sobre determinado bem entre “A” e “B”, com valor a ser pago no prazo de um ano e entrega imediata do bem, por exemplo, é possível conter a fraude. Note-se que em princípio, nada há de extraordinário. Mas se “A” deve a “C” e o bem alienado a “B” era a garantia do contrato com “C”, certamente “B” restaria frustrado em caso de desaparecimento dessa garantia. Em troca do bem com existência (mundo dos fatos) e no direito (mundo do direito), recebe-se um crédito futuro (mundo do direito) que ainda não se realizou no mundo dos fatos. Substitui-se o certo pelo duvidoso. Considere-se que “B” não pague o seu compromisso e “A”, já tendo entregue o bem, não tenha nada mais a oferecer a “C”. Este, por sua vez, tendo executado a dívida, não tem como vê-la satisfeita. Ao negociar com “B”, “A” já sabia que a eventual inadimplência de “B” afetaria o direito de “C”, contudo realizou o negócio mesmo assim.

A questão da insolvência para fins de apuração dos haveres do devedor não se dá do mesmo modo no direito civil e no direito empresarial, como foi visto. No direito civil, essa impossibilidade de satisfação da obrigação contraída se dá pela insuficiência de bens disponíveis no acervo patrimonial do devedor para a quitação do débito, de modo que não existem bens sobre os quais possa recair a penhora, no processo executório, seja em razão da ausência total deles por ocasião do início da execução, seja pela constatação posterior à alguma penhora já realizada. O fato é que a insuficiência de bens aptos à penhora caracteriza o estado de insolvência civil.

Não se pode deixar de referir, na oportunidade, alguns dados relevantes à discussão: os bens impenhoráveis e a reserva de bens suficientes à preservação da subsistência do devedor.

A legislação civil dispõe sobre os bens impenhoráveis em duas espécies: o bem de família, que pode ser assim considerado por força de lei, independentemente de qualquer manifestação do seu titular, bastando para isso que o imóvel no qual reside o titular seja o único dessa categoria23, e aquele que decorre da indicação voluntária do proprietário, dentre demais bens de mesma ordem, não ultrapassando um terço do patrimônio total24; os bens voluntariamente indicados pelo titular gravados com cláusula de impenhorabilidade, devidamente registrados em cartório, bem como os demais bens legalmente assim considerados25.

Obviamente, a penhora sobre esses bens poderá, excepcionalmente, ocorrer, na hipótese de inexistência de outros bens e a depender da natureza da dívida, inclusive não vedando a legislação a penhora sobre o único bem de família, quando a dívida cobrada tiver origem em créditos alimentares não pagos, direitos trabalhistas dos empregados domésticos, impostos atrasados sobre o imóvel (IPTU), ausência de quitação do empréstimo bancário para a aquisição do próprio imóvel, recursos ilícitos para sua aquisição e até mesmo em função de fiança locatícia, quando o fiador não pague a dívida do afiançado perante o seu locador.

O fato da lei processual civil dispor acerca da totalidade dos bens do executado como aptos à penhora, para cumprimento de sua responsabilidade, deve levar em conta as exceções, que, contudo, não são absolutas. Como visto, a natureza do crédito a ser tutelado pode ultrapassar as limitações legais quanto à impenhorabilidade, como medida necessária à tutela do crédito.

23

Lei nº 8.009/90.

24

Artigo 1.711, do Código Civil, de 2002.

25

O salário da pessoa empregada, nos termos da legislação trabalhista, já foi considerado absolutamente impenhorável, mas não tem sido incomum a relativização desse entendimento, especialmente quando a penhora parcial da remuneração mensal não coloca em risco a subsistência do devedor26. Contudo, a jurisprudência do Tribunal Superior do Trabalho tem se firmado no sentido de não permitir a penhora de dívidas sobre salários27.

Registre-se, por fim, que diante da constatação de fraude, a impenhorabilidade de bens pode ser superada, inclusive do bem de família, sob dois argumentos: primeiro, punir o infrator, oferecendo a medida como meio de sanção e pedagogia; segundo, efetivamente coibir a fraude, não permitindo que a dilapidação fraudulenta de bens possa beneficiar o seu agente, pela manutenção em seu patrimônio de qualquer bem que possa satisfazer – ou pelo menos, minimizar – o dano causado pela inadimplência primária. Assim foi o entendimento do Superior Tribunal de Justiça, que considerou penhorável um bem de família, pelo reconhecimento da prática fraudulenta de esvaziamento patrimonial quase total de devedor de má-fé, que maliciosamente manteve em seu acervo apenas a sua moradia28.

O artifício do esvaziamento patrimonial voluntário, de forma prévia à constituição de novas dívidas – o que normalmente se verifica, quando não se trata de via testamentária – é indício de fraude, uma vez que enquanto o sujeito estiver em vida, estará sujeito às obrigações ordinárias para sua própria manutenção e subsistência. Essa ação premeditada configura presunção de má-fé, pois a livre disposição de bens não pode ultrapassar os limites razoáveis da responsabilidade patrimonial.

Sabe-se que a manutenção do patrimônio mínimo à subsistência é óbice à execução total dos bens do devedor insolvente, contudo as ações de má-fé servirão de baliza para a adequada aplicação dos limites legais à penhora desses bens. Por outro lado, não se pode ignorar a circunstância real de que alguns terceiros de boa-fé podem ser prejudicados gravemente com a medida, como se dá no caso da penhora do bem de família, quando, além do executado, perdem também os seus familiares, a moradia.

Contudo, deve-se ter em mente que a pretensão é evitar o dano, pois é neste que reside a preocupação maior para a construção de um sistema eficaz de tutela do crédito.

26

Pela possibilidade de penhora de salário: STJ, REsp 1.326.394/SP, 3ª Turma, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. em 12.03.2013. Em sentido contrário: TST, RO 37800-94.2011.5.13.0000, j. em 30.04.2013.

27

TST, Orientação jurisprudencial 153 da SDI-2. Em sentido contrário: artigo 529, parágrafo terceiro, do Código de Processo Civil, de 2015.

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2.4.2 O dano

Como foi apontado, não se pode esperar sempre do devedor a intenção de fraudar, o dolo específico, direcionado a causar prejuízo ao credor, para se obter a ineficácia do ato ou do negócio responsável pela causa ou agravamento da insolvência. A mera conduta, objetivamente realizada, no sentido de reduzir voluntariamente o patrimônio positivo, será suficiente para a ineficácia do resultado pretendido. Basta o dano.

Naturalmente, estão excluídos os casos de involuntariedade que qualificam algumas das excludentes de responsabilidade civil, como a força maior e o caso fortuito. Em se tratando de fato de terceiro, há de se questionar dos elementos subjetivos: se o devedor era ou não conhecedor da conduta do terceiro ou de suas intenções na finalidade danosa, que vem a resultar no prejuízo do seu credor.

Na formação da obrigação, devedor e credor (considerados reciprocamente, nos casos de negócios sinalagmáticos), estabelecem entre si o modo, o tempo e o lugar da quitação, não importa se a relação se refira a um ou mais atos encadeados, para tal finalidade, posto que o adimplemento só se perfaz após a quitação de todos os deveres estabelecidos.

Assim, a exigibilidade da dívida somente surge após o vencimento do prazo dado (ou em circunstâncias anormais, como a antecipação do vencimento por força de lei em decorrência da insolvência ou da falência, por exemplo). Se o devedor de uma obrigação, também devedor de outras obrigações simultâneas ou sucessivas, deixa de pagar a um, cuja dívida já se venceu, em detrimento de outro, cuja dívida não está vencida, este pagamento será ineficaz em função daquele outro, a ser garantido em primeiro lugar. Obviamente, se o caso é de insolvência e já instalado o concurso de credores, o pagamento ineficaz obriga à devolução da quantia paga à massa, para que seja executado em benefício do processo de execução coletivo.

Se o pagamento antecipado de dívidas não vencidas pode ser considerado ineficaz, em razão de um tratamento desigual entre credores já constituídos, por ocasião da insolvência (e neste caso, incluem-se já os credores que eram futuros à época da realização do ato ou negócio fraudulento), igualmente ineficaz será o pagamento de dívida vencida por meio diverso do contrato. Embora a lei civil admita a dação em pagamento como meio extintivo da dívida, essa forma de solvência da obrigação não está permitida quando configurado o estado de insolvência do devedor, não importando se o meio diverso de pagamento é mero contributo da insolvência, ou se ela é a sua causa.